“Por seis meses, eu não consegui dormir”
PRÓLOGO
Antes que o leitor mais sensível se assuste ou fique preocupado (e antes que o desafeto comemore), o óbito mencionado no título acima não produziu nenhum cadáver.
“As pessoas sempre me perguntam se eu conheci Tyler Durden”
Janus Mazursky está morto, finado, aniquilado, deixou de existir, mas nesse processo não houve a perda de nenhuma vida humana.
“Não consigo pensar em nada”
Na verdade, Janus Mazursky nunca existiu. Não era uma pessoa real. Era um pseudônimo, ou mais precisamente, uma impessoa.
“Estamos na primeira fila desse projeto de destruição em massa”
Entretanto, Janus Mazursky está morto, e mais, foi assassinado. Mas como se mata uma impessoa? Como assassinar um ser que nem sequer existe no mundo real? Quem cometeu esse crime? Quem tem o poder real sobre esta entidade virtual?
“Está bem, agora é a sua vez de chorar”
Janus Mazursky foi assassinado por seu próprio autor. O leitor será testemunha, ao longo destas mal-traçadas linhas, do estranho processo por meio do qual um escriba fulmina e enterra o seu próprio pseudônimo.
“Com insônia, nada é real”
Os autores literários reiteradamente matam seus personagens sem que isso ordinariamente traga maiores repercussões para sua vida real. Entretanto, o que acontece quando o personagem é a única face usada pelo próprio autor para dirigir-se ao público? Então, nesse caso, o que houve foi um suicídio? A resposta para essa questão é bastante complexa. É preciso começar explicando o que é uma impessoa.
“É tudo uma cópia de uma cópia de uma cópia”
O conceito de impessoa foi criado pelo escritor George Orwell no clássico livro “1984” (cada dia que você passa sem tê-lo lido é um crime contra sua consciência!) para designar as pessoas que foram mortas pelo regime totalitário, e deixaram de ter sua existência oficial reconhecida, tiveram seus nomes removidos de qualquer registro e não podem mais ser sequer mencionados pelos demais.
“Eu vejo muita coragem aqui. E isto me dá força”
A história do nosso mundo real registra vários casos de personalidades transformadas em impessoas. Stalin removeu das fotografias as imagens de Trotsky e de outros bolcheviques históricos (depois de tê-los exterminado também fisicamente, é claro), apagando-os cirurgicamente da memória pública oficial da Revolução.
“Eles usam isso em cavalo de corrida”
Impessoas são seres que “nunca existiram” porque se tornaram ideologicamente inconvenientes e politicamente embaraçosos para o poder constituído.
“Perdido no esquecimento. Escuro, silencioso e completo”
Em sua antiga página pessoal na internet o escriba mantinha um texto intitulado “Janus por Janus” dedicado a explicar a natureza de sua intervenção. O texto iniciava-se dizendo: “Janus Mazursky é uma impessoa. Seu nome não consta em nenhum registro civil, policial, fiscal, comercial, escolar ou de qualquer natureza mantido pelo Estado. Oficialmente, Janus Mazursky não existe.”
“Eu encontrei a liberdade na perda de esperança”
Tal declaração, desdobrada em detalhes ao longo do texto, era uma maneira enviesada de dizer que Janus Mazursky é um pseudônimo.
“O mundo girava a minha volta”
Tal texto buscava apresentar Janus Mazursky como um ser que não tem lugar no nosso mundo real. Um combatente contra o sistema, sob a limitada forma de pessoa virtual.
“Eu morria todas as noites e toda noite eu era ressuscitado”
Uma impessoa, no contexto orwelliano do “1984”, é alguém que foi morto e excluído do convívio público. É um ser derrotado, banido, inexistente, que não é mais capaz de intervir no mundo real, em qualquer esfera que seja.
“Sua mentira refletia a minha”
Declarar-se impessoa, no nosso mundo, tem o sentido contestatório e irônico de aproveitar o conteúdo crítico do conceito, de recusar-se a deixar de existir, e ao mesmo tempo, por meio da inexistência material do personagem adotado, desenvolver uma forma de existência virtual. A auto-definição de impessoa é o pretexto para o uso de um pseudônimo militante.
