Um debate
duro, mas necessário, com os companheiros do movimento “não
vai ter golpe”
A crise
política brasileira tem sido frequentemente comparada ao
seriado “House of Cards”, do Netflix. A comparação
é justificada, mas não só pelo motivo mais
imediatamente perceptível, que são as conspirações
palacianas e manobras de bastidores. A expressão “house of
cards” é o equivalente em inglês para o que chamamos
de “castelo de cartas”, que tem o significado de algo muito
frágil, que pode desabar a qualquer momento. O castelo de
cartas, no caso brasileiro, é o projeto petista de conciliação
de classes. Esse projeto desabou de maneira estrondosa, e a sua queda
ainda vai produzir conseqüências por um longo período.
O afastamento de Dilma foi a cena final do desabamento do castelo de
cartas petista, e ao mesmo tempo pode significar o início de
uma nova fase da luta de classes no país.
Isso não
quer dizer que as conspirações não existam. Há
alguns meses escrevíamos que o impeachment era a hipótese
menos provável
(http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/12/nao-temos-que-escolher-entre-dilma.html).
O PT tinha conseguido algum sucesso na tática de isolar Cunha
e construir repúdio a sua figura. Entretanto, nesses poucos
meses, desde a aceitação do processo por Cunha, a
situação virou. Nos bastidores, o ex-presidente FHC,
compadre dos donos da grande mídia, conseguiu desviar o foco
das atenções para Lula, que começou a aparecer
no noticiário (o escândalo do filho de FHC com uma
jornalista da Globo também veio à tona em
contra-ataque, mas à essa altura ninguém ligou para
esse detalhe). Isso culminou na bombástica “condução
coercitiva” de Lula, na malfadada nomeação para o
ministério, no vazamento dos áudios de escuta, na
escalada de manifestações de rua contra e a favor do
governo, no desembarque do PMDB e por fim a votação no
plenário.
Quem
detectou essa movimentação de FHC nos bastidores, que
seria decisiva para precipitar os acontecimentos das últimas
semanas, foi o historiador inglês Perry Anderson, escrevendo de
fora do Brasil
(https://blogdaboitempo.com.br/2016/04/21/perry-anderson-a-crise-no-brasil/
artigo de resto digno de ser lido por vários outros méritos
além deste detalhe). Mas o argumento que defendemos neste
texto é que as conspirações palacianas e
disputas na superestrutura política devem ser entendidas à
luz dos interesses e enfrentamentos de classe que eles representam, e
não o contrário. É preciso discutir a qual
classe social interessa o impeachment e se interessa a alguma classe
defender o PT. Dito diretamente, a questão é determinar
se é do interesse dos trabalhadores defender Dilma, Lula e o
PT.
Enquanto
a esquerda se divide entre defender a “democracia” e o mandato de
Dilma, sendo mais ou menos cooptada para a órbita política
do PT, ou de outro lado (bem minoritário e mais equivocado,
sendo conivente ou se somando ao processo de impeachment), fica-se
sem discutir o principal: qual o programa dos trabalhadores para
enfrentar a crise capitalista e sua manifestação no
Brasil, seja a “Agenda Brasil” de Dilma/Renan ou a “Ponte para
o Futuro” de Temer. Enfim, bastidores à parte, para que as
conspirações estilo “House of Cards” tenham algum
efeito ou não, é preciso que os agentes envolvidos, de
um lado ou de outro, sejam capazes de mobilizar forças sociais
mais amplas. Nossa tese é de que essa capacidade falta ao PT,
mas nem por isso os trabalhadores devem deixar de se mobilizar, e
devem fazê-lo por fora da órbita do partido.
Show de
horrores
No dia
17/04 tivemos a votação do impeachment na Câmara
dos deputados, autorizando a abertura do processo contra a
presidente, por larga margem de votos. O processo está agora
correndo no Senado, onde dificilmente será revertido, de modo
que Dilma deve ser em breve afastada, pelo prazo de 6 meses, até
a votação definitiva. Esse é o cenário
mais provável no momento, o inverso da previsão
anterior, mas assim como aquela foi revertida, não é
absolutamente certo que esta se realize, pois como vimos acima,
trata-se de um cenário altamente mutável. Os setores
que impulsionavam o movimento do impeachment projetaram a votação
do dia 17 e sua transmissão televisiva para ser a conclusão
espetacularizada do processo, uma espécie de final de
campeonato, depois da qual se festeja a derrota definitiva do rival.
