28.4.16

O PT e o castelo de cartas da conciliação de classes


Um debate duro, mas necessário, com os companheiros do movimento “não vai ter golpe”

A crise política brasileira tem sido frequentemente comparada ao seriado “House of Cards”, do Netflix. A comparação é justificada, mas não só pelo motivo mais imediatamente perceptível, que são as conspirações palacianas e manobras de bastidores. A expressão “house of cards” é o equivalente em inglês para o que chamamos de “castelo de cartas”, que tem o significado de algo muito frágil, que pode desabar a qualquer momento. O castelo de cartas, no caso brasileiro, é o projeto petista de conciliação de classes. Esse projeto desabou de maneira estrondosa, e a sua queda ainda vai produzir conseqüências por um longo período. O afastamento de Dilma foi a cena final do desabamento do castelo de cartas petista, e ao mesmo tempo pode significar o início de uma nova fase da luta de classes no país.
Isso não quer dizer que as conspirações não existam. Há alguns meses escrevíamos que o impeachment era a hipótese menos provável (http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/12/nao-temos-que-escolher-entre-dilma.html). O PT tinha conseguido algum sucesso na tática de isolar Cunha e construir repúdio a sua figura. Entretanto, nesses poucos meses, desde a aceitação do processo por Cunha, a situação virou. Nos bastidores, o ex-presidente FHC, compadre dos donos da grande mídia, conseguiu desviar o foco das atenções para Lula, que começou a aparecer no noticiário (o escândalo do filho de FHC com uma jornalista da Globo também veio à tona em contra-ataque, mas à essa altura ninguém ligou para esse detalhe). Isso culminou na bombástica “condução coercitiva” de Lula, na malfadada nomeação para o ministério, no vazamento dos áudios de escuta, na escalada de manifestações de rua contra e a favor do governo, no desembarque do PMDB e por fim a votação no plenário.
Quem detectou essa movimentação de FHC nos bastidores, que seria decisiva para precipitar os acontecimentos das últimas semanas, foi o historiador inglês Perry Anderson, escrevendo de fora do Brasil (https://blogdaboitempo.com.br/2016/04/21/perry-anderson-a-crise-no-brasil/ artigo de resto digno de ser lido por vários outros méritos além deste detalhe). Mas o argumento que defendemos neste texto é que as conspirações palacianas e disputas na superestrutura política devem ser entendidas à luz dos interesses e enfrentamentos de classe que eles representam, e não o contrário. É preciso discutir a qual classe social interessa o impeachment e se interessa a alguma classe defender o PT. Dito diretamente, a questão é determinar se é do interesse dos trabalhadores defender Dilma, Lula e o PT.
Enquanto a esquerda se divide entre defender a “democracia” e o mandato de Dilma, sendo mais ou menos cooptada para a órbita política do PT, ou de outro lado (bem minoritário e mais equivocado, sendo conivente ou se somando ao processo de impeachment), fica-se sem discutir o principal: qual o programa dos trabalhadores para enfrentar a crise capitalista e sua manifestação no Brasil, seja a “Agenda Brasil” de Dilma/Renan ou a “Ponte para o Futuro” de Temer. Enfim, bastidores à parte, para que as conspirações estilo “House of Cards” tenham algum efeito ou não, é preciso que os agentes envolvidos, de um lado ou de outro, sejam capazes de mobilizar forças sociais mais amplas. Nossa tese é de que essa capacidade falta ao PT, mas nem por isso os trabalhadores devem deixar de se mobilizar, e devem fazê-lo por fora da órbita do partido.

Show de horrores
No dia 17/04 tivemos a votação do impeachment na Câmara dos deputados, autorizando a abertura do processo contra a presidente, por larga margem de votos. O processo está agora correndo no Senado, onde dificilmente será revertido, de modo que Dilma deve ser em breve afastada, pelo prazo de 6 meses, até a votação definitiva. Esse é o cenário mais provável no momento, o inverso da previsão anterior, mas assim como aquela foi revertida, não é absolutamente certo que esta se realize, pois como vimos acima, trata-se de um cenário altamente mutável. Os setores que impulsionavam o movimento do impeachment projetaram a votação do dia 17 e sua transmissão televisiva para ser a conclusão espetacularizada do processo, uma espécie de final de campeonato, depois da qual se festeja a derrota definitiva do rival. Mas o espetáculo foi tão grotesco que esse tiro saiu pela culatra.