“Não tenho mais medo da morte”
O DUPLIPENSAR
O combate virtual de Janus Mazursky contra o sistema, como não poderia deixar de ser, foi travado dentro do Duplipensar.net, um site dedicado a divulgar a obra de Orwell.
“Sinta a energia positiva a sua volta”
O nome do site é uma inversão criativa da idéia de duplipensar, que é mais um dos ricos conceitos elaborados por Orwell no “1984”. Formalmente, o duplipensar é “a capacidade de manter na cabeça duas crenças contraditórias e aceitar ambas”.
“Esta é a sua vida e se desfaz a cada minuto”
O conceito de duplipensar não pode ser confundido com a saudável prática filosófica de suspender os juízos peremptórios e estar aberto a todas as possibilidades. A capacidade de administrar hipóteses contraditórias faz parte de todo processo de conhecimento da realidade concreta. A dúvida é sempre sábia, a certeza é em geral autoritária. Entretanto, o duplipensar não é a saudável dúvida cartesiana, é a doentia manipulação stalinista.
“As pessoas que conheço nos vôos são amizades descartáveis”
O duplipensar não é a busca do conhecimento, é a sua negação. Através do duplipensar, o que é verdade hoje é mentira no dia seguinte, e no dia posterior volta a ser verdade. A contradição não é resolvida dialeticamente, é imposta arbitrariamente, de forma que os donos do poder possam modelar a realidade a seu bel-prazer. A aceitação de duas crenças contraditórias em escala de massa é uma ferramenta do poder constituído para justificar práticas contraditórias.
“Há muitos desses acidentes? Você nem acreditaria”
O duplipensar é uma forma de justificar meios que são opostos aos fins declarados. É fazer uma coisa em nome do seu contrário. Orwell acrescenta ainda que “para entender o duplipensar é preciso duplipensar”.
“Ilusão de segurança”
O duplipensar é uma ferramenta de dominação a serviço do Estado totalitário da distopia descrita no livro. É o paroxismo da desfaçatez pública. Ele acontece quando um governante diz que a “economia está crescendo”, e enquanto isso o povo está passando fome.
“É uma teoria interessante”
Acontece quando Bush invade o Iraque “para levar a democracia”. Quando alguém faz a guerra para levar a paz. E assim por diante. “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”, são as frases duplipensadas que compõem o lema do Partido governante.
“Você tem um certo desespero na sua risada”
O duplipensar é todo o conjunto de mentiras que a grande mídia despeja em doses cavalares para convencer o público de que está tudo bem, o mundo vai bem, sua vida vai bem, e se você não se sente bem (porque, na verdade, o mundo vai muito mal, está tudo errado e tudo desmorona ao seu redor), não diga isso a ninguém, pois não fica bem. E principalmente, não faça nada a respeito, pois acarreta inimizade, demissão, cadeia, ou pena de morte.
“Essas coisas acontecem, imagino”
O Duplipensar.net foi criado com o objetivo de denunciar o duplipensar, ou seja, denunciar as mentiras públicas aceitas passivamente pela platéia. Usar o nome Duplipensar.net significa duplipensar o duplipensar, ou seja, subverter o nome de uma prática de dominação para dar nome a uma prática de libertação.
“Eu digo, nunca queira ser completo. Pare de querer ser perfeito. Vamos evoluir”
O ROMPIMENTO
Entretanto, Janus Mazursky não está mais na equipe do Duplipensar.net. Nem seu nome nem seus textos são mais encontrados no acervo do site. Subitamente, desapareceram quase quatro anos de colaboração e algo em torno de 130 textos publicados.
“As coisas que você possui acabam possuindo você”
Todos esses artigos foram tragados no Buraco da Memória (outra invenção genial de Orwell). Vaporizados, como se não tivessem jamais existido. O escriba, que já era um ser inexistente no mundo real, tornou-se uma impessoa ao quadrado, deixando também de existir no plano virtual. Como se deu esse processo?
“Quero que me bata o mais forte que puder”
Talvez os leitores devam perguntar isso ao próprio Duplipensar.net. Mas será preciso mais do que uma rápida visita ao site para obter alguma resposta. A única coisa que se pode descobrir em sua página de apresentação (http://www.duplipensar.net/duplipensar/index.html) é que: “O Duplipensar.net é um projeto pessoal de Leonardo Silvino, criador e editor do site.” Será preciso pois escrever ao próprio Leonardo Silvino para descobrir o que aconteceu recentemente no site.
