Um debate
com a proposta do “Fora Todos”*
Em
textos anteriores sobre a situação do país temos
nos concentrado em debater com a posição de
companheiros que, não sendo vinculados ao PT e mantendo
críticas (muitas vezes profundas) aos governos de Lula e
Dilma, entendem que neste momento, em face de uma situação
de extrema gravidade, em que se dá uma ofensiva reacionária
no país, é preciso fazer unidade com o PT contra o
“golpe” da direita (ou lutar contra o “golpe” e a ofensiva
reacionária, mesmo que isso signifique estar no mesmo campo
que o PT, conforme esses setores se sentem mais confortáveis
em apresentar a si mesmos a questão). Uma vez que entendemos
que estes textos anteriores já demonstram suficientemente o
que pensamos a respeito, não vamos nos estender mais aqui nos
argumentos sobre essa posição. (ver:
http://politicapqp.blogspot.com.br/2016/04/o-pt-e-o-castelo-de-cartas-da.html
e
http://politicapqp.blogspot.com.br/2016/06/agora-e-golpe-ou-luta-de-classes-como.html).
Uma
outra posição que precisa ser debatida é aquela
que, desde o começo, passou a propor o “Fora Todos”,
nivelando Dilma, Temer, Cunha, Renan, etc. Também não
temos acordo com esta posição, e chegou o momento de
tratar dela. O “Fora Todos” rejeita todas as alternativas
políticas disponíveis, e se completa pela positiva com
o chamado a “Eleições gerais”. O pressuposto do
“Fora Todos” é de que se trata de “todos” os políticos
burgueses, inimigos da classe trabalhadora, e de que, através
de eleições gerais, os trabalhadores supostamente podem
eleger representantes fiéis aos seus interesses. Dessa forma,
a proposta procura se apresentar como uma alternativa radical e uma
saída contra todo o sistema político no seu conjunto.
Do alto
da sua generalidade, o “Fora Todos” tem a vantagem de poder
abrigar em seu interior posições opostas: ele pode
significar, ao mesmo tempo, “Fora Dilma” e “Fora Temer”.
Aliás, por uma questão de coerência, ele tem na
verdade a obrigação de abranger tanto o “Fora Dilma”
como o “Fora Temer”, e não pode ser de outra maneira. A
esquerda já fazia oposição a Dilma e agora faz a
Temer, mas o “Fora Todos” diz não só que eles devem
ser derrubados, mas que já podem ser derrubados. Depois que se
dá esse passo, não é possível voltar
atrás e diferenciar entre “uns” e “outros”, para
determinar quem vai ser posto para “fora” primeiro. É
preciso insistir no nivelamento de “todos”. Para dar esse passo,
é preciso acreditar que essa proposta é capaz de
unificar a indignação geral e dialogar ao mesmo tempo
tanto com os que se opunham a Dilma como com os que se opõem a
Temer.
Se essa
suposição se materializará na prática ou
não é o próprio processo que vai dizer. A
situação ainda está em aberto, mas num primeiro
momento, a impressão é de que o “Fora Todos” não
dialogou muito bem nem com os opositores de Dilma, nem com os de
Temer. Essa proposta não cresceu, pelo menos por enquanto.
Achamos muito improvável que isso aconteça, e a razão
disso é um dos motivos pelos quais somos contra essa posição,
que é a ausência de uma base social real. Para que se
possa derrubar “todos”, é preciso que haja uma força
social massiva e muito organizada, e no momento não há.
E não estamos falando de uma força social como uma
determinada quantidade numérica de pessoas, mas como classe
social organizada.
1. Quem
derruba quem?
A
burguesia esteve organizada ao substituir o gestor de plantão
no governo do país. Assim como esteve unificada ao eleger e
sustentar o PT, a burguesia decretou a hora da sua substituição.
FIESP, mídia, Judiciário e Congresso conseguiram
construir uma narrativa capaz de mobilizar um setor significativo da
população, em torno da ideia de que Dilma tinha que ser
removida. Mas o “Fora Todos” parou por aí. Depois de
Dilma, o “movimento” não foi além para derrubar
“todos”. A “revolta” com a corrupção se provou
mais uma farsa para acobertar os corruptos, conforme eles mesmos
confessaram em áudio. Depois que Dilma foi posta para fora, os
setores que defenderam o “Fora Todos” só conseguiram
mobilizar uma fração infinitesimal da base social que
apoiou a saída de Dilma.
E ainda
mais desconcertante, os que defendem o “Fora Temer” e o “volta
Dilma” também estão em muito maior número.
Assim, o “Fora Todos” permaneceu muito minoritário. Fazer
de conta que o atual “Fora Temer” é a mesma coisa que a
continuação do “Fora Dilma”, ou seja, uma espécie
de 2ª etapa do “Fora Todos”, exige uma dose cavalar de auto
engano. É preciso ignorar completamente a composição
de classe e a ideologia de cada um desses movimentos, como se não
fizesse a menor diferença quem (qual classe) está na
rua para derrubar quem (qual projeto político).
Para que
pudesse se realizar um “Fora Todos”, seria preciso que a classe
trabalhadora estivesse organizada da mesma forma que a burguesia
esteve, e não está. O “Fora Todos” desconsidera a
situação real da consciência e organização
da classe, ou no mínimo supõe que isso possa ser
improvisado da noite para o dia, por meio de palavras de ordem
“radicais”. Várias organizações políticas
estão defendendo o “Fora Todos”, com nuances e
diferenciações entre elas, e também com saídas
e alternativas “positivas” diversas. Algumas jogaram mais peso no
“Fora Dilma”, outras foram mais tímidas; algumas estão
mais abertamente no “Fora Temer”, outras nem tanto; algumas
defendem “eleições gerais”, outras não
exatamente. Na impossibilidade de tratar das muitas matizes entre
essas posições, tentaremos abordar os fundamentos
comuns da ideia do “Fora Todos”.