As cenas da votação foram de embrulhar o estômago, mesmo para quem viu apenas alguns brevíssimos relances (faço ideia de como deve ter sido para quem assistiu inteira...). Presenciamos algumas centenas de representantes dos bancos, das empreiteiras, da grande indústria, da mídia, da bala (ex-policiais, militares e apologistas do aparato repressivo), do boi (do latifúndio e agronegócio) e da Bíblia (igrejas neopentecostais), enfim, do capital em geral, em rompantes demagógicos e oportunistas, bradando cinicamente contra a corrupção que eles mesmos praticam largamente em todas as suas modalidades (para não falar de todos os outros tipos de crimes), citando hipocritamente Deus e a família que eles mesmos desrespeitam (com a mesma intensidade e variedade, e que também não viriam ao caso mesmo que os respeitassem).
Na própria votação foram cometidos ao vivo, em cores e impunemente novos crimes de apologia da tortura e outras barbáries. A burguesia brasileira mostrou sua verdadeira face, intolerante, raivosa, zombeteira, ao descartar o partido que foi seu mais aplicado serviçal por mais de uma década. A visão dessas cenas, ao invés de fortalecer o movimento do impeachment, enfraqueceu. O plano de espetacularizar a votação para produzir uma grande catarse redentora funcionou ao contrário, gerando repulsa e indignação.
A população não mordeu a isca do afastamento do PT, exatamente da forma como os conspiradores tinham planejado, ou seja, de maneira festiva, definitiva, consagradora. Faltou combinar com os russos, diria Garrincha. Com isso, a situação ficou ainda, de certa forma em aberto, dando um fio de esperança ao PT. Temer não saiu fortalecido da votação, como mostrou pesquisa do Ibope (http://noticias.r7.com/brasil/ibope-62-dos-brasileiros-querem-novas-eleicoes-presidenciais-25042016). A inacreditável gafe da matéria da Veja com a candidata a Primeira Dama “bela, recatada e do lar” também não ajudou... E o que é pior para este setor, Lula segue sendo o principal líder de massas do país (http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/04/lula-tem-21-marina-19-aecio-17-diz-pesquisa-datafolha.html).

O beco sem saída do PT
Mas o que mais causou apreensão no domingo, do ponto de vista dos interesses estratégicos mais gerais da classe trabalhadora, não foram as cenas da votação na Câmara em si. Afinal, tudo aquilo já era esperado. Não se poderia imaginar que aqueles deputados se comportassem de outra maneira (a menos que alguém acreditasse em Papai Noel, em horóscopo, em disco voador...). O maior motivo de apreensão foram as centenas de milhares de pessoas que, elas sim, assistiram a votação inteira, meio como torcedores, com o coração na mão, imobilizados diante das telas, contando e sofrendo voto a voto, atendendo aos diversos chamados do movimento “não vai ter golpe”.
Causou apreensão porque se trata de um imenso desperdício de mobilização (ou de uma imensa imobilização), conduzindo essas centenas de milhares de pessoas sinceramente preocupadas com a ofensiva direitista para um beco sem saída. A defesa do mandato de Dilma e do PT não servirá como arma contra essa ofensiva. Como tem feito desde o escândalo do mensalão em 2005 e a cada eleição desde então, o PT tem manipulado a seu favor a rejeição despertada pela oposição burguesa em largos setores da população, para garantir a sua própria permanência no governo, com o argumento da ameaça de “golpe”. Há mais de uma década assistimos à repetição dessa mesma novela: o PT grita contra o “golpe”, e segue ele próprio aplicando as medidas políticas e econômicas atribuídas aos golpistas. De tanto o PT falar em “golpe” e aplicar o programa desejado pelos golpistas, o “golpe” se tornou real.