Mas o espetáculo foi tão grotesco que esse tiro saiu
pela culatra.
As cenas
da votação foram de embrulhar o estômago, mesmo
para quem viu apenas alguns brevíssimos relances (faço
ideia de como deve ter sido para quem assistiu inteira...).
Presenciamos algumas centenas de representantes dos bancos, das
empreiteiras, da grande indústria, da mídia, da bala
(ex-policiais, militares e apologistas do aparato repressivo), do boi
(do latifúndio e agronegócio) e da Bíblia
(igrejas neopentecostais), enfim, do capital em geral, em rompantes
demagógicos e oportunistas, bradando cinicamente contra a
corrupção que eles mesmos praticam largamente em todas
as suas modalidades (para não falar de todos os outros tipos
de crimes), citando hipocritamente Deus e a família que eles
mesmos desrespeitam (com a mesma intensidade e variedade, e que
também não viriam ao caso mesmo que os respeitassem).
Na
própria votação foram cometidos ao vivo, em
cores e impunemente novos crimes de apologia da tortura e outras
barbáries. A burguesia brasileira mostrou sua verdadeira face,
intolerante, raivosa, zombeteira, ao descartar o partido que foi seu
mais aplicado serviçal por mais de uma década. A visão
dessas cenas, ao invés de fortalecer o movimento do
impeachment, enfraqueceu. O plano de espetacularizar a votação
para produzir uma grande catarse redentora funcionou ao contrário,
gerando repulsa e indignação.
A
população não mordeu a isca do afastamento do
PT, exatamente da forma como os conspiradores tinham planejado, ou
seja, de maneira festiva, definitiva, consagradora. Faltou combinar
com os russos, diria Garrincha. Com isso, a situação
ficou ainda, de certa forma em aberto, dando um fio de esperança
ao PT. Temer não saiu fortalecido da votação,
como mostrou pesquisa do Ibope
(http://noticias.r7.com/brasil/ibope-62-dos-brasileiros-querem-novas-eleicoes-presidenciais-25042016).
A inacreditável gafe da matéria da Veja com a candidata
a Primeira Dama “bela, recatada e do lar” também não
ajudou... E o que é pior para este setor, Lula segue sendo o
principal líder de massas do país
(http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/04/lula-tem-21-marina-19-aecio-17-diz-pesquisa-datafolha.html).
O beco
sem saída do PT
Mas o
que mais causou apreensão no domingo, do ponto de vista dos
interesses estratégicos mais gerais da classe trabalhadora,
não foram as cenas da votação na Câmara em
si. Afinal, tudo aquilo já era esperado. Não se poderia
imaginar que aqueles deputados se comportassem de outra maneira (a
menos que alguém acreditasse em Papai Noel, em horóscopo,
em disco voador...). O maior motivo de apreensão foram as
centenas de milhares de pessoas que, elas sim, assistiram a votação
inteira, meio como torcedores, com o coração na mão,
imobilizados diante das telas, contando e sofrendo voto a voto,
atendendo aos diversos chamados do movimento “não vai ter
golpe”.
Causou
apreensão porque se trata de um imenso desperdício de
mobilização (ou de uma imensa imobilização),
conduzindo essas centenas de milhares de pessoas sinceramente
preocupadas com a ofensiva direitista para um beco sem saída.
A defesa do mandato de Dilma e do PT não servirá como
arma contra essa ofensiva. Como tem feito desde o escândalo do
mensalão em 2005 e a cada eleição desde então,
o PT tem manipulado a seu favor a rejeição despertada
pela oposição burguesa em largos setores da população,
para garantir a sua própria permanência no governo, com
o argumento da ameaça de “golpe”. Há mais de uma
década assistimos à repetição dessa mesma
novela: o PT grita contra o “golpe”, e segue ele próprio
aplicando as medidas políticas e econômicas atribuídas
aos golpistas. De tanto o PT falar em “golpe” e aplicar o
programa desejado pelos golpistas, o “golpe” se tornou real.