“Ninguém sabe o que viu, mas viram algo”
O falecido Janus Mazursky não foi o único autor a ser vaporizado, pois juntamente com ele foram removidos stalinisticamente da fotografia da história praticamente todos os membros da equipe que compunha o conselho do site. Todos deixaram de existir, tiveram seus textos e seus nomes retirados do ar.
“Não olhe, não consigo fazer com gente olhando”
Antes desse acontecimento os colaboradores mais próximos e membros do conselho trabalhavam sem que houvesse uma delimitação clara de tarefas e de projeto. Não havia definição formal das atribuições, responsabilidades e prerrogativas dentro do trabalho coletivo executado. Agora que foi feita essa delimitação, estão todos fora do site.
“No fim do primeiro mês, já nem sentia falta da TV”
O finado escriba e mais meia dúzia dos principais colaboradores dos últimos dois anos tiveram que passar por um processo bastante tortuoso para descobrir que “o Duplipensar.net é um projeto pessoal”.
“Aos poucos descobríamos que não estávamos sós”
O Duplipensar.net silenciou a respeito da saída de uma parte de seus mais importantes colaboradores e de um desfalque substancial no seu acervo de textos. Não expôs publicamente as razões dessa mudança e não deu satisfações aos leitores. De maneira stalinista (duplipensada) o site jogou sua própria história no Buraco da Memória.
“A primeira regra do clube da luta é: você não fala sobre o clube da luta”
Para conhecer esse verdadeiro Processo de Moscou em detalhes, o leitor interessado teria que perguntar a cada um dos antigos conselheiros do site, bem como ao editor-chefe, qual é a sua versão dos fatos. O escriba aqui apresentará a sua versão. Ao assassinar Janus Mazursky, o escriba considera como fato consumado sua saída do Duplipensar.net. Considera que tudo se deveu a um mal-entendido cujas conseqüências foram potencializadas por melindres exacerbados. Mas não é sua intenção desfazer esse mal-entendido e voltar a estar em acordo com o Duplipensar.net. Mesmo porque, isso exigiria disposição da outra parte para fazer o mesmo, o que não existe.
“A segunda regra do clube da luta é: você não fala sobre o clube da luta!”
A intenção não é desfazer o mal-entendido nesse sentido, mas metabolizar o processo para eventualmente extrair dele algum ensinamento. Do ponto de vista do editor-chefe o rompimento se deu porque este considera o escriba moralmente falido; do ponto de vista do escriba, o rompimento se deu porque o projeto do Duplipensar.net está politicamente falido.
“Todos começamos a ver as coisas de maneira diferente”
O PROCESSO
Demonstrar a falência política do Duplipensar.net e por tabela restabelecer a reputação moral e a honra de Janus Mazursky exige descrever em detalhes o processo de ruptura.
“Não acreditaria no sonho que tive esta noite”
A desaparição de todo o antigo conselho do Duplipensar.net só pode ser explicada como resultado de alguma sorte de conflito. Uma vez que não foi exposta publicamente a razão do conflito, o seu julgamento por parte do observador externo se reveste de algumas características sui generis.
“Sabia da história antes que me contasse”
Constitui um princípio básico do direito a norma de que o ônus da prova cabe ao acusador. Entretanto, o Duplipensar.net não apresentou publicamente nenhuma acusação contra as impessoas que excluiu. Simplesmente as excluiu. Logo, não temos que carregar o ônus da prova, mas sim o da acusação. Estamos aprisionados no limbo deste paradoxo. Será preciso fazer uma auto-acusação para em seguida ter a possibilidade de emendar a defesa.
“Prepare-se para evacuar a alma em dez, nove, oito...”
É sempre mais fácil dar crédito a uma acusação do que a um desmentido. O público em geral guarda a acusação, mas despreza e desconhece o desmentido. Logo, melhor do que fazer uma acusação, é deixar que o acusado seja obrigado a se explicar. Ao se explicar, vai ter que primeiro se acusar, para depois se defender. No meio do caminho, é possível que o público se desinteresse, e retenha apenas a acusação. Ao silenciar sobre o motivo do expurgo, o editor-chefe conta com essa possibilidade de que as impessoas se compliquem, não se expliquem e se auto-impliquem. O escriba prefere contar com a inteligência dos leitores e correr o risco de oferecer uma explicação completa.