Um
desses fundamentos é o pressuposto da homogeneidade, como se
todos os processos da luta de classes nos últimos anos fossem
uma coisa só, um único processo de “rejeição
do governo”. Outro fundamento, baseado no anterior, é a
narrativa de que a classe trabalhadora está em ascenso. Essas
concepções serão discutidas nas seções
2 e 3, respectivamente. As seções 4, 5 e discutem as
Jornadas de Junho de 2013, acontecimento fundamental para a narrativa
do ascenso e do “Fora Todos”, e os aspectos ideológicos
contraditórios que emergiram deste acontecimento. As seções
7 e 8 apresentam as respostas que a esquerda elaborou para tentar
entender as Jornadas de Junho e o cenário que se criou depois
delas. E finalmente, nas seções 9, 10 e 11, explicamos
porque comparamos o cenário que se criou no país, desde
2013 até o impeachment em 2016, com a queda do Muro de Berlim.
2. O
pressuposto da homogeneidade
O “Fora
Todos” se baseia numa determinada leitura da situação
do país, segundo a qual os trabalhadores estão na
ofensiva da luta de classes, ou no mínimo, estão em
situação de revolta e insatisfação
prestes a explodir, bastando apenas algum tipo de faísca para
disparar o incêndio. E essa situação teria como
marco as Jornadas de Junho de 2013. Uma vez que, desde junho de 2013,
os trabalhadores estão rejeitando “todos” os políticos,
tanto Dilma e o PT, como o PSDB, PMDB e o restante dos partidos,
estaria assim justificado defender o “Fora Todos”. Em tal
concepção, a rejeição aos “políticos”
pode ser medida por fatores como o aumento do número de greves
e lutas sociais desde o início da década, as próprias
Jornadas de Junho em 2013, e o número muito grande de
abstenções e votos nulos e brancos nas eleições
de 2014 (para os cargos de governadores, senadores, deputados
federais e estaduais, houve muitos estados em que as abstenções,
brancos e nulos somados “ganharam” ou ficaram em 2º ou no
mínimo 3º lugar). Essa seria a base social para a defesa
do “Fora Todos”.
O
problema dessa leitura da realidade é tratar todos os
fenômenos desde Junho como se tivessem sido um único
processo, inteiramente homogêneo, com a mesma composição
social, a mesma base de classe e a mesma ideologia. Às vezes,
no interior do campo dos que defendem essa proposta, se fala em idas
e vindas, avanços e retrocessos, mas de uma forma a dar a
entender que houve apenas mudanças quantitativas e de
intensidade, como se o movimento fosse ora mais fraco, ora mais
forte, mas mantivesse a mesma identidade qualitativa, como se fosse o
tempo todo, desde 2013, o mesmo movimento. Segundo essa visão,
todos os fenômenos desde as Jornadas de Junho de 2013,
incluindo a greve dos garis do Rio em 2014, os atos contra os gastos
na Copa, a derrota da seleção, as eleições
gerais (desde o fenômeno Eduardo Campos/Marina até o 2º
turno e a reeleição apertada da chapa Dilma/Temer), a
decepção do eleitorado dilmista com o estelionato
eleitoral, as manifestações pró-impeachment, as
ocupações de escolas, a condução
coercitiva de Lula, a votação do impeachment, etc.,
tudo isso e muito mais ao longo desses anos foi uma coisa só,
um único “movimento de trabalhadores contra Dilma”.
Sendo
assim, de acordo com os que defendem essa posição, só
faltou a esquerda ser mais combativa para se colocar na direção
do processo. Se a esquerda tivesse conseguido assumir sua direção,
esse “movimento” poderia ter resultado na derrubada de Dilma na
forma de uma revolução. Essa é a suposição
em que se baseia a proposta do “Fora Todos”.
O erro
gritante desse raciocínio é que vários dos
processos listados acima foram socialmente heterogêneos e
politicamente opostos em seu projeto, discurso e ideologia.
Desconsiderar isso e enxergar tudo como um só grande
“movimento de trabalhadores contra Dilma” é expressão
de uma incompreensão radical ou desconsideração
absoluta da importância do estado real de organização
e consciência da classe. É uma visão ultra
simplista do fazer político, em que não há
nenhum papel protagonístico real para a classe. Desaparecem
nessa visão os trabalhadores de carne e osso, bem como a
importância da sua organização de base, dos
processos moleculares de resistência e formulação
de alternativas a partir de cada local de trabalho, moradia, estudo,
cada atividade social. O protagonismo está todo concentrado
nas “direções” partidárias, que, atuando no
nível da superestrutura política e relacionando-se
superficialmente com a classe, supostamente poderiam liderá-la.
3. A
eterna narrativa do “ascenso”
A ideia
de que a esquerda poderia ter alcançado a “direção”
do processo simplesmente agitando as palavras de ordem corretas expõe
portanto uma determinada concepção de “direção”,
em que os partidos/organizações dirigem as massas para
a revolução. Essa concepção transporta a
forma de relacionamento interno das organizações de
esquerda para a relação entre as organizações
e o conjunto da classe. No interior das organizações de
esquerda pratica-se o método de funcionamento em que os
dirigentes burocratizados comandam militantes de base tarefeiros e
acríticos (ver a respeito:
http://blogjunho.com.br/reinventar-a-esquerda-e-reorganiza-la/).
A esquerda pretende reproduzir esse mesmo funcionamento na relação
com a classe, com os militantes se imaginando “dirigentes” das
massas por decreto de autoproclamação. Não é
de se surpreender que, com tal comportamento, a esquerda siga sendo
uma força marginal na sociedade, e para todos os efeitos,
irrelevante na disputa política. Esse vício,
infelizmente, não é exclusivo dos setores que defendem
a proposta de “Fora Todos”.
