29.7.16

Escola "sem partido", na verdade é com partido único



O movimento “Escola sem partido” é mais uma frente de ataque da burguesia contra os trabalhadores, dedicado a perseguir professores e profissionais da educação que tenham uma atuação minimamente progressista, cerceando a liberdade de cátedra e retirando o caráter laico da educação pública, para impor valores ultraconservadores e retrógrados, baseados numa visão de mundo religiosa. O “movimento” busca aprovar leis que impeçam os professores de controlar o conteúdo de suas aulas, e enquanto tais leis não existem, ele usa brechas na legislação existente para perseguir professores que tentem exercer a liberdade de cátedra.
Logo de saída, quando se observa o “projeto” mais de perto, algo cheira muito mal: não é uma iniciativa de profissionais da educação, professores, pedagogos, etc., pessoas envolvidas no ensino e no dia a dia das salas de aula e na realidade das escolas em geral. Nem partiu de cientistas, acadêmicos, pesquisadores, etc., pessoas envolvidas na produção e difusão do conhecimento. Pelo contrário, o “projeto” é uma iniciativa de políticos e religiosos oportunistas, que querem evitar qualquer tipo de discussão crítica da sociedade nas escolas. Em resumo, eles não querem uma escola “sem partido”, eles querem que o partido deles possa mandar e desmandar sem ser questionado. Querem uma escola de partido único.
Esse “movimento” está baseado numa série de mitos sobre os problemas da educação brasileira, que é preciso desmistificar e combater.

1. O verdadeiro problema da educação é a falta de financiamento e baixos salários, devido ao desvio de verbas públicas para os lucros privados.
Primeiro, o mito de que o problema da educação é a “doutrinação ideológica”. Como se os professores estivessem organizados para “manipular” as mentes frágeis de crianças e adolescentes, usando de sua autoridade e influência para difundir determinado projeto de sociedade, que é oposto ao dos defensores do movimento. Na verdade, o maior problema da educação brasileira é a falta de investimento dos governos federais, estaduais e municipais. Devido à prioridade do orçamento público, que é cevar os agiotas da especulação financeira (quase metade do orçamento é desviado para pagar uma dívida pública fraudulenta, chegando a quase R$ 1 trilhão por ano), não sobra quase nada dos impostos que nós pagamos (e que a burguesia não paga) para que o Estado possa investir nos serviços que realmente interessam à população, como a educação, a saúde, os transportes, moradia, saneamento básico, etc. No momento atual de crise econômica no país (parte de uma crise estrutural do capital em nível mundial), a linha dos governos tem sido de cortar ainda mais o investimento em serviços públicos para conseguir mais verbas para salvar os negócios capitalistas.
Nesse contexto, as escolas brasileiras, que já são precárias, não possuem estrutura, equipamento, bibliotecas, laboratóros, etc., tendem a piorar ainda mais. Os salários dos professores são de fome, o piso nacional da categoria é letra morta e não é cumprido (e ainda que fosse, é muitíssimo insuficiente), as condições de trabalho são as piores possíveis, com superlotação das salas, sobrecarga de serviços burocráticos, falta de tempo para preparação de aulas, formação e reciclagem, etc. Os professores consomem um tempo imenso em sala de aula apenas para controlar a indisciplina e conseguir falar alguma coisa. Fora da sala de aula, são obrigados a usar seu tempo livre preparando aula, ou muito pior, em tarefas burocráticas exigidas por gestões escolares autoritárias, militarescas, medievais. A categoria é uma das que mais adoecem no país e recentemente uma professora se suicidou em Sergipe por ficar meses sem receber salário (http://www.jornaldodiase.com.br/noticias_ler.php?id=20798). Esse foi apenas o mais recente de vários casos que têm acontecido no país. Os professores são uma das categorias que mais adoecem no país em função da precariedade das escolas, baixa remuneração, excesso de serviço dentro e fora da sala de aula, etc.
Esse estado geral de precariedade é na verdade verdadeiro grande problema da educação no país. Qualquer movimento que queira seriamente questionar a precariedade da educação no Brasil precisa passar também por uma reorganização da categoria dos professores. A organização sindical da categoria é controlada nacionalmente pela CNTE, confederação vinculada à CUT, uma instituição pelega, pró-patronal e pró-capitalista, que não organiza as lutas e não discute os problemas da educação com a sociedade. Qualquer luta da categoria, como algumas fortes greves estaduais que vimos nos últimos anos, tem que ser feita também contra essa direção sindical e apesar dela, por meio da mobilização de base. Então, também é preciso afirmar que não existe qualquer organização dos professores para “doutrinar” os alunos, pois a categoria sequer consegue se organizar para lutar por sua sobrevivência.