“Alguém chamou a polícia”
O escriba adota aqui o método da transparência, contra o da omissão. Ao invés da iniciativa de relatar o processo, somos brindados com o silêncio do Duplipensar.net., que destrói qualquer canal possível de interlocução, impedindo que as vozes divergentes se manifestem. Esse procedimento bastante peculiar constitui um exemplo prático da falência política do projeto do site. Um veículo concebido para criticar e combater o duplipensar elimina duplipensadamente os indivíduos que por qualquer motivo se tornaram incômodos ao seu dirigente.
“Pegue um revólver e pinte as paredes com meus miolos”
Exclusão? Que exclusão? Ninguém foi excluído. Quem é Janus Mazursky? Essa pessoa não existe. Nunca existiu! Nenhum autor foi excluído! Nenhum texto foi excluído! Nenhum desses textos existiu! Nenhum desses autores existiu!
“Eu me tornei a calmaria do mundo”
“Eppur si muove!” “E no entanto, a Terra se move!”, teria dito Galileu ao sair do julgamento da Inquisição. A Terra se move, o mundo dá voltas. O escriba é uma impessoa, mas ainda existe e reaparece, mesmo que seja para morrer afinal.
“Eu passei por cima de todo mundo”
O escriba ainda existe, assim como os demais autores excluídos. Não é sua intenção falar em nome dos demais ou fazer-se protagonista da dissolução do antigo conselho do Duplipensar.net., na paradoxal condição de vítima fatal. A dissolução do conselho é um acontecimento maior e mais grave do que a desaparição de uma reles impessoa.
“Sou o suor frio do Jack”
No entanto, para tratar da kafkiana morte de Janus Mazursky, objeto deste texto, foi preciso referir-se ao episódio da dissolução do antigo conselho, apresentado em perspectiva pessoal.
“Fez algum inimigo recentemente?”
TRAGÉDIA, PASTELÃO E INTRIGA
Kurosawa nos ensinou, em “Rashomon”, que todos os pontos de vista sobre um determinado acontecimento, ainda que contraditórios, podem ser simultaneamente verdadeiros de alguma forma. A convivência arbitrária de contradições é um sintoma do duplipensar opressor; a convivência dialética é uma prerrogativa do poder emancipador presente em toda verdadeira arte.
“Rejeite a civilização, especialmente as posses materiais”
“A morte de Janus Mazursky” não é nenhuma requintada obra de arte, é uma peça ligeira que alterna momentos de tragédia, pastelão e intriga mesquinha. Em um pequeno site da internet, desdobra-se um mundo de vaidades, ambições, paixões e conflito.
“Este é o momento da sua vida e você se manda para outro lugar?!”
Será preciso tocar nos aspectos mais desagradáveis e constrangedores do comportamento humano para desmistificar a imagem dos protagonistas desse drama e retirar sua aura de intelectuais inatingíveis em sua torre de marfim virtual. Será preciso restituir-lhes a plena condição de seres humanos patéticos e falíveis, mas também irresistíveis e extraordinários.
“Sem dor ou sacrifício não teríamos alcançado nada”
Em meados de 2004 o conselheiro Marcello Kashmir foi pilhado fazendo plágio de trechos de textos de outros sites para publicá-los como seus no Duplipensar.net. A acusação foi comprovada e confessada, o réu foi devidamente excluído do Duplipensar.net com todos os seus textos. Essa tragédia quase pôs a perder a credibilidade do projeto e o esforço coletivo de todos os que se dedicaram ao site. Voltar-se-á a ela logo adiante.
“Somos os enjeitados de Deus. Que assim seja!”
Nesse mesmo ano de 2004 Janus Mazursky teve um breve relacionamento amoroso com uma leitora que o conheceu através do Duplipensar.net. Desde os primeiros e-mails trocados essa pessoa veio a saber que Janus Mazursky era um pseudônimo. A leitora embarcou na aventura de conhecer quem era a pessoa real por trás dos textos de Janus Mazursky. Conheceram-se no sentido bíblico.