Fechado
esse parênteses sobre o funcionamento da esquerda, voltemos ao
problema de se tratar de toda a imensa diversidade, complexidade e
contraditoriedade da realidade brasileira sob o denominador comum de
um único “movimento” homogêneo contra “todos” os
políticos. Para se adotar esse tratamento é preciso
forçosamente deformar a realidade, destacando somente os fatos
que se encaixam na visão desejada (as greves, lutas, revoltas,
apatia eleitoral) e descartando os que não se encaixam (as
derrotas, a repressão, a presença da ultradireita, o
imaginário conservador de amplas camadas da população).
É preciso minimizar os seus aspectos negativos e superestimar
os aspectos positivos, e com isso construir a narrativa de um
permanente “ascenso” dos trabalhadores.
Essa
narrativa serve certamente para motivar militantes menos experientes
e mantê-los sob controle dos dirigentes burocratizados, mas não
servirá como um guia para entender a realidade. Tirar política
com base nos desejos das organizações, mas não
na situação real da classe, pode até servir para
manter as organizações em atividade por algum tempo,
mas não vai servir para liderar a classe. Não estamos
dizendo que as organizações da esquerda precisam
converter cada trabalhador individualmente para o projeto, até
que todos se convençam da necessidade da revolução
e todos pensem a mesma coisa. Isso seria idealismo. O que estamos
dizendo é que o oposto também não funciona, e o
oposto é exatamente a situação que temos
atualmente: um total descolamento e estranhamento da esquerda em
relação ao grosso da classe trabalhadora.
As
narrativas de ascenso permanente exageram absurdamente as
possibilidades reais de mobilização e ação
da classe, para manter o discurso revolucionário das
organizações. Não poderemos aqui, por falta de
espaço, contestar a versão unilateral de cada um dos
fenômenos e processos citados acima, para desmontar tal
narrativa do “ascenso”. Falaremos apenas, de passagem, nas
próximas duas seções, das Jornadas de Junho,
tema que por si só bastante complexo.
4. Breve
narrativa das Jornadas de Junho de 2013
Para
começar a refutação da suposta “homogeneidade”,
basta lembrar que houve no mínimo duas fases muito distintas
nas Jornadas de Junho. A primeira foi quando a juventude trabalhadora
e as organizações de esquerda enfrentaram uma repressão
brutal numa série de manifestações contra o
aumento das passagens nas grandes cidades. A maior das manifestações
dessa fase teve por volta de 30.000 pessoas em São Paulo, no
dia 13 de junho, uma quinta-feira, e foi dispersada em uma verdadeira
batalha campal, com a polícia caçando manifestantes
noite adentro pelas ruas do centro (caçada da qual ainda
guardo lembranças bastante vívidas). Aquela
manifestação foi o máximo que a esquerda
conseguiu reunir. Naquele momento o MPL dirigia essas manifestações,
e os grandes partidos, PSTU e PSOL, demoraram a se incorporar, e
quando o fizeram quiseram se colocar artificialmente na direção,
como de praxe, sendo repudiados por isso.
A
repressão naquela noite de 13 de junho foi tão brutal e
teve tal repercussão que serviu como gota d'água para
transbordar o copo de indignação e insatisfação
que já estava se avolumando por muitos anos. O conjunto da
opinião pública se virou a favor dos manifestantes, e
contra os governos em geral, tanto Dilma quanto Alckmin e Haddad. A
partir daquele momento, ganhamos o direito de se manifestar
novamente. Uma barreira foi rompida, uma espécie de “estado
de sítio” que estava em vigor praticamente desde os anos FHC
foi revogado.
Na
segunda-feira seguinte, dia 17, centenas de milhares de pessoas
ocuparam a avenida Paulista e outras centenas de cidades do país.
Dessa vez, não apenas jovens da classe trabalhadora levados
pelas organizações de esquerda, mas pessoas de todas as
idades e todas as classes sociais, com um perfil político e
ideológico amplamente diversificado. A esquerda organizada
ficou invisível no mar de gente, ainda que estivesse presente.
As “massas” foram às ruas, mas como massas, não
como classes. Naquele momento, isso teve bastante impacto e não
pode ser menosprezado. O caráter antidemocrático da
democracia burguesa foi contestado, e os governos tiveram que recuar.
Não só revogaram o aumento das passagens, como
retiraram a polícia da rua, e fizeram algumas outras pequenas
concessões. Teve início assim a 2ª fase das
Jornadas de Junho. Dali por diante, passou a haver manifestações
praticamente diárias no país, com as mais diversas
pautas, durante os meses seguintes. As Jornadas de Junho não
tiveram um marco de encerramento formal, apenas foram se diluindo,
diminuindo de tamanho e de intensidade contestatória. A 2ª
fase terminou sem que tivesse havido uma 3ª.
O recuo
relativo da repressão, que se prolongou por alguns meses
imediatamente seguintes, permitiu que o clima de contestação
influenciasse as campanhas salariais do segundo semestre de 2013 e
produzisse logo depois um fenômeno como a greve dos garis no
Rio no início de 2014. Mas é evidente que o Estado e a
patronal não iriam ficar parados observando essa situação
e partiriam para o contra-ataque. Já no início das
manifestações contra os gastos na Copa que se
aproximava, em fevereiro de 2014, o cinegrafista Santiago Andrade foi
assassinado pela repressão no Rio, com o objetivo de montar
uma farsa judicial e midiática e colocar a culpa nos
manifestantes. Esse crime veio completar uma campanha massiva e
permanente que a mídia burguesa já vinha desenvolvendo
há meses para demonizar os “black blocs” e as
manifestações “violentas”, conseguindo o efeito de
reverter parcialmente o apoio da opinião pública às
manifestações. Os protestos se reduziram drasticamente
de tamanho e voltaram ao mesmo porte da 1ª fase das Jornadas de
Junho. Em relação ao aspecto do aspecto numérico
das manifestações, essa é a situação
que temos até hoje.