O PT foi tão dedicado em atender ao programa golpista e cortar seus próprios vínculos com a classe trabalhadora, que agora não consegue mais reunir forças para se defender. Até o último instante, a aposta do PT para defender o mandato de Dilma era um chamado a um “pacto social” que atendesse às demandas da oposição burguesa (ou seja, para que o próprio PT pudesse aplicar a “Ponte para o Futuro” de Temer). Ou ainda, a compra de votos de parlamentares de partidos burgueses de aluguel como PP, PR, PSD, etc., com a promessa de ministérios. Foi nisso que o PT apostou até a hora final, para se manter no governo.
Enquanto isso, centenas de milhares de pessoas, não filiadas ao partido, inclusive críticas do governo, que querem derrotar a burguesia e os partidos patronais, que assumem o vermelho e se expõem ao escárnio em que caíram os “petralhas” e mesmo ao ataque de elementos proto-fascistas cada vez mais atrevidos, todas enfim querendo se mobilizar e ir para a luta, foram deixadas à própria sorte pelo PT. O partido não tem mais uma bandeira ou projeto a defender, apenas a permanência de Dilma ou talvez uma futura candidatura de Lula. E agora que já teve “golpe”, isso já não basta mais.

O PT no governo: mudar para continuar igual
Para entender porque a defesa do mandato do PT em si não é mais suficiente para enfrentar a ofensiva da direita, é preciso entender o conjunto do processo de esvaziamento e decomposição do projeto de conciliação de classe posto em prática pelo partido. Para entender porque o PT está sendo removido do governo de maneira tão patética, é preciso entender porque o PT foi colocado no governo, em primeiro lugar. O PT foi eleito com a função de desarmar a classe trabalhadora brasileira. Agora que cumpriu essa função, o partido não serve mais para nada. Os trabalhadores no Brasil estão desorganizados, sem projeto, sem referência, sem ideologia. O terreno está pronto para que a burguesia passe o rolo compressor sobre os direitos e condições de vida da classe. O PT volta a se preocupar apenas com as eleições, e Lula volta a ser seu eterno candidato. Vejamos como isso se deu.
Lula foi eleito em 2002 no bojo de um processo de rejeição do neoliberalismo em escala continental, que estava derrubando presidentes em série pela América Latina, com a força de imensas mobilizações populares, passando pela Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela. Milhões de pessoas estavam nas ruas, dizendo “que se vayan todos!” Governos atípicos foram eleitos nesses países e em outros do continente, como uma forma de desviar as lutas para a institucionalidade e gerar a ilusão de mudanças. Nesse contexto internacional, a chegada do PT ao governo brasileiro foi tratada como uma verdadeira apoteose, como se um verdadeiro Messias tivesse chegado para atender às reivindicações e sonhos pelos quais algumas gerações tinham lutado desde o final da ditadura. Puro engano.
A verdadeira função de Lula no governo era exatamente pôr um freio a essas lutas, por meio do prestígio acumulado como o mais importante dirigente dos movimentos sociais do país e do controle burocrático do PT sobre a CUT e demais organismos da classe. Durante os governos de Lula e Dilma o PT cumpriu essa tarefa a contento, impedindo o desenvolvimento das lutas que questionassem o projeto neoliberal, que o governo seguia aplicando afinal. Enquanto a CUT traía e bloqueava as greves, e os demais movimentos sociais oscilavam entre o apoio ao governo e lutas pontuais, o PT no governo concedia algumas melhorias mínimas para a população de baixa renda, com a margem que lhe era oferecida pela alta dos preços das “commodities” que o Brasil exporta.