2. Não existe “doutrinação” em escolas, e a verdadeira produção e difusão da ciência e do conhecimento é democrática por natureza
O segundo mito é a própria ideia de “doutrinação ideológica”, como se as salas de aula fossem um campo de pregação e de proselitismo. Esse mito revela uma visão extremamente tosca, primitiva, desinformada, do que é o trabalho educacional, a produção e a difusão de conhecimento científico. Só pode ser difundido por pessoas que não tiveram qualquer tipo de formação científica real e não entendem o mínimo sobre o funcionamento do trabalho intelectual. A doutrinação era uma prática de séculos atrás, quando as escolas e universidades eram controladas pelas igrejas e instituições religiosas, e transmitiam dogmas na forma de catecismo. Depois da separação entre igreja e Estado, as escolas, como instituições públicas, passaram a ter compromisso com a difusão da ciência, que tem um funcionamento completamente diferente da prática de “doutrinação”. Ao contrário do mito da “doutrinação”, a ciência não impõe, mas dialoga, debate, experimenta, critica e constroi coletivamente.
O conhecimento científico, em qualquer área, para existir, precisa necessariamente do mais amplo debate e liberdade de crítica entre pesquisadores e docentes. Seja nas ciências naturais ou humanas, os trabalhos tem que ser exaustivamente criticados e avaliados pelos especialistas em cada campo, para serem validados. É assim que o conhecimento humano avança, por acumulação, experimentação e crítica. Da mesma forma, a transmissão de conhecimento, por meio da educação, precisa transmitir o espírito de debate livre inerente ao trabalho intelectual, para que os alunos possam se familiarizar com a diversidade de teorias, concepções, métodos e abordagens do conhecimento.
Mais do que isso, na sua dimensão de formação humana, a educação precisa formar indivíduos capazes de conviver numa sociedade que já é em si diversa. Uma das fórmulas com a qual o “Escola sem partido” trabalha (tenta transformar em artigo de lei) diz que os alunos não podem ser expostos a conteúdos que contrariem a sua visão de mundo e/ou de suas famílias. Se esse princípio for colocado em prática, ele não estará garantindo um direito, mas ao contrário, retirando o direito das crianças e adolescentes de conhecer concepções de mundo diversas e aprender a conviver com elas. Sem isso, ao invés de formar pessoas capazes de conviver em sociedade e tolerar ideias e modos de vida diferentes dos seus, a educação estará sendo conivente com a formação de fanáticos, pessoas que não sabem conviver com a contrariedade senão por meio da violência, do ódio, do silenciamento. Em resumo, sob o aspecto minimamente democrático, o cerceamento da liberdade de debate intelectual na educação é um retrocesso em direção a condições medievais.
Além disso, não é papel das escolas se submeterem às crenças particulares de igrejas e famílias, que no âmbito privado, continuam tendo a liberdade de difundir suas ideias. Aqui se trata justamente de garantir a separação entre público e privado, entre Estado e igreja. O Estado não pode ter compromisso com nenhuma crença particular, e sim garantir a liberdade de todas elas. Essa é a essência do princípio de laicidade, que está seno atacado. Além disso, mesmo do ponto de vista de uma sociedade capitalista, o estado deveria ter compromisso com a difusão da ciência, como pré requisito para a competição econômica. A menos que se esteja abrindo mão disso completamente.