O PT foi
tão dedicado em atender ao programa golpista e cortar seus
próprios vínculos com a classe trabalhadora, que agora
não consegue mais reunir forças para se defender. Até
o último instante, a aposta do PT para defender o mandato de
Dilma era um chamado a um “pacto social” que atendesse às
demandas da oposição burguesa (ou seja, para que o
próprio PT pudesse aplicar a “Ponte para o Futuro” de
Temer). Ou ainda, a compra de votos de parlamentares de partidos
burgueses de aluguel como PP, PR, PSD, etc., com a promessa de
ministérios. Foi nisso que o PT apostou até a hora
final, para se manter no governo.
Enquanto
isso, centenas de milhares de pessoas, não filiadas ao
partido, inclusive críticas do governo, que querem derrotar a
burguesia e os partidos patronais, que assumem o vermelho e se expõem
ao escárnio em que caíram os “petralhas” e mesmo ao
ataque de elementos proto-fascistas cada vez mais atrevidos, todas
enfim querendo se mobilizar e ir para a luta, foram deixadas à
própria sorte pelo PT. O partido não tem mais uma
bandeira ou projeto a defender, apenas a permanência de Dilma
ou talvez uma futura candidatura de Lula. E agora que já teve
“golpe”, isso já não basta mais.
O PT no
governo: mudar para continuar igual
Para
entender porque a defesa do mandato do PT em si não é
mais suficiente para enfrentar a ofensiva da direita, é
preciso entender o conjunto do processo de esvaziamento e
decomposição do projeto de conciliação de
classe posto em prática pelo partido. Para entender porque o
PT está sendo removido do governo de maneira tão
patética, é preciso entender porque o PT foi colocado
no governo, em primeiro lugar. O PT foi eleito com a função
de desarmar a classe trabalhadora brasileira. Agora que cumpriu essa
função, o partido não serve mais para nada. Os
trabalhadores no Brasil estão desorganizados, sem projeto, sem
referência, sem ideologia. O terreno está pronto para
que a burguesia passe o rolo compressor sobre os direitos e condições
de vida da classe. O PT volta a se preocupar apenas com as eleições,
e Lula volta a ser seu eterno candidato. Vejamos como isso se deu.
Lula foi
eleito em 2002 no bojo de um processo de rejeição do
neoliberalismo em escala continental, que estava derrubando
presidentes em série pela América Latina, com a força
de imensas mobilizações populares, passando pela
Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela. Milhões de
pessoas estavam nas ruas, dizendo “que se vayan todos!” Governos
atípicos foram eleitos nesses países e em outros do
continente, como uma forma de desviar as lutas para a
institucionalidade e gerar a ilusão de mudanças. Nesse
contexto internacional, a chegada do PT ao governo brasileiro foi
tratada como uma verdadeira apoteose, como se um verdadeiro Messias
tivesse chegado para atender às reivindicações e
sonhos pelos quais algumas gerações tinham lutado desde
o final da ditadura. Puro engano.
A
verdadeira função de Lula no governo era exatamente pôr
um freio a essas lutas, por meio do prestígio acumulado como o
mais importante dirigente dos movimentos sociais do país e do
controle burocrático do PT sobre a CUT e demais organismos da
classe. Durante os governos de Lula e Dilma o PT cumpriu essa tarefa
a contento, impedindo o desenvolvimento das lutas que questionassem o
projeto neoliberal, que o governo seguia aplicando afinal. Enquanto a
CUT traía e bloqueava as greves, e os demais movimentos
sociais oscilavam entre o apoio ao governo e lutas pontuais, o PT no
governo concedia algumas melhorias mínimas para a população
de baixa renda, com a margem que lhe era oferecida pela alta dos
preços das “commodities” que o Brasil exporta.