A fragilidade do projeto do PT era a mesma dos demais governos latino americanos surgidos como respostas institucionais e desvio dos processos de luta do continente: conceder melhorias pontuais para a população de baixa renda, mas sem realizar mudanças estruturais profundas nessas sociedades. Assim como os demais governos da “esquerda” latino americana da década de 2000, Lula e Dilma se mantiveram no poder no Brasil sem atacar os pilares da desigualdade social, sem fazer reformas efetivas na distribuição da terra, direitos trabalhistas, inclusão das minorias, herança autoritária da ditadura, melhorias nos serviços públicos, estrutura tributária regressiva, dívida pública (que continuou sendo paga religiosamente aos especuladores), e um largo etc. Ou seja, esses governos não realizaram nenhum enfrentamento real contra os interesses e privilégios seculares das burguesias latino americanas. Alimentaram a ilusão de que seria possível difundir prosperidade sem uma luta feroz contra a burguesia.

Do apoteótico ao patético: a trajetória do PT
Ao mesmo tempo em que conciliava com a burguesia por cima e garantia os interesses do conjunto do capital que opera no país, na base da classe trabalhadora o PT se absteve de qualquer tipo de mobilização, organização, politização. Já na década de 1980, período de ascenso das lutas e mobilizações, o PT se caracterizava pelo economicismo, pelo imediatismo e pelo reformismo, refletindo a hegemonia dentro do partido dos sindicalistas e sua lógica de adaptação ao sistema. Com o PT no governo isso se aprofundou ainda mais, e qualquer vestígio de discurso em favor da luta coletiva foi substituído pela apologia do consumismo, do individualismo e da meritocracia.
Quando a alta das commodities no mercado mundial passou e sobreveio a crise, o orçamento do governo ficou apertado, começou a ficar difícil administrar as políticas compensatórias e ao mesmo tempo atender os interesses da burguesia. As mobilizações e greves começam a crescer em ritmo acelerado já desde 2012, culminando nas Jornadas de Junho de 2013. A partir daquele momento, duas coisas ficaram muito claras: primeiro, que o PT não controlava mais os setores mais dinâmicos da classe trabalhadora e da juventude em luta. E segundo, ficou claro também que a imensa maioria da população estava ideologicamente neutralizada, pronta para ser cooptada pelo programa da direita. Já no final das Jornadas de Junho começa a tendência de direitização, em especial das camadas médias, que viria culminar no atual processo de impeachment.
O PT perdeu sua antiga base social nos setores organizados da classe por conta da traição do programa histórico (por mais limitado que fosse), e perdeu a nova base social devido ao esgotamento do seu projeto de gestão da economia e ao advento da crise (que na verdade é global e estrutural). Como o PT é agora apenas uma organização eleitoral, não lhe resta outra alternativa a não ser aceitar a derrota.
A prova definitiva de que o próprio PT não acredita mais em si mesmo e vai seguir obediente para o matadouro foi o discurso de Dilma na Assembleia Geral da ONU, na sexta-feira 22, já depois da votação do impeachment na Câmara. Vergonhosamente, Dilma se absteve de usar a tribuna para denunciar o “golpe” e chamar o repúdio internacional ao novo governo que se constituirá no país. Não que se possa ter muitas ilusões na ONU, mas em momentos de alta dramaticidade figuras como Che Guevara e Yasser Arafat usaram a tribuna para fazer discursos históricos. Dilma amarelou. Sinal de que o PT vai aceitar disciplinadamente as regras do jogo que o desfavorecem e aceitar o seu rebaixamento para a 2ª divisão (alguém se lembrou da Portuguesa no Brasileirão de 2013?). Não há adjetivo melhor para isso que não seja patético.

As lições da história
Não estamos entre os que consideram que o impeachment é um golpe, no sentido de que irá modificar substancialmente as instituições em direção a algo parecido com uma ditadura explícita e declarada. Isso não é necessário, já que sob o próprio PT a democracia burguesa foi aperfeiçoada com instrumentos de repressão como as UPPs, Força Nacional, Lei Anti-terrorismo, etc. Nesse sentido de um aumento drástico da repressão, entendemos que não há um golpe. Mas mesmo assim, mesmo que houvesse golpe, a última opção para a esquerda e os trabalhadores seria defender o governo do PT em si mesmo.