5. O que
mudou em uma semana
Mas bem
antes disso, retomemos um acontecimento crucial que se deu logo na
passagem da 1ª para a 2ª fase das Jornadas de Junho, que
foi o dia 20 de junho de 2013, uma outra quinta-feira, uma semana
depois da batalha campal contra a polícia. Nessa noite a
esquerda foi expulsa da avenida Paulista por grupos neonazistas, e
sob aplauso da massa de “manifestantes”. Na concepção
da massa confusa de indivíduos de diversas classes sociais que
ocupavam a Paulista, a esquerda, os “vermelhos” do PSTU, PSOL,
PCB, PCO e a miríade de outros grupos menores, eram a mesma
coisa que os corruptos do PT, que também usam vermelho (e que
estavam representados por alguns grupos ligados a tendências
minoritários do partido, que também estavam no local).
O público presente na Paulista naquela noite sequer sabia que
a mensagem da esquerda é diferente daquela do PT, o que deu
uma medida do quanto o peso dessa esquerda na realidade é
insignificante. Pateticamente, sem condições de
resistir, a esquerda teve que se retirar com o rabo entre as pernas.
Em uma
semana, a esquerda, que antes era protagonista, foi banida dos
protestos que ela mesma tinha inicialmente impulsionado. As
organizações não podiam mais se apresentar em
trajes na cor vermelha, para não serem confundidas com o PT. O
que mudou nesse intervalo não foi apenas o transcurso de tempo
de uma semana entre 13 e 20 de junho, mas o pêndulo da disputa
ideológica que se definiu. Esse intervalo de uma semana na
verdade foi o tempo suficiente para trazer à tona a correlação
de forças real da disputa ideológica entre projetos de
sociedade, encoberta durante mais de uma década de
lulopetismo. A insignificância da esquerda organizada fora do
PT e o peso avassalador da ideologia burguesa em suas diversas
variantes (em especial a mais conservadora) se manifestou de forma
cabal e transparente.
Depois
de ter uma medida inequívoca da rejeição que o
PT tinha acumulado em praticamente todas as camadas sociais, a
burguesia detectou a atmosfera propícia e se relocalizou. A
FIESP pintou seu prédio de verde e amarelo e se transformou
ela sim em direção efetiva das “manifestações”.
A insatisfação difusa e generalizada de todas as
camadas da população foi habilidosamente concentrada
pela mídia empresarial (Globo, Veja, Falha de São
Paulo, etc.) e seus mercenários, intelectuais orgânicos
da classe dominante, em uma única pauta, a corrupção,
e foi dirigida especificamente contra o PT. A “luta contra a
corrupção” se transformou numa bandeira nacional e
numa forma da burguesia descartar o PT. Isso quase aconteceu nas
eleições de 2014, mas foi construído ao longo de
2015, até chegar ao impeachment em 2016.
6. A
diferença entre massa e classe
Muitos
setores interpretaram a fraqueza do PT como se fosse a demonstração
da sua própria força, quando na verdade era a expressão
da predominância avassaladora da ideologia burguesa. As
Jornadas de Junho não foram, como muitos chegaram a
interpretar, uma oportunidade perdida pela esquerda para dirigir um
movimento que levasse à derrubada do governo Dilma. Foram o
momento em que se tornou patente que o PT tinha perdido a disputa
ideológica na sociedade, e que a esquerda na verdade jamais
havia sequer entrado de fato naquela disputa. Mas isso não
apareceu dessa forma naquele momento, pelo menos não para uma
boa parte da esquerda.
Durante
aqueles poucos dias em meados de junho de 2013, era como se não
existisse governo. As instituições estavam paralisadas.
Multidões nas ruas xingavam os governantes, cercavam e
ameaçavam invadir prédios públicos. Não
era difícil cair na ilusão de que o governo poderia ser
derrubado com facilidade. Para não cair nessa ilusão,
seria preciso ter o critério de que, naquele momento, ainda
que uma boa parte das pessoas nas ruas fossem trabalhadores (a
maioria da sociedade é sempre composta de trabalhadores), a
forma e as pautas com que se apresentavam eram as mais diversas.
Esses trabalhadores não se apresentavam como classe ou como
coletivo organizado, mas como indivíduos. Estavam dissolvidos
em multidões. Cada um tinha sua própria bandeira, cada
um era um “partido de si mesmo”. As Jornadas de Junho abriram um
espaço no interior da democracia burguesa, o direito de
manifestação, que ela nominalmente garante, mas que não
vinha sendo respeitado, e passou a ser. Para além desse avanço
momentâneo e reversível (ou atualmente em processo de
reversão), não houve conquistas significativas.
É
importante fazer essa demarcação para não perder
de vista o critério que separa a democracia burguesa da
democracia operária. Na democracia burguesa os indivíduos
se diluem numa massa amorfa de eleitores, quantitativamente
nivelados. Na democracia operária os indivíduos se
organizam de forma coletiva e estruturada, a partir de seu papel na
reprodução social. Cada local de trabalho forma um
coletivo e discute sua direção. Da mesma forma, em cada
local de moradia, de estudo, e assim por diante. A participação
dos indivíduos é qualificada conforme o papel que
cumprem na reprodução social e as atividades de que
participam. As questões são diretamente decididas por
aqueles que estão envolvidos, desde as mais imediatas e locais
até as mais gerais e nacionais. Há uma coordenação
desde as instâncias de decisão locais até as
nacionais, mas a partir de uma base social estruturada.
Não
foi nada disso que despontou em Junho, e sim uma massa de indivíduos
nas ruas (entre eles, uma parte de trabalhadores), desestruturados,
sem organização e sem unidade. Todos insatisfeitos, mas
sem uma pauta hierarquizada, apresentando questões de todos os
níveis, sem qualquer ordem, distinção de
importância, eixo ou projeto totalizante. Aumento das
passagens, corrupção, homofobia, inflação,
fim do escanteio curto, Jesus Cristo, era tudo a mesma coisa. Para
que as manifestações pudessem tomar outro rumo, seria
preciso que houvesse um trabalho prévio de organização
e politização, que não houve. Essa conclusão
não apareceu imediatamente. O que apareceram foram as diversas
posições da esquerda, que discutiremos logo a seguir,
nas seções 7 e 8. Em seguida, a partir da seção
9, trataremos de voltar às raízes profundas da mudança
drástica do “clima”ideológico que descrevemos na
seção 5.