“Apenas depois de perdermos tudo é que estamos livres”
Entretanto, o relacionamento não prosperou. Há um ditado que diz que o amor é brega. Todo ditado, como expressão do senso comum, carrega um certo fundo de verdade e ao mesmo tempo uma boa medida de arbítrio e falsidade. No caso em questão, o ditado foi verdadeiro. Quando termina, muitas vezes o amor se transforma em vexame e baixaria. De ambas as partes saltam diatribes aos quatro ventos. É muito comum uma mulher terminar um relacionamento dizendo que o homem é brocha, etc. A criatura em questão não chegou a esse nível, mas apelou para outro expediente ainda mais ridículo. Passou a dizer que a pessoa a quem conheceu não era o autor dos textos assinados por Janus Mazursky.
“Parabéns. Você está mais próximo do fundo do poço”
Em todo relacionamento as partes criam uma fantasia a respeito de seu par, e eventualmente essa fantasia desaba na realidade da convivência. É necessário então inventar algum subterfúgio para compensar a auto-estima abalada pelo desgaste do rompimento e não jogar no lixo a totalidade do investimento emocional despendido. No caso em questão esse subterfúgio tomou a forma de uma delirante teoria da conspiração.
“E eu costumava ser um cara tão legal”
O autor dos textos de Janus Mazursky estaria emprestando o seu pseudônimo para que algum “laranja” conquistasse suas leitoras. Como na história de Cyrano de Bergerac. Foi com essa hipótese que o relacionamento se desfez. Um rompimento sob pretexto tão bizarro produziria, nas mãos de um roteirista talentoso, uma comédia da vida privada digna de um bom filme de Woody Allen.
“Supostamente ele nasceu num hospício e dorme apenas uma hora por noite”
Essa não foi a primeira vez e nem a última que alguém se apaixonou pela impessoa de Janus Mazursky, mas foi a única em que o rompimento resultou em uma teoria da conspiração. Isso explicaria porque esse episódio bisonho não está no capítulo intitulado “Dissabores do autor que usa pseudônimo”, mas está na “Morte de Janus Mazursky”? Terá sido crime passional? O escriba matou seu pseudônimo porque não suportava mais conviver com uma fantasia maior do que ele próprio? A morte da vítima teria sido então um ato de ciúme doentio? O gesto desesperado de alguém que não suportava mais fazer um papel de Cyrano de Bergerac?
“Trabalhamos em empregos que odiamos para comprar porcarias de que não precisamos”
Como sói acontecer em histórias tiradas da vida real, o roteiro acaba sendo mais truncado e mirabolante do que poderia sonhar a nossa vã dramaturgia. O episódio relatado acima não teria tido maiores conseqüências que as de qualquer rompimento. E se tratasse-se apenas disso, não haveria nenhuma razão para expor aos leitores fatos constrangedores dessa natureza.
“Somos uma geração sem peso na História”
O escriba não se orgulha nem se envergonha desse desfecho e muito menos na ocasião lhe creditou qualquer importância para além de sua vida pessoal. Entretanto, o equívoco teve repercussões funestas. Pois eis que, poucos meses depois, em dezembro de 2004, o seguinte e-mail é dirigido ao conselho do Duplipensar.net:
“Esta semana vocês tem uma lição de casa”
“Sou leitor do site e conheço Janus Mazursky. Se vc investigar melhor, verá que se trata de uma farsa. A pessoa que escreve não é a mesma que se apresenta pessoalmente a vc e seus companheiros. Não comente nada antes de ter a sua certeza. Investigue. Pedro Araújo.”
“Nem preciso vir ao escritório, posso fazer isso de casa”
Não conhecendo nenhum “Pedro Araújo”, a resposta do escriba foi óbvia: “Não subestime a ira de uma mulher desprezada”. Elementar, meu caro Watson. Ex-namorada inconformada com o fim do relacionamento acusa ex-namorado de não ser a pessoa por quem se apaixonou. Caso encerrado.