No caso de um golpe reacionário que modifique de fato o regime político, mesmo que seja para derrubar um governo burguês, a posição da esquerda e dos trabalhadores deve ser de lutar ao lado deste governo e seus defensores contra o golpe, mas sem perder a independência política. Esse é o ensinamento da tradição do movimento socialista. Isso significa que, mesmo em caso de golpe real, os trabalhadores devem ter suas próprias organizações e seu próprio programa, suas próprias reivindicações como objetivo da luta. No caso do Brasil e da derrubada do PT isso se aplica ainda mais. A luta não pode ser desviada para o objetivo de colocar de volta o PT no poder. É preciso que os trabalhadores se organizem de maneira independente e por reivindicações próprias.
É preciso retomar as lições da história. Todo governo burguês atípico, desde as frentes populares até o nacionalismo burguês do século XX (e do XXI, como o de Chávez em 2002), ao ser derrubado, tem a postura de evitar o enfrentamento e buscar até o final alguma forma de conciliação. Allende se suicidou, Jango se exilou, Chávez fez acordos com os golpistas. Nenhum deles tomou medidas radicais, nenhum deles apelou para as organizações da classe trabalhadora, nenhum convocou a população para resistir, para assumir o controle da produção, tomar as fábricas e as fazendas, tomar posse dos edifícios públicos, organizar-se em conselhos e assembleias, auto-defesas, pegar em armas, etc. O PT também não vai fazer isso.
Não é simplesmente que o PT não queira tomar tais medidas (e de fato não quer). Mas mesmo que quisesse, não conseguiria, porque ao longo de todo o governo trabalhou no sentido oposto ao que seria necessário para que fossem possíveis. A organização da classe, desde os locais de trabalho, os representantes sindicais de base, locais de moradia, estudo, etc., tudo isso foi esvaziado, ao invés de ser potencializado.
Esse é o problema de todas as direções políticas que como o PT rompem seus vínculos com a classe: não são capazes de organizar a luta. A única estratégia que enxergam é a institucional. Esse comportamento inevitavelmente conduz à derrota, com um agravante: a derrota dos projetos de conciliação de classe não resulta apenas em aniquilação dos seus dirigentes, partidos, movimentos, mas na derrota dos trabalhadores. Será esse o caso no Brasil, se a resistência contra a ofensiva direitista se limitar a funcionar como base para a recondução do PT ao governo.
O movimento contra o “golpe” não pode nos fazer retroceder para a década de 1990, quando se desviava toda a luta para a tentativa de colocar o PT no governo. Da derrota eleitoral de 1989 até a eleição de 2002, o PT trabalhou para fazer convergir as expectativas de todas as lutas para a suposta grande transformação que viria quando Lula chegasse ao governo. Agora, depois que o PT já esteve no governo e trabalhou no sentido oposto de todas aquelas lutas, o movimento não pode ser cooptado para lutar de novo apenas para colocar de volta o PT no governo. O movimento “não vai ter golpe”, ao ser instrumentalizado como simples defesa do PT, corre o risco de nos fazer voltar mais de duas décadas no passado. Isso seria um imenso contra senso e um desperdício. A luta tem que ir além desse objetivo limitado, construindo novas bandeiras, referências e organizações.

Não vai ter luta (se depender do PT)
O que não torna as coisas mais fáceis, de forma alguma. O bombardeio sobre os trabalhadores será pesado. O consenso construído entre os partidos de direita, a mídia e as camadas médias da população contra o PT tende a convergir em apoio ao novo governo PMDB/PSDB e na tentativa de legitimar suas medidas como necessárias para “tirar o país da crise”.
Boa parte do movimento “não vai ter golpe” está minimamente consciente disso e fala na necessidade lutar. O problema é que, retardando a consciência do tipo de luta e organização necessária, surge no meio do caminho e como obstáculo para o avanço da consciência e das tarefas correspondentes a tentativa fraudulenta de ressuscitar a memória do PT como organização combativa e o papel de Lula como seu líder máximo. É bastante tarde para atribuir esse papel ao PT. A começar pela própria forma como o governo e o partido (não) reagiram ao “golpe”. Para começar, o PT não convocou os trabalhadores em sua defesa, e para completar, os trabalhadores não o fizeram por conta própria.