A
fragilidade do projeto do PT era a mesma dos demais governos latino
americanos surgidos como respostas institucionais e desvio dos
processos de luta do continente: conceder melhorias pontuais para a
população de baixa renda, mas sem realizar mudanças
estruturais profundas nessas sociedades. Assim como os demais
governos da “esquerda” latino americana da década de 2000,
Lula e Dilma se mantiveram no poder no Brasil sem atacar os pilares
da desigualdade social, sem fazer reformas efetivas na distribuição
da terra, direitos trabalhistas, inclusão das minorias,
herança autoritária da ditadura, melhorias nos serviços
públicos, estrutura tributária regressiva, dívida
pública (que continuou sendo paga religiosamente aos
especuladores), e um largo etc. Ou seja, esses governos não
realizaram nenhum enfrentamento real contra os interesses e
privilégios seculares das burguesias latino americanas.
Alimentaram a ilusão de que seria possível difundir
prosperidade sem uma luta feroz contra a burguesia.
Do
apoteótico ao patético: a trajetória do PT
Ao mesmo
tempo em que conciliava com a burguesia por cima e garantia os
interesses do conjunto do capital que opera no país, na base
da classe trabalhadora o PT se absteve de qualquer tipo de
mobilização, organização, politização.
Já na década de 1980, período de ascenso das
lutas e mobilizações, o PT se caracterizava pelo
economicismo, pelo imediatismo e pelo reformismo, refletindo a
hegemonia dentro do partido dos sindicalistas e sua lógica de
adaptação ao sistema. Com o PT no governo isso se
aprofundou ainda mais, e qualquer vestígio de discurso em
favor da luta coletiva foi substituído pela apologia do
consumismo, do individualismo e da meritocracia.
Quando a
alta das commodities no mercado mundial passou e sobreveio a crise, o
orçamento do governo ficou apertado, começou a ficar
difícil administrar as políticas compensatórias
e ao mesmo tempo atender os interesses da burguesia. As mobilizações
e greves começam a crescer em ritmo acelerado já desde
2012, culminando nas Jornadas de Junho de 2013. A partir daquele
momento, duas coisas ficaram muito claras: primeiro, que o PT não
controlava mais os setores mais dinâmicos da classe
trabalhadora e da juventude em luta. E segundo, ficou claro também
que a imensa maioria da população estava
ideologicamente neutralizada, pronta para ser cooptada pelo programa
da direita. Já no final das Jornadas de Junho começa a
tendência de direitização, em especial das
camadas médias, que viria culminar no atual processo de
impeachment.
O PT
perdeu sua antiga base social nos setores organizados da classe por
conta da traição do programa histórico (por mais
limitado que fosse), e perdeu a nova base social devido ao
esgotamento do seu projeto de gestão da economia e ao advento
da crise (que na verdade é global e estrutural). Como o PT é
agora apenas uma organização eleitoral, não lhe
resta outra alternativa a não ser aceitar a derrota.
A prova
definitiva de que o próprio PT não acredita mais em si
mesmo e vai seguir obediente para o matadouro foi o discurso de Dilma
na Assembleia Geral da ONU, na sexta-feira 22, já depois da
votação do impeachment na Câmara.
Vergonhosamente, Dilma se absteve de usar a tribuna para denunciar o
“golpe” e chamar o repúdio internacional ao novo governo
que se constituirá no país. Não que se possa ter
muitas ilusões na ONU, mas em momentos de alta dramaticidade
figuras como Che Guevara e Yasser Arafat usaram a tribuna para fazer
discursos históricos. Dilma amarelou. Sinal de que o PT vai
aceitar disciplinadamente as regras do jogo que o desfavorecem e
aceitar o seu rebaixamento para a 2ª divisão (alguém
se lembrou da Portuguesa no Brasileirão de 2013?). Não
há adjetivo melhor para isso que não seja patético.
As
lições da história
Não
estamos entre os que consideram que o impeachment é um golpe,
no sentido de que irá modificar substancialmente as
instituições em direção a algo parecido
com uma ditadura explícita e declarada. Isso não é
necessário, já que sob o próprio PT a democracia
burguesa foi aperfeiçoada com instrumentos de repressão
como as UPPs, Força Nacional, Lei Anti-terrorismo, etc. Nesse
sentido de um aumento drástico da repressão, entendemos
que não há um golpe. Mas mesmo assim, mesmo que
houvesse golpe, a última opção para a esquerda e
os trabalhadores seria defender o governo do PT em si mesmo.