“O líder andava pela multidão, nas trevas”
SEGREDOS E MENTIRAS
A denúncia contra Janus Mazursky foi arquivada por inexistência de provas. Aparentemente, não teria conseqüências mais sérias além de algum embaraço e muito riso no interior do conselho. Mas a semente do joio germinaria em segredo em meio ao trigo e poria a perder a safra, como se verá. Após o e-mail, passou-se o tempo e o Duplipensar.net prosseguiu de vento em popa pelo ano de 2005 adentro. Entretanto, no início de 2006, os membros do conselho são surpreendidos com um comunicado do editor-chefe informando o encerramento da lista de e-mail do grupo.
“Eu sou a vida desperdiçada de Jack”
A justificativa do editor-chefe era de que ele passava por sérias dificuldades profissionais e pessoais e de que o Dupli, como era entre nós carinhosamente chamado, havia passado a ocupar quase todo o seu tempo. Entre perplexos e desapontados, a maioria dos membros do conselho enviou mensagens de apoio, postando-se depois à espera dos acontecimentos.
“Num determinado período de tempo, a taxa de sobrevivência de todo mundo cai a zero”
Passado algum tempo, o escriba propôs uma alternativa aos ex-membros do antigo conselho: que se escrevesse em conjunto ao editor-chefe oferecendo ajuda, traçando um plano para ajudá-lo a tocar o Dupli, dividindo tarefas para aliviar a carga de trabalho do nosso companheiro.
“Seu café da manhã terá um gosto que jamais conheceremos”
Buscava-se consolidar a equipe de trabalho sob um estatuto definido, esclarecendo os direitos e deveres dos colaboradores do conselho e do editor-chefe. Foi elaborado um “Manifesto em defesa do Duplipensar”, assinado pela maioria do antigo conselho.
“Você é a merda ambulante do mundo”
Entretanto, o editor-chefe interpretou o “Manifesto” como uma ofensa, um ataque à sua condição de criador do site e uma injúria intolerável de molde a configurar quebra de confiança. Diante do “Manifesto”, o editor-chefe respondeu com uma espécie de comunicado-ultimato, intimando a todos os co-autores que apuseram o seu nome no texto a retroceder no passo dado, sob pena de serem excluídos do site. Ninguém retrocedeu, e foram todos excluídos.
“Feito um macaco pronto para ser mandado para o espaço”
Em resumo esse foi o processo de dissolução do conselho. Em anexo o leitor interessado neste estudo de caso encontra a transcrição dos referidos e-mails trocados na correspondência havida no decurso do processo.
“Achamos que é mais um ato de vandalismo ligado aos clubes de boxe clandestinos”
Mas houve mais. No bojo da troca de mensagens entre o editor-chefe e os ex-membros do conselho dissolvido, entre os quais este escriba, houve também ataques de natureza pessoal.
“Sou o sentimento de rejeição de Jack”
Ao manifestar a iniciativa de procurar os demais membros do antigo conselho, o escriba foi agredido e ameaçado pelo editor-chefe em um e-mail que continha o seguinte: “Você também foi acusado de não ser o autor dos próprios artigos. Lembra do famoso e-mail de dezembro de 2004?” A intenção dessa frase era claramente intimidar o conselheiro que teve a iniciativa de propor uma alternativa para o site. Essa tentativa canhestra de chantagem atesta o grau de desespero em que estava mergulhado o dirigente do Duplipensar.net. Há duas alternativas, ambas inaceitáveis, para explicar esse comportamento:
“Queria respirar fumaça”
1. O editor-chefe acreditou na acusação de “Pedro Araújo”, mas mesmo assim seguiu publicando fartamente textos de Janus Mazursky ao longo de 2005 e início de 2006. Tal procedimento teria sido oportunista, inconseqüente e irresponsável.
2. O editor-chefe não acreditou na acusação, mas resolveu trazê-la à tona apenas no momento de crise, para ameaçar e intimidar o acusado, que havia se tornado politicamente inconveniente. Por sua vez, esse procedimento teria sido muito baixo.
“Tive vontade de destruir algo belo”
GAME OVER
A acusação de plágio ou de “falsidade ideológica” não é algo que se possa fazer de maneira leviana. É como uma acusação de estupro, que ocasiona uma mancha muitas vezes indelével na reputação da pessoa acusada.