7. Das
Jornadas de Junho para o impeachment
No
rescaldo das Jornadas de Junho, surgiram ou se consolidaram as três
posições da esquerda que viemos debatendo nos textos
anteriores:
1ª)
um setor que (mesmo sendo crítico do PT) desde o começo
identificou a ameaça de “golpe da direita” e se perfilou
na defesa do PT, chamando voto crítico em Dilma nas eleições
de 2014, engrossando o movimento “não vai ter golpe” e
hoje aderindo ao “volta querida” (mesmo que não queiram
reconhecer, estão reforçando o PT);
2ª)
um setor que permanece cego para a defasagem ideológica e a
falta de organização e referências da classe, e
segue entendendo tudo que aconteceu desde junho de 2013 como um único
e homogêneo “ascenso” dos trabalhadores, e por isso defende
o “fora todos”, mas sem conseguir uma base social real;
3ª)
um setor que desde aquele momento apostou na transferência do
clima de contestação aberto por Junho para as lutas dos
trabalhadores, de modo que a classe pudesse desenvolver novas
referências, organizações e projetos, já
de forma independente do PT e da oposição burguesa, e
que acaba sendo o menor dos três;
A
primeira posição, como dissemos, já vem sendo
criticada em textos anteriores. Seguiremos aqui na crítica da
segunda posição. Um de seus erros está na
definição do caráter de classe do movimento que
veio resultar no impeachment de Dilma. Segundo a sua visão, a
onda de protestos, desde as Jornadas de Junho até as marchas
de verde-amarelos na Avenida Paulista, é composta de
“trabalhadores”, na sua maioria ou pelo menos em parte. E como
supostamente são “trabalhadores” de verde e amarelo, a
esquerda deveria organizá-los.
Em
relação à segunda fase das Jornadas de Junho a
afirmação de que eram compostas de trabalhadores requer
uma qualificação para fazer algum sentido, como
expusemos nas três seções acima. Em relação
ao movimento pelo impeachment tal afirmação é um
absurdo gritante. Inúmeras pesquisas feitas em todo o país
no interior dos atos pelo impeachment apontam para um perfil muito
bem definido dos “manifestantes” verde e amarelos: cor da pele,
faixa etária, escolaridade, nível de renda mostram sem
sombra de dúvida, de maneira inquestionável e
insofismável, que se tratava da parte de cima da pirâmide
social brasileira.
Quem
esteve na avenida Paulista e em centenas de cidades vestindo verde e
amarelo foi a pequena e a alta burguesia, a elite branca, na sua
maioria racista, machista, hipócrita. Quem não quer se
dar ao trabalho de ler as pesquisas pode ver as fotos das
manifestações pró-impeachment numa cidade como
Salvador, em que as linhas demarcatórias de raça e
classe se combinam quase perfeitamente. Numa cidade com 90% de negros
(ou seja, onde a massa da classe trabalhadora é negra), não
se via um negro nas manifestação de verde e amarelos.
A
afirmação de que a “classe trabalhadora” estava nos
protestos contra o impeachment cai por terra. Dizer que havia
trabalhadores nessas manifestações ou mesmo um setor da
pequena burguesia, profissionais liberais, que poderia ser organizado
pela esquerda, não muda o caráter de um processo
hegemonizado claramente pela burguesia. Uma coisa é constatar
que os trabalhadores estão presentes numa manifestação,
outra coisa é dizer que isso automaticamente faz com que essas
manifestações sejam progressistas. Nos atos pelo
impeachment, se havia trabalhadores, eles estavam em minoria. E não
só numericamente, mas ideologicamente, para além da
questão pontual do impeachment, o conteúdo implícito
que essas manifestações reforçaram era
totalmente conservador e oposto aos interesses da nossa classe.
Disputar os trabalhadores e setores da pequena burguesia para que não
caiam prisioneiros dos projetos reacionários é uma
tática que pode e deve ser aplicada nas devidas
circunstâncias, que não estavam presentes nos atos pelo
impeachment.
Não
pode ser tabu para a esquerda reconhecer que a burguesia existe e se
mobiliza, e que a direita e a extrema-direita também mobilizam
e estão na disputa. Reconhecer isso faz parte do processo de
entender as condições reais da disputa em que estamos.
Identificar que existe uma direita atuante no país não
significa perder a independência de classe e buscar socorro na
burocracia petista. Reconhecer que a direita está na ofensiva
não significa dizer que seria preciso defender o PT. Esse tipo
de racicínio mecânico e dualista serve para escolher um
time de futebol para torcer, não para a política. Foi a
burguesia que mudou de posição em relação
ao PT, não foi o PT que mudou e deixou de ser aquilo que era.
O PT era e é um partido burguês, um instrumento da
classe dominante, e isso não mudou. Não é porque
a burguesia rejeitou o PT que o partido supostamente passou a ser,
por passe de mágica, uma opção para os
trabalhadores. O PT não mudou, e continua sendo o que é,
uma barca furada, um beco sem saída, uma armadilha e um
engodo, que não servirá para enfrentar a ofensiva
reacionária.
8. O
escolasticismo sindical
Se de um
lado houve setores que superestimaram a presença de
trabalhadores nas manifestações “verde amarelas”,
de outro houve setores “escolásticos” que se negaram a
reconhecer que alguma coisa nova estava acontecendo a partir de
Junho. Para esses setores, distribuídos entre as três
posições da esquerda, as Jornadas de Junho não
eram um espaço a ser disputado, porque nelas simplesmente “não
havia trabalhadores”. Não é que estavam
desorganizados ou em minoria, como dissemos acima, mas que
simplesmente “não existiam”. Para esses setores, o
trabalhador só existe quando está no seu local de
trabalho. Ou pior, o trabalhador é apenas aquele que vai ao
sindicato e faz greve. Excetuando-se essa situação, não
se enxerga o trabalhador, não se ouve e não se dialoga
com sua realidade.