No caso
de um golpe reacionário que modifique de fato o regime
político, mesmo que seja para derrubar um governo burguês,
a posição da esquerda e dos trabalhadores deve ser de
lutar ao lado deste governo e seus defensores contra o golpe, mas sem
perder a independência política. Esse é o
ensinamento da tradição do movimento socialista. Isso
significa que, mesmo em caso de golpe real, os trabalhadores devem
ter suas próprias organizações e seu próprio
programa, suas próprias reivindicações como
objetivo da luta. No caso do Brasil e da derrubada do PT isso se
aplica ainda mais. A luta não pode ser desviada para o
objetivo de colocar de volta o PT no poder. É preciso que os
trabalhadores se organizem de maneira independente e por
reivindicações próprias.
É
preciso retomar as lições da história. Todo
governo burguês atípico, desde as frentes populares até
o nacionalismo burguês do século XX (e do XXI, como o de
Chávez em 2002), ao ser derrubado, tem a postura de evitar o
enfrentamento e buscar até o final alguma forma de
conciliação. Allende se suicidou, Jango se exilou,
Chávez fez acordos com os golpistas. Nenhum deles tomou
medidas radicais, nenhum deles apelou para as organizações
da classe trabalhadora, nenhum convocou a população
para resistir, para assumir o controle da produção,
tomar as fábricas e as fazendas, tomar posse dos edifícios
públicos, organizar-se em conselhos e assembleias,
auto-defesas, pegar em armas, etc. O PT também não vai
fazer isso.
Não
é simplesmente que o PT não queira tomar tais medidas
(e de fato não quer). Mas mesmo que quisesse, não
conseguiria, porque ao longo de todo o governo trabalhou no sentido
oposto ao que seria necessário para que fossem possíveis. A organização
da classe, desde os locais de trabalho, os representantes sindicais
de base, locais de moradia, estudo, etc., tudo isso foi esvaziado, ao
invés de ser potencializado.
Esse é
o problema de todas as direções políticas que
como o PT rompem seus vínculos com a classe: não são
capazes de organizar a luta. A única estratégia que
enxergam é a institucional. Esse comportamento inevitavelmente
conduz à derrota, com um agravante: a derrota dos projetos de
conciliação de classe não resulta apenas em
aniquilação dos seus dirigentes, partidos, movimentos,
mas na derrota dos trabalhadores. Será esse o caso no Brasil,
se a resistência contra a ofensiva direitista se limitar a
funcionar como base para a recondução do PT ao governo.
O
movimento contra o “golpe” não pode nos fazer retroceder
para a década de 1990, quando se desviava toda a luta para a
tentativa de colocar o PT no governo. Da derrota eleitoral de 1989
até a eleição de 2002, o PT trabalhou para fazer
convergir as expectativas de todas as lutas para a suposta grande
transformação que viria quando Lula chegasse ao
governo. Agora, depois que o PT já esteve no governo e
trabalhou no sentido oposto de todas aquelas lutas, o movimento não
pode ser cooptado para lutar de novo apenas para colocar de volta o
PT no governo. O movimento “não vai ter golpe”, ao ser
instrumentalizado como simples defesa do PT, corre o risco de nos
fazer voltar mais de duas décadas no passado. Isso seria um
imenso contra senso e um desperdício. A luta tem que ir além
desse objetivo limitado, construindo novas bandeiras, referências
e organizações.
Não
vai ter luta (se depender do PT)
O que
não torna as coisas mais fáceis, de forma alguma. O
bombardeio sobre os trabalhadores será pesado. O consenso
construído entre os partidos de direita, a mídia e as
camadas médias da população contra o PT tende a
convergir em apoio ao novo governo PMDB/PSDB e na tentativa de
legitimar suas medidas como necessárias para “tirar o país
da crise”.
Boa
parte do movimento “não vai ter golpe” está
minimamente consciente disso e fala na necessidade lutar. O problema
é que, retardando a consciência do tipo de luta e
organização necessária, surge no meio do caminho
e como obstáculo para o avanço da consciência e
das tarefas correspondentes a tentativa fraudulenta de ressuscitar a
memória do PT como organização combativa e o
papel de Lula como seu líder máximo. É bastante
tarde para atribuir esse papel ao PT. A começar pela própria
forma como o governo e o partido (não) reagiram ao “golpe”.