A classe trabalhadora não se mobilizou para defender o governo do PT, porque sente sua vida se deteriorar por obra desse mesmo governo. A maior parte daqueles milhares de manifestantes contra o “golpe” é composta de alguns dos segmentos mais organizados da classe, da aristocracia operária, da pequena burguesia intelectualizada, da juventude universitária. Apenas uma minoria de trabalhadores da produção e dos setores mais precarizados tomou parte das manifestações. Mais importante para o que estamos discutindo, porém, não é a definição de qual estrato de classe pertencem os participantes do “não vai ter golpe!” e sim a avaliação do seu nível de organização.
A maioria dos participantes dos atos contra o “golpe” esteve presente mais como indivíduo do que como integrante de organizações e coletivos, com exceção dos burocratas dos sindicatos e militantes profissionais, que o fazem por dever de ofício. Esse estado de desorganização da classe trabalhadora não afeta apenas o pequeno setor que saiu em defesa do PT (mesmo não sendo estritamente petista). Afeta a maioria da classe, e esse é o maior problema.
O problema da derrubada do PT é que o partido não apenas cortou os seus próprios vínculos orgânicos com a classe trabalhadora, ele cortou os vínculos da classe consigo mesma. A classe trabalhadora no Brasil não reconhece mais os sindicatos e os movimentos sociais, não se organiza para lutar, não participa de associações, coletivos, entidades de qualquer tipo, a não ser em segmentos hoje muito minoritários. Com isso, a tarefa da burguesia de aplicar os ataques está facilitada. Esse é o segredo, afinal da trajetória do PT, sua chegada ao governo de forma tão bombástica e sua despedida de forma tão patética. O PT chegou ao governo por ser capaz de impedir que a classe trabalhadora entrasse em luta, e por isso foi aceito pela burguesia. Agora, o PT está sendo descartado porque a burguesia avalia que não haverá mais luta!
Não é que o PT não tenha mais o controle sobre os organismos dos trabalhadores, como a CUT, e os demais movimentos sociais. Esse controle ainda existe. Mas o PT não vai mais usar esses instrumentos para a luta! A CUT não é apenas uma central sindical governista, aliada ao governo de plantão quando este governo é do PT, é uma central pró-capitalista, adaptada ao capitalismo e à colaboração de classes. O modo de existência dos dirigentes sindicais cutistas, burocratizados e pelegos, está baseado no seu papel de intermediar os ataques contra os trabalhadores, as demissões, retirada de direitos, arrocho salarial, etc. Os “sindicalistas” existem para assinar e legalizar acordos lesivos aos trabalhadores, e vão continuar a fazê-lo, esteja o PT no governo ou não.
O aparato dos sindicatos funciona em função de si mesmo. Os dirigentes estão mais preocupados com seus próprios mandatos do que com o PT. No dia a dia, vão continuar participando de negociações com a patronal contrárias aos trabalhadores, como crianças bem comportadas que aprenderam a ser em algumas décadas de “sindicalismo cidadão”. Nos dias de festa, quando convocados, vão participar dos atos em defesa do PT, meio que como um juramento à bandeira, mas sem nenhuma convicção ou ideologia. Não é para eles uma batalha de vida ou morte (no caso dos demais movimentos sociais diretamente controlados pelo PT, como MST e UNE, as coisas podem ser um pouco diferentes, mas não o suficiente para mudar o quadro geral). Vão também continuar usando os aparatos para fazer propaganda eleitoral do partido, como bons burocratas e aparelhistas que são. Mas isso é tudo. Afinal, além da tênue esperança de barrar o impeachment no Senado, o que resta para o PT é construir a figura de Lula para as eleições de 2018.

Não vai ter conciliação!