Esses
setores da esquerda passaram as últimas décadas
esperando que a massa dos trabalhadores comparecesse aos sindicatos
para que ela pudesse organizá-los. Essa esquerda confunde
“centralidade do trabalho” e da classe trabalhadora com
fetichismo e aparatismo sindical. A esquerda, e principalmente o
setor que se define como “marxista-leninista” ou
“marxista-leninista-trotskista”, não entende o que é
centralidade do trabalho, pois sua concepção e prática
apontam justamente para o oposto disso.
O que
esses setores colocam em prática é a centralidade da
política, que é justamente o desvio da luta de classes
para a ocupação de espaços de poder no Estado,
com a ilusão de que através do poder do Estado se pode
administrar ou controlar o capital. Por isso, essa esquerda
desenvolve a obsessão com a tomada do poder político,
como se fosse a solução de todos os problemas. E é
para isso que a esquerda trata a base dos trabalhadores como massa de
manobra, como força social a ser usada para a tomada do poder
político, ou seja, como bucha de canhão. É para
usar os trabalhadores como “gado” que a esquerda disputa
obsessivamente os sindicatos, supondo que através do controle
dos sindicatos irá “mobilizar” os trabalhadores e derrotar
a burguesia, chegando ao poder do Estado. E ao chegar ao poder, a
esquerda imagina que irá controlar o capital. Esse é o
arremedo de estratégia que temos hoje em vigor na maior parte
da esquerda.
A
centralidade do trabalho, ao contrário dessa caricatura, é
a concepção de que o conjunto das diversas formas de
alienação se originam na alienação do
trabalho, que é a fonte do poder do capital, que hoje coloca
sob seu comando todas as esferas da vida social. Sendo assim, a
emancipação do trabalho só é possível
rompendo-se com o poder do capital no local onde ele é gerado,
ou seja, nos microcosmos da reprodução social, nos
locais de trabalho, num processo coordenado, organizado e consciente.
Esse processo envolve certamente a destruição do poder
político materializado na forma do Estado e a construção
de um poder político transicional. Mas a revolução
é antes de tudo um processo social, de superação
da alienação, de inversão da posição
atual, em que os trabalhadores se tornem sujeitos e assumam o
controle dos processos econômicos, políticos, culturais,
etc. A “tomada do poder”, o sonho messiânico da esquerda
revolucionária, é só uma parte do processo, e
talvez mesmo a parte mais fácil de uma verdadeira e profunda
transformação social.
O que a
esquerda pratica hoje é um fetichismo da disputa sindical como
suposta via para a “direção” da classe e a
conquista do poder político. Com isso, se menospreza todo um
amplo espectro de lutas sociais, por conta desse fetichismo sindical.
As Jornadas de Junho serviram também para demonstrar que a
esquerda não acompanhava ou dialogava com uma série de
outras questões que afetam o dia a dia dos trabalhadores. E
foram justamente as questões que passaram a pautar o debate
público desde então, como a luta por serviços
públicos, por saúde e educação, por
transporte público, mobilidade urbana, acesso à cidade,
moradia, além de outras questões que sempre estiveram
na pauta (mas eram ignorados pela esquerda sindicaleira), como as
lutas contra o racismo, o machismo e a LGBTfobia, etc.
9. O
muro que caiu na cabeça da esquerda
As
raízes profundas da virada ideológica que identificamos
acima na 2ª fase das Jornadas de Junho remontam à queda
do Muro de Berlim. Para entender como esse acontecimento tem
paralelos com as respostas atuais de setores da esquerda brasileira
para a crise em andamento, é preciso traçar a
genealogia das respostas que foram dadas na época para esse
fato histórico de importância decisiva.
Quando o
Muro de Berlim e a URSS caíram, uma parte da esquerda
raciocinou da seguinte forma: 1º) a burocracia stalinista é
o maior obstáculo para a revolução socialista;
2º) a burocracia desmoronou; 3º) logo, estamos às
portas da revolução socialista mundial. Foram as
famosas “Teses de 90” da LIT – Liga Internacional dos
Trabalhadores, tendência trotskista orientada pelas elaborações
de Nahuel Moreno. O principal herdeiro dessa posição no
Brasil hoje é o PSTU, que comanda a LIT, mas há também
outros grupos que reivindicam a herança morenista.
A falha
desse raciocínio é evidente. Não é
verdade que a burocracia stalinista fosse o maior obstáculo
para a revolução. O maior obstáculo era na
verdade a completa ausência de qualquer movimento na direção
da revolução. Não seria possível haver
uma “direção revolucionária” no momento da
queda do stalinismo sem que houvesse um movimento revolucionário
a ser dirigido. E não havia tal movimento, nos países
em que vigorava o stalinismo, porque neles a vigência dos
mecanismos alienantes da relação capital (não do
capitalismo, que não é a mesma coisa) não
poderia gerar uma subjetividade capaz de lutar pela revolução.
Acompanhando
a reprodução material, estão as formas
ideológicas correlatas. A forma de existência determina
a forma de consciência. A vigência das relações
capitalistas alimenta cotidianamente as formas ideológicas
correspondentes, as diversas variantes da ideologia burguesa, o
imperialismo, o nacionalismo, a religião, etc. O maior
obstáculo para a revolução não é
apenas o poder político estruturado no Estado capitalista ou
pós capitalista, mas as relações de produção
alienadas na forma de capital. É isso que tem que ser
revertido. O poder do capital tem que ser quebrado lá onde é
gerado, em cada local do trabalho, em cada processo de reprodução
social. Esse é o maior obstáculo para a revolução.