3. Não existe “neutralidade” do conhecimento
Mas talvez o mito mais nefasto difundido por esse movimento é a ideia de “neutralidade” do conhecimento, como se qualquer teoria científica ou concepção pudesse estar desvinculada de um projeto de sociedade. Mesmo nas ciências naturais, faz muita diferença determinar se a pesquisa deve ser direcionada para a cura de doenças ou para a produção de medicamentos para os sintomas, que vão deixar as pessoas na dependência da indústria farmacêutica por uma vida inteira. Em qualquer área das ciências, é preciso discutir o que vai ser pesquisado e como vai ser usado esse conhecimento, em proveito de quem. No caso das ciências humanas, é preciso reconhecer a existência da divisão da sociedade em classes sociais, pois do contrário qualquer tese ou concepção vai se colocar a serviço de alguma classe sem assumir que o faz.
A divisão da sociedade em classes não se refere à existência de “ricos” e “pobres” e de uma “classe média” que está no meio do caminho, classificados por níveis de renda. A divisão da sociedade se refere à relação que cada segmento mantém com a propriedade dos meios de produção.
As classes fundamentais são os proprietários de meios de produção e circulação (fábricas, fazendas, bancos, comércio), que exploram os não proprietários, os trabalhadores, obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver. A exploração não é um ato de “maldade” do explorador, mas decorre do fato de que o valor do salário que o trabalhador recebe em troca do seu trabalho é sempre menor do que o valor que o seu trabalho gera para o empregador. Essa diferença é a fonte do lucro da classe proprietária. Não existe portanto, a rigor, salário justo, e a luta dos trabalhadores deve ser não apenas para que recebam maiores salários, mas pelo fim do trabalho assalariado, de modo que aqueles que produzem a riqueza possam se apropriar dela, e determinar coletivamente o que deve ser produzido, como, em que quantidade, qualidade, etc.
Os trabalhadores e os proprietários possuem portanto projetos de sociedade diferentes e radicalmente opostos. De um lado, uns querem acabar com a exploração, e de outro, precisam mantê-la. Qualquer teria da sociedade que não reconheça esse fato básico estará encobrindo a existência da exploração e ajudando a perpetuá-la. Mesmo a defesa da “democracia”, da igualdade de direitos e da tolerância na sociedade é vazia, se não estiver baseada no reconhecimento de que a igualdade formal é insuficiente, e a verdadeira igualdade só é possível por meio do fim da exploração. É por isso que o verdadeiro alvo do “escola sem partido” é o conhecimento da história, que revela que a origem da riqueza dos “ricos” é a expropriação, o roubo e a exploração dos trabalhadores, e o estudo da sociologia e da filosofia, que fornecem as ferramentas para ajudar a que se possa acabar de vez com a exploração.

Contra o “Escola sem partido” e qualquer retrocesso!
O conhecimento da exploração, da divisão de classes e dos projetos de sociedade diferentes é hoje extremamente minoritário. Os profissionais da ciência e da educação que possuem esse conhecimento estão isolados, perseguidos e censurados, sem condições de debater e de ensinar, e muito menos de “doutrinar” ninguém (todo conhecimento, é sempre bom repetir, se reproduz por debate e não por “doutrinação”). Na verdade trata-se de mais um mito, pois os educadores críticos que ainda sobrevivem nas escolas são uma minoria (a grande maioria dos professores está tão esmagada pela sobrecarga de serviço e pela luta para sobreviver que rebaixou o nível do seu ensino e não representa nenhum “perigo”, não contribui para desenvolver uma visão crítica). É essa minoria que está sob ataque do “Escola sem partido”, que quer acabar de exterminá-los. São os últimos remanescentes da defesa da educação, da ciência e de um pensamento minimamente crítico.
Quem pratica a “doutrinação”, na verdade, são os defensores do “escola sem partido”, com seus mitos sobre a educação, sua visão retrógrada da sociedade e sua defesa da exploração. Para finalizar, uma amostra do caráter nefasto desse movimento é a sua luta contra o que eles chamam de “ideologia de gênero” (expressão que não tem o menor sentido), ou seja, a reação conservadora contra as lutas das mulheres e LGBTs.
Pautado por doutrinas religiosas (ou seja, aceitas por fé e não por debate), o movimento quer impedir que se discuta educação sexual nas escolas, dominação patriarcal e opressão histórica sobre as mulheres, isso num país com números alarmantes de feminicídio, violência de todos os tipos contra as mulheres, estupros e abusos sexuais, mortes e sequelas por aborto sem assistência do sistema de saúde (que está proibido por lei de fazê-lo), além de mortes, violência e discriminação contra LGBTs. A falta de educação, de tolerância e de debate já está custando vidas e sofrimento. Não podemos permitir nenhum retrocesso!
- Pelo não pagamento da dívida pública e uso desse dinheiro para financiar os serviços que interessam à população, como a educação!
- Por melhores salários e condições de trabalho para professores e profissionais da educação!
- Pela liberdade de cátedra e de debate de qualquer questão social em sala de aula!
- Por um estado laico, contra a interferência religiosa na educação e em qualquer instituição pública!
- Contra a violência e a discriminação, todo apoio à luta das mulheres e LGBTs!
- Contra o “escola sem partido”!
- Por uma educação pública, gratuita e de qualidade em todos os níveis, acessível a todos e baseada nos interesses da população trabalhadora!
- Por uma sociedade sem exploração e sem opressão!



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