Para começar, o PT não convocou os trabalhadores em sua
defesa, e para completar, os trabalhadores não o fizeram por
conta própria.
A classe
trabalhadora não se mobilizou para defender o governo do PT,
porque sente sua vida se deteriorar por obra desse mesmo governo. A
maior parte daqueles milhares de manifestantes contra o “golpe” é
composta de alguns dos segmentos mais organizados da classe, da
aristocracia operária, da pequena burguesia intelectualizada,
da juventude universitária. Apenas uma minoria de
trabalhadores da produção e dos setores mais
precarizados tomou parte das manifestações. Mais
importante para o que estamos discutindo, porém, não é
a definição de qual estrato de classe pertencem os
participantes do “não vai ter golpe!” e sim a avaliação
do seu nível de organização.
A
maioria dos participantes dos atos contra o “golpe” esteve
presente mais como indivíduo do que como integrante de
organizações e coletivos, com exceção dos
burocratas dos sindicatos e militantes profissionais, que o fazem por
dever de ofício. Esse estado de desorganização
da classe trabalhadora não afeta apenas o pequeno setor que
saiu em defesa do PT (mesmo não sendo estritamente petista).
Afeta a maioria da classe, e esse é o maior problema.
O
problema da derrubada do PT é que o partido não apenas
cortou os seus próprios vínculos orgânicos com a
classe trabalhadora, ele cortou os vínculos da classe consigo
mesma. A classe trabalhadora no Brasil não reconhece mais os
sindicatos e os movimentos sociais, não se organiza para
lutar, não participa de associações, coletivos,
entidades de qualquer tipo, a não ser em segmentos hoje muito
minoritários. Com isso, a tarefa da burguesia de aplicar os
ataques está facilitada. Esse é o segredo, afinal da
trajetória do PT, sua chegada ao governo de forma tão
bombástica e sua despedida de forma tão patética.
O PT chegou ao governo por ser capaz de impedir que a classe
trabalhadora entrasse em luta, e por isso foi aceito pela burguesia.
Agora, o PT está sendo descartado porque a burguesia avalia
que não haverá mais luta!
Não
é que o PT não tenha mais o controle sobre os
organismos dos trabalhadores, como a CUT, e os demais movimentos
sociais. Esse controle ainda existe. Mas o PT não vai mais
usar esses instrumentos para a luta! A CUT não é apenas
uma central sindical governista, aliada ao governo de plantão
quando este governo é do PT, é uma central
pró-capitalista, adaptada ao capitalismo e à
colaboração de classes. O modo de existência dos
dirigentes sindicais cutistas, burocratizados e pelegos, está
baseado no seu papel de intermediar os ataques contra os
trabalhadores, as demissões, retirada de direitos, arrocho
salarial, etc. Os “sindicalistas” existem para assinar e
legalizar acordos lesivos aos trabalhadores, e vão continuar a
fazê-lo, esteja o PT no governo ou não.
O
aparato dos sindicatos funciona em função de si mesmo.
Os dirigentes estão mais preocupados com seus próprios
mandatos do que com o PT. No dia a dia, vão continuar
participando de negociações com a patronal contrárias
aos trabalhadores, como crianças bem comportadas que
aprenderam a ser em algumas décadas de “sindicalismo
cidadão”. Nos dias de festa, quando convocados, vão
participar dos atos em defesa do PT, meio que como um juramento à
bandeira, mas sem nenhuma convicção ou ideologia. Não
é para eles uma batalha de vida ou morte (no caso dos demais
movimentos sociais diretamente controlados pelo PT, como MST e UNE,
as coisas podem ser um pouco diferentes, mas não o suficiente
para mudar o quadro geral). Vão também continuar usando
os aparatos para fazer propaganda eleitoral do partido, como bons
burocratas e aparelhistas que são. Mas isso é tudo.
Afinal, além da tênue esperança de barrar o
impeachment no Senado, o que resta para o PT é construir a
figura de Lula para as eleições de 2018.
Não
vai ter conciliação!