Essa é a maior fragilidade da posição dos companheiros que se mobilizaram em torno do movimento “não vai ter golpe!”: o próprio PT não vai organizar a luta. Isso não faz mais parte da sua natureza. É bastante compreensível, como dissemos no início, que centenas de milhares de companheiros tenham se mobilizado, muitos espontaneamente, via redes sociais, sem um chamado oficial ou centralizado, contra as ameaças que estão por trás do impeachment. A ofensiva direitista não é desprezível. É compreensível, mas ainda assim é errado, pelo fato fundamental de que o PT não vai lutar contra o programa de Temer. No máximo, vai praticar uma oposição parlamentar, meramente verbal e bem comportada. O PT na oposição não será um ponto de apoio para a construção da luta dos trabalhadores contra o ajuste (mesmo porque estaria aplicando ele mesmo o ajuste se estivesse no governo).
O PT pode até mobilizar em defesa do mandato de Dilma ou da futura campanha de Lula, o que não é a mesma coisa que lutar contra o ajuste, e aí está uma armadilha perigosa. É preciso identificar os interesses de classe que estão movendo o processo de impeachment. A burguesia quer acabar com os direitos trabalhistas, quer aumentar a idade para aposentadoria, quer impor a negociação (através dos sindicatos pelegos) em lugar da CLT, quer impor a terceirização, a privatização do SUS, a privatização das empresas estatais restantes, o fim da estabilidade dos funcionários públicos, o fim da vinculação constitucional de verbas para saúde e educação, etc. Um verdadeiro massacre sobre os direitos, conquistas e patrimônios históricos dos trabalhadores. É preciso colocar os trabalhadores em luta contra esse ataque, e a questão central é que a defesa do PT não é um instrumento para essa luta.
A luta dos trabalhadores não pode ficar a reboque dos interesses partidários do PT. O objetivo do PT é voltar ao aparato do Estado, não é derrotar a burguesia. A política de conciliação de classe exclui a mobilização independente dos trabalhadores contra o “golpe”, porque tal mobilização questiona o próprio papel do PT como mediador da conciliação. O PT já foi rejeitado pela burguesia, que não considera mais necessário conciliar. Falta ser rejeitado pelos trabalhadores, a quem não é mais dado o luxo de conciliar: a única escolha é lutar!

Batendo em retirada
Dissemos acima que o papel essencial da burocracia sindical é a conciliação de classes (em favor da burguesia e contra os trabalhadores). Acessoriamente, a burocracia sindical é também instrumento do PT para mobilizar apoio (eleitoral, se tanto) na base da classe trabalhadora. Nesse sentido, porém, estão duplamente desmoralizados. Primeiro, que moral os burocratas terão para chamar os trabalhadores a se mobilizar em favor de um partido que até ontem estava ele mesmo aplicando o programa da burguesia? Não basta dizer que com o PMDB/PSDB vai ser pior, é preciso discutir bandeiras e organizar ações concretas contra essa deterioração: defesa do emprego, do salário, dos direitos, etc. O PT não está levantando essas bandeiras, está falando em “democracia” em abstrato (mesmo porque, o governo do PT pisoteou a democracia no concreto).
Segundo, a burocracia está desmoralizada porque o PT saiu do governo chutado pela porta dos fundos, não num processo normal ou eleitoral. Estão derrotados. Uma boa parte dos burocratas petistas simplesmente “vai pra casa”, não vai mais fazer política de nenhuma forma. Afinal, os anos de mamata nos cargos ministeriais, diretorias de estatais, fundos de pensão, etc., devem ter servido para fazerem o seu pé de meia...
Para os que permanecerem na “luta”, ou melhor dizendo, na ativa, o único papel que resta é o de cabos eleitorais de Lula. O partido se reduz a apêndice do dirigente carismático. Não lhe resta mais outro papel na luta de classes. Não há outra figura ou projeto, nem sequer embrionária ou remanescente, que proporcione coesão ou sentido ao PT, além do próprio Lula. O salvador da pátria sebastianista não pode se aposentar jamais.