É preciso que a classe esteja organizada para derrubar não
apenas o poder político do Estado, mas o poder econômico
do capital.
No
momento da queda do muro, a classe não estava organizada para
isso, nem nos países pós-capitalistas, nem no mundo
capitalista. Ao contrário do prognóstico morenista, a
década de 1990, na sequência da queda do Muro e da URSS,
foi uma década de ofensiva brutal da burguesia em nível
mundial, tanto econômica quanto política e ideológica.
A “globalização”, a abertura dos mercados, a
especulação financeira, as privatizações,
a reestruturação produtiva, a retirada de direitos,
tudo isso foi politicamente facilitado pelo discurso de “fim do
socialismo”, “fim do marxismo”, “fim da história”,
“fim das narrativas”, etc. (e de novo, reconhecer isso não
significa assumir que o regime pós-capitalista da URSS e
outros teria que ser defendido, mas que era preciso que houvesse uma
alternativa de independência de classe). Esse discurso de “fim
da história” foi prontamente aceito por organizações
de viés reformista, como o PT no Brasil, que assim absteve-se
da devida resistência à ofensiva burguesa e adaptou-se
ao neoliberalismo. Aos poucos, o PT rompeu a barreira de classe e
localizou-se do outro lado da trincheira social e política. E
paralelamente a isso, a consciência dos trabalhadores formada
na nova situação adaptou-se ao individualismo, à
meritocracia, ao consumismo, etc.
10. Onde
a esquerda falhou
Para o
morenismo, o PT era uma espécie de “Muro de Berlim” ou
obstáculo para a tomada do poder no Brasil. A partir do
momento em que “as massas estão nas ruas contra o PT”, é
hora de defender o “Fora Dilma” e a derrubada do governo. Esse
raciocínio mecânico é uma espécie de
reprodução das Teses de 90, em escala brasileira. Uma
parte da esquerda tentou conduzir a insatisfação
popular para o “Fora Todos” no momento em que a burguesia punha
em pauta o “Fora Dilma”, e errou feio o alvo, por não
contar com o respaldo de uma organização e politização
real da classe. Ao agir dessa forma, essa parte da esquerda diluiu-se
num projeto claramente hegemonizado pela direita tradicional (contra
a direita atípica, o PT).
Além
disso, esse tipo de palavra de ordem voltado para o ocupante do cargo
máximo do Estado deixa de lado a discussão de que, mais
do que mudar a direção do Estado, é preciso
superar o capitalismo. Concentrar as expectativas na ilusão de
que a mudança de um governante pode resolver os problemas só
serve para reforçar a continuidade da crença no Estado
e no conjunto do sistema. Falar em “Fora Dilma”, “Fora Temer”,
“Fora todos”, sem que haja organização para que a
classe assuma o poder, é o mesmo que falar “voltem todos”.
Remover os governantes não modifica o governo, uma vez que o
Estado como tal não é alterado.
O Estado
pode muito facilmente solucionar a crise política promovendo
novas eleições para reciclar o governo. Novas eleições
produzem novos governantes que pertencem à mesma classe social
dos que saíram. A questão de fundo não é
qual partido ocupa o governo, mas qual classe social impõe seu
projeto de sociedade. E para isso, as eleições podem
até ser um método de diálogo com uma população
mais ampla, com muitíssimas ressalvas, mas ainda assim estão
longe de ser o método principal de ação, como é
hoje para alguns setores da esquerda. Além disso, a proposta
de eleições gerais ajuda a burguesia a entender como
ela poderia resolver a crise política a seu favor, engendrando
um novo governo devidamente legitimado pelo ritual das urnas, forte e
incontestado, para seguir aplicando o projeto de gestão do
capital em sua nova fase.
Insistimos
no ponto de que a esquerda foi incapaz de desenvolver um grau de
organização e politização capaz de
justificar a proposta de um “Fora Todos”. A omissão da
esquerda não se deu apenas nas Jornadas de Junho de 2013 ou no
impeachment de 2016. Esses processos simplesmente demonstraram à
esquerda o seu real tamanho. A omissão se deu muito antes,
durante as décadas de convivência à sombra do PT.
Durante essas décadas a esquerda brasileira se especializou em
disputar sindicatos e entidades assemelhadas ou lançar
candidatos para as eleições gerais. Esse trabalho
limitado foi praticado em piloto automático como se fosse o
equivalente do trabalho de organização da classe e
disputa de consciência que deveria estar sendo feito, e não
foi. Ao invés de uma disputa real pela consciência e
organização de cada categoria e local de trabalho,
travaram-se disputas superestruturais pela direção dos
organismos.
Esse
tipo de disputa superestrutural não serve nem sequer para o
próprio trabalho sindical. Pois muitos dos setores de esquerda
que chegaram à direção de alguns sindicatos e
entidades descobriram que estavam apenas dirigindo aparatos, mas não
dirigindo realmente, ideológica e politicamente, as categorias
que essas entidades representam. Não eram uma liderança
real reconhecida pelos trabalhadores para além das questões
imediatas de negociação salarial. Não
influenciavam o pensamento dos trabalhadores sobre as questões
sociais decisivas. A esquerda dirige os sindicatos como cascas
vazias, de forma tão burocrática e artificial quanto o
próprio PT.
Se a
prática da esquerda ao longo dos anos de hegemonia do PT não
atende os requisitos necessário nem sequer para o trabalho
sindical, o que dizer então para a disputa de poder na
sociedade? No momento em que seria necessário ter uma base
social organizada para enfrentar o momento de queda do PT, não
havia. Porque assim como a queda do Muro de Berlim e da URSS
fortaleceu a direita mundialmente, a queda do PT no Brasil produziu a
mesma coisa, uma ofensiva reacionária.