Essa é
a maior fragilidade da posição dos companheiros que se
mobilizaram em torno do movimento “não vai ter golpe!”: o
próprio PT não vai organizar a luta. Isso não
faz mais parte da sua natureza. É bastante compreensível,
como dissemos no início, que centenas de milhares de
companheiros tenham se mobilizado, muitos espontaneamente, via redes
sociais, sem um chamado oficial ou centralizado, contra as ameaças
que estão por trás do impeachment. A ofensiva
direitista não é desprezível. É
compreensível, mas ainda assim é errado, pelo fato
fundamental de que o PT não vai lutar contra o programa de
Temer. No máximo, vai praticar uma oposição
parlamentar, meramente verbal e bem comportada. O PT na oposição
não será um ponto de apoio para a construção
da luta dos trabalhadores contra o ajuste (mesmo porque estaria
aplicando ele mesmo o ajuste se estivesse no governo).
O PT
pode até mobilizar em defesa do mandato de Dilma ou da futura
campanha de Lula, o que não é a mesma coisa que lutar
contra o ajuste, e aí está uma armadilha perigosa. É
preciso identificar os interesses de classe que estão movendo
o processo de impeachment. A burguesia quer acabar com os direitos
trabalhistas, quer aumentar a idade para aposentadoria, quer impor a
negociação (através dos sindicatos pelegos) em
lugar da CLT, quer impor a terceirização, a
privatização do SUS, a privatização das
empresas estatais restantes, o fim da estabilidade dos funcionários
públicos, o fim da vinculação constitucional de
verbas para saúde e educação, etc. Um verdadeiro
massacre sobre os direitos, conquistas e patrimônios históricos
dos trabalhadores. É preciso colocar os trabalhadores em luta
contra esse ataque, e a questão central é que a defesa
do PT não é um instrumento para essa luta.
A luta
dos trabalhadores não pode ficar a reboque dos interesses
partidários do PT. O objetivo do PT é voltar ao aparato
do Estado, não é derrotar a burguesia. A política
de conciliação de classe exclui a mobilização
independente dos trabalhadores contra o “golpe”, porque tal
mobilização questiona o próprio papel do PT como
mediador da conciliação. O PT já foi rejeitado
pela burguesia, que não considera mais necessário
conciliar. Falta ser rejeitado pelos trabalhadores, a quem não
é mais dado o luxo de conciliar: a única escolha é
lutar!
Batendo
em retirada
Dissemos
acima que o papel essencial da burocracia sindical é a
conciliação de classes (em favor da burguesia e contra
os trabalhadores). Acessoriamente, a burocracia sindical é
também instrumento do PT para mobilizar apoio (eleitoral, se
tanto) na base da classe trabalhadora. Nesse sentido, porém,
estão duplamente desmoralizados. Primeiro, que moral os
burocratas terão para chamar os trabalhadores a se mobilizar
em favor de um partido que até ontem estava ele mesmo
aplicando o programa da burguesia? Não basta dizer que com o
PMDB/PSDB vai ser pior, é preciso discutir bandeiras e
organizar ações concretas contra essa deterioração:
defesa do emprego, do salário, dos direitos, etc. O PT não
está levantando essas bandeiras, está falando em
“democracia” em abstrato (mesmo porque, o governo do PT pisoteou
a democracia no concreto).
Segundo,
a burocracia está desmoralizada porque o PT saiu do governo
chutado pela porta dos fundos, não num processo normal ou
eleitoral. Estão derrotados. Uma boa parte dos burocratas
petistas simplesmente “vai pra casa”, não vai mais fazer
política de nenhuma forma. Afinal, os anos de mamata nos
cargos ministeriais, diretorias de estatais, fundos de pensão,
etc., devem ter servido para fazerem o seu pé de meia...
Para os
que permanecerem na “luta”, ou melhor dizendo, na ativa, o único
papel que resta é o de cabos eleitorais de Lula. O partido se
reduz a apêndice do dirigente carismático. Não
lhe resta mais outro papel na luta de classes. Não há
outra figura ou projeto, nem sequer embrionária ou
remanescente, que proporcione coesão ou sentido ao PT, além
do próprio Lula. O salvador da pátria sebastianista não
pode se aposentar jamais.