Mas ainda assim é possível que essa burocracia convoque lutas e mobilizações, à sua maneira. Por tudo o que dissemos acima, entendemos que a esquerda e os trabalhadores não podem participar de nenhum tipo de atividade que tenha como conteúdo a simples defesa do governo Dilma atualmente em demonte. Participar de atos para reinstalar Dilma ou eleger Lula, não nos interessa. Participar de greves e ações que representam enfrentamento de fato contra a patronal, o governo que virá e seu ajuste, isso sim. E mesmo na luta, a esquerda e os trabalhadores devem atuar de maneira independente do PT. A luta deve ser travada com as bandeiras e reivindicações próprias dos trabalhadores, não do partido.

Luta de classes em estado puro
Para além disso, é preciso construir atividades e mobilizações próprias, que não dependam da burocracia petista, e que discutam a pauta e os interesses dos trabalhadores. Independentemente do PT e seus aparatos convocarem atividades contra o “golpe” ou em favor de Lula, o movimento dos trabalhadores precisa construir atividades próprias. Assembleias, plenárias, reuniões, comitês, fóruns, frentes, todos os tipos de iniciativas de aglomeração e nucleação são válidos neste momento para colocar em pauta, junto à base dos trabalhadores, um programa próprio da nossa classe para superar a crise. E neste momento, o chamado à unidade de todas as organizações, correntes, tendências, agrupamentos, militantes e ativistas é fundamental. Para construir uma nova referência de organização e de programa, que supere o PT e a CUT, vamos precisar de todas as forças. Somente a força combinada de toda a esquerda independente do petismo pode ter algum peso na tentativa de mover a classe trabalhadora contra os ataques.
Quem conhece a esquerda brasileira sabe que é praticamente utópico falar em unidade. O eleitoralismo, o sindicalismo, o burocratismo, o sectarismo e o oportunismo grassam em largas doses. As organizações estão mais preocupadas com a sua própria construção do que com o conjunto do movimento. Priorizam seus interesses em detrimento do conjunto da classe. Pensam na próxima eleição de sindicato ou para o parlamento. Mas estamos num momento em que a luta de classes fará a sua seleção. O centro das discussões tem que ser o interesse do conjunto da classe e a construção do movimento, e não os projetos de construção das organizações. Quem mantiver esse comportamento e os vícios do passado será varrido. Quem privilegiar a fragmentação, a auto-construção, a marcação de posição, os projetos particulares, a mera projeção de figuras públicas, não vai conseguir se colocar como parte do movimento da classe. Quem privilegiar aquilo que nos separa em detrimento do que nos une, ficará de fora do complicado e incerto processo de reconstrução das referências da classe no período pós-PT
Sem a mediação do lulopetismo, entramos no terreno da luta de classes em estado puro. Trabalhadores contra patrões e seus capangas no Estado e na mídia. No limite, para todos os que estão preocupados com a ofensiva direitista, não interessa se a chamamos de golpe ou não. Não importa quais organizações e ativistas estiveram no movimento “não vai ter golpe” (sob o risco de integrar a órbita do PT) e quais estiveram na tentativa de construir um campo independente dos trabalhadores (de diversas formas, algumas tragicamente equivocadas, como o “Fora todos, eleições gerais!”). Importa que somente o conjunto da esquerda atuando unificado e por fora do lulopetismo terá algum peso para influenciar os trabalhadores.
Só é possível derrotar a ofensiva direitista e o projeto da patronal e do Estado com a mobilização dos trabalhadores. E os trabalhadores somente se mobilizam por pautas concretas: defesa do emprego, contra as demissões, contra a retirada dos direitos, contra a alta de preços, em defesa dos serviços públicos, contra a dívida pública, contra a repressão, etc. É preciso chamar os trabalhadores para discutir uma pauta, com esses e outros pontos. Enquanto as organizações da esquerda estiverem se digladiando por palavras de ordem como “não vai ter golpe!” ou “eleições gerais”, ou qualquer outra, estaremos perdendo tempo na tarefa urgente de deixar para trás de vez o ciclo histórico do PT, iniciar novos projetos e referências e construir a pauta e a mobilização da classe.


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