11. A
queda do muro, parte 2: o PT
Quando o
PT neoliberal sai do governo, em 2016, uma nova onda da queda do muro
se produziu no Brasil. O PT não era esquerda, nem socialista,
nem anticapitalista, etc., nem nada disso. Mas só quem sabe
disso é a própria esquerda. Uma coisa é o que a
esquerda sabe sobre a realidade, outra coisa é como essa
realidade aparece para o restante da sociedade. Aquilo que a maioria
das pessoas pensa sobre a realidade ou a imagem que elas tem da
realidade faz parte da própria realidade, sob a forma de
ideologia. Para o restante da sociedade, o PT era o que havia de
esquerda. Assim, além da queda do PT não ter aberto o
caminho para uma ofensiva da esquerda, serviu ao contrário,
para facilitar a ofensiva da direita.
É
evidente que a imensa maioria da população brasileira
estava contra o PT, trabalhadores e não trabalhadores. Mas a
grande maioria dos trabalhadores apenas está insatisfeita, mas
não está mobilizada (nem para derrubar o governo, nem
para apoiá-lo). Quem se mobilizou de fato para derrubar Dilma
não foi a maioria dos trabalhadores, foi uma outra parte da
população, que levou um setor de trabalhadores a
reboque. Quem se mobilizou foram camadas médias da população
(aquilo que normalmente e de maneira não científica se
chama de "classe média"). Quem estava nas
manifestações de verde e amarelo era uma maioria
pertencente a essas camadas médias, seguida por uma minoria de
trabalhadores que participaram do processo e uma maioria de
trabalhadores olhando de longe.
Essa
maioria de setores médios vestidos de verde e amarelo serviu
como massa de manobra para a derrubada do PT. Serviram para legitimar
um discurso da oposição de direita de que o PT =
esquerda e esquerda = corrupção. A narrativa inventada
pela direita se fixou em largas camadas da opinião pública,
ou seja, vários segmentos de diferentes classes sociais,
estabelecendo a versão de que esquerda, comunismo, socialismo,
luta de classe, organizações dos trabalhadores,
sindicatos, movimentos sociais, etc., são sinônimos de
oportunistas que querem se eleger para roubar. De acordo com essa
narrativa os movimentos de negros, mulheres, LGBTs são
compostos de “vitimistas”, de pessoas “ressentidas” que
culpam a sociedade pelos seus problemas (que segundo essa versão
são de origem individual). E ainda, os pobres que participam
dos movimentos sociais são “vagabundos” que não
querem trabalhar e querem viver às custas do “cidadão
que paga impostos”.
O
“coxinha” das manifestações verde e amarelas é
o “cidadão que paga impostos”, que se sente roubado pelos
“vagabundos” que “não querem trabalhar” e foram
aliciados pelo PT corrupto. É essa a narrativa que se fixou,
não foi a da luta de classes. O “coxinha” não sabe
que os vagabundos que vivem às custas dos impostos que ele
paga são na verdade os banqueiros, os latifundiários,
os industriais, etc. O saque do dinheiro público, na forma do
pagamento de uma dívida pública fraudulenta,
empréstimos a juros subsidiados, incentivos fiscais, etc.,
beneficia a alta burguesia, mas a pequena burguesia desenvolveu um
ódio patológico e irracional contra a base eleitoral do
PT.
O que
importa para o caso é que nem o PT teve forças para
contestar essa narrativa (porque foi justamente a sua prática
concreta no governo e nos movimentos sociais que deu fundamento a
ela), nem muito menos a esquerda. Então é muito
superficial dizer que a esquerda deveria ter ajudado a derrubar o PT
porque a "população" estava revoltada com a
corrupção, sem enxergar o processo de fundo de
fortalecimento das concepções de direita. Da mesma
forma que seria equivocado defender o PT, que é o causador de
tudo, como suposta via de resistência contra a “direita”.
Os
setores reacionários aproveitaram a queda do PT para
desencadear um ataque contra todo o legado histórico da
esquerda no país. As ideias de comunismo, socialismo, luta de
classe, organismos de luta, sindicatos, associações,
movimentos sociais, movimentos de mulheres, de negros, de LGBTs,
etc., foram todas colocadas numa vala comum como se fossem sinônimo
de tramóias dos corruptos do PT para enganar os pobres ou
aglutinar os “vagabundos” que não querem trabalhar e
culpam a sociedade pelos seus problemas. Ao desmoronar, o PT leva
consigo o prestígio e a imagem da esquerda, que ele já
não mais representava. Esse é na verdade o maior crime
do PT, e uma das razões pelas quais é um erro dar
qualquer tipo de apoio ou fazer qualquer tipo de unidade com o PT.
Para resgatar a esquerda, é preciso urgentemente se delimitar
e demarcar da imagem e do projeto do PT.
No caso
da queda do Muro de Berlim e da URSS, para evitar a ofensiva da
burguesia, a esquerda não deveria ter defendido aqueles
regimes como “modelo” de socialismo, mas ter um projeto
socialista estruturado para apresentar como alternativa. Não
tinha, porque nem sequer entendia o que eram a URSS e seus satélites,
o que havia de defensável e de falhos nesses países,
etc. Hoje, no Brasil era preciso que a esquerda tivesse um
entendimento correto do que é o PT e uma relação
mais orgânica com a classe. Não tem. Assim como na queda
do muro seria um erro defender os regimes que lá existiam tais
quais eram, na queda do PT, a esquerda não deve fazer unidade
com a burocracia petista para evitar o crescimento da “direita”,
mas organizar um projeto independente baseado na luta dos
trabalhadores.
*No
momento em que este texto estava sendo finalizado, tomamos
conhecimento de que a principal organização que defende
a proposta de “Fora Todos”, e uma das principais organizações
da esquerda brasileira, o PSTU, acaba de sofrer um racha em que
perdeu quase metade dos seus militantes. A carta de ruptura dos
militantes que saíram e a resposta do partido, ainda que
relevantes para a questão que estamos debatendo, não
poderiam ser abordadas aqui, por envolver uma discussão sobre
uma série de outros aspectos, e teriam que ser tema de um
texto em separado.
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