Mas
ainda assim é possível que essa burocracia convoque
lutas e mobilizações, à sua maneira. Por tudo o
que dissemos acima, entendemos que a esquerda e os trabalhadores não
podem participar de nenhum tipo de atividade que tenha como conteúdo
a simples defesa do governo Dilma atualmente em demonte. Participar
de atos para reinstalar Dilma ou eleger Lula, não nos
interessa. Participar de greves e ações que representam
enfrentamento de fato contra a patronal, o governo que virá e
seu ajuste, isso sim. E mesmo na luta, a esquerda e os trabalhadores
devem atuar de maneira independente do PT. A luta deve ser travada
com as bandeiras e reivindicações próprias dos
trabalhadores, não do partido.
Luta de
classes em estado puro
Para
além disso, é preciso construir atividades e
mobilizações próprias, que não dependam
da burocracia petista, e que discutam a pauta e os interesses dos
trabalhadores. Independentemente do PT e seus aparatos convocarem
atividades contra o “golpe” ou em favor de Lula, o movimento dos
trabalhadores precisa construir atividades próprias.
Assembleias, plenárias, reuniões, comitês,
fóruns, frentes, todos os tipos de iniciativas de aglomeração
e nucleação são válidos neste momento
para colocar em pauta, junto à base dos trabalhadores, um
programa próprio da nossa classe para superar a crise. E neste
momento, o chamado à unidade de todas as organizações,
correntes, tendências, agrupamentos, militantes e ativistas é
fundamental. Para construir uma nova referência de organização
e de programa, que supere o PT e a CUT, vamos precisar de todas as
forças. Somente a força combinada de toda a esquerda
independente do petismo pode ter algum peso na tentativa de mover a
classe trabalhadora contra os ataques.
Quem
conhece a esquerda brasileira sabe que é praticamente utópico
falar em unidade. O eleitoralismo, o sindicalismo, o burocratismo, o
sectarismo e o oportunismo grassam em largas doses. As organizações
estão mais preocupadas com a sua própria construção
do que com o conjunto do movimento. Priorizam seus interesses em
detrimento do conjunto da classe. Pensam na próxima eleição
de sindicato ou para o parlamento. Mas estamos num momento em que a
luta de classes fará a sua seleção. O centro das
discussões tem que ser o interesse do conjunto da classe e a
construção do movimento, e não os projetos de
construção das organizações. Quem
mantiver esse comportamento e os vícios do passado será
varrido. Quem privilegiar a fragmentação, a
auto-construção, a marcação de posição,
os projetos particulares, a mera projeção de figuras
públicas, não vai conseguir se colocar como parte do
movimento da classe. Quem privilegiar aquilo que nos separa em
detrimento do que nos une, ficará de fora do complicado e
incerto processo de reconstrução das referências
da classe no período pós-PT
Sem a
mediação do lulopetismo, entramos no terreno da luta de
classes em estado puro. Trabalhadores contra patrões e seus
capangas no Estado e na mídia. No limite, para todos os que
estão preocupados com a ofensiva direitista, não
interessa se a chamamos de golpe ou não. Não importa
quais organizações e ativistas estiveram no movimento
“não vai ter golpe” (sob o risco de integrar a órbita
do PT) e quais estiveram na tentativa de construir um campo
independente dos trabalhadores (de diversas formas, algumas
tragicamente equivocadas, como o “Fora todos, eleições
gerais!”). Importa que somente o conjunto da esquerda atuando
unificado e por fora do lulopetismo terá algum peso para
influenciar os trabalhadores.
Só
é possível derrotar a ofensiva direitista e o projeto
da patronal e do Estado com a mobilização dos
trabalhadores. E os trabalhadores somente se mobilizam por pautas
concretas: defesa do emprego, contra as demissões, contra a
retirada dos direitos, contra a alta de preços, em defesa dos
serviços públicos, contra a dívida pública,
contra a repressão, etc. É preciso chamar os
trabalhadores para discutir uma pauta, com esses e outros pontos.
Enquanto as organizações da esquerda estiverem se
digladiando por palavras de ordem como “não vai ter golpe!”
ou “eleições gerais”, ou qualquer outra, estaremos
perdendo tempo na tarefa urgente de deixar para trás de vez o
ciclo histórico do PT, iniciar novos projetos e referências
e construir a pauta e a mobilização da classe.
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