“O Clube da Luta foi o começo, agora saiu do porão e se tornou Projeto Caos”
O e-mail contendo a ameaça buscava ligar o nome de Janus Mazursky a Marcello Kashmir, o conselheiro expulso anos antes por plágio, igualando ambos: “Janus Mazursky e Marcello Kashmir não existem, são impessoas. E impessoas não precisam se responsabilizar pelo que escrevem ou fazem.” Essa tentativa de traçar um sinal de igual entre ambos carece porém de qualquer fundamento. Note-se que no caso contra Marcello Kashmir a acusação foi abundantemente comprovada por leitores, pelos autores lesados e pela confissão do próprio réu. No caso contra Janus Mazursky, o(a) acusador(a) não pôde apresentar a prova de sequer um parágrafo em mais de uma centena de textos que tivesse sido copiado de outra fonte.
“Pare de tentar controlar tudo e relaxe”
É impossível apresentar tal prova, porque nunca houve plágio. Ou seja, não há caso algum, não há acusação, há uma insinuação vil e inconseqüente. A acusação, como foi exposto acima, partiu de uma pessoa em estado de desequilíbrio por não saber administrar o fim de um relacionamento. Por sua vez, o fato de uma terceira pessoa usar esse tipo de acusação como munição no debate sobre os rumos do site atesta um elevado grau de decomposição moral.
“No mundo que eu vejo, você vai estar caçando alce nas ruínas do Rockefeller Center”
O fato de que a acusação fosse patética e desprovida de qualquer fundamento material não impediu que fosse utilizada como bravata intimidatória. Acusar alguém sem provas é uma manobra tipicamente desesperada e distracionista. Na falta de argumentos e de compostura, o editor-chefe recorreu à difamação como estratégia de debate. Utilizou-se de um silogismo escancaradamente falacioso, que poderíamos formular com nossas próprias palavras da seguinte maneira: “Janus Mazursky e Marcello Kashmir são pseudônimos; Marcello Kashmir é um plagiador; logo Janus Mazursky também é um plagiador”.
“Preso dentro desse mecanismo dos maçados do espaço”
O sofisma acima não é uma especulação, ele está implícito no juízo que o editor-chefe faz do escriba. No citado comunicado-ultimato exigindo a retirada do “Manifesto”, o editor-chefe modificou a justificativa para o encerramento do conselho. Além dos problemas pessoais como motivo fundamental, um outro item foi adicionado. Os ex-membros do antigo conselho foram informados de que “O site foi enxugado devido à segurança, espaço, perfis falsos e denúncias de articulistas que não são os autores de seus próprios artigos.”
“Sou o coração quebrado de Jack”
Denúncias? Que denúncias? Contra quem? Por que não dar o nome aos bois? Trata-se ainda da denúncia de “Pedro Araújo” contra Janus Mazursky? Um ano e meio depois isso ainda estava em pauta? A rigor, a acusação não era de plágio, mas de que a pessoa que se apresenta publicamente como autor dos textos de Janus Mazursky não passa de um “laranja” a serviço do verdadeiro autor. Mas isso somente transfere o problema para outro local e torna a hipótese ainda mais absurda.
“Quem são todas essas pessoas?”
Porque o autor responsável pelos textos de Janus Mazursky (já que de fato não há plágio) usaria um “laranja” para se apresentar aos demais membros do conselho, ou às leitoras eventualmente interessadas em uma relação mais que intelectual? Quais seriam as intenções “maquiavélicas” desse autor secreto, que não apenas escrevia textos, mas ajudava a construir o Duplipensar.net com opiniões, pareceres e presença assídua na lista interna de e-mails do conselho? Ou será que os e-mails trocados nessa lista eram também plagiados, ou teleguiados por um sabotador? O fio de raciocínio desencadeado pela “denúncia” conduz a becos sem saída de paradoxos, absurdos, contradições e delírios. Sem ter uma substância em que se apoiar, aquela frase sobre “perfis falsos e denúncias de articulistas que não são os autores de seus próprios artigos”, lançada a esmo no comunicado dirigido aos signatários do manifesto, apenas serviu para jogar uma cortina de fumaça sobre o assunto e despistar a real incapacidade de apresentar uma justificativa plausível para uma decisão precipitada e autoritária.
“No Projeto Caos, nós não temos nomes”
Não é nada agradável ter que expor as entranhas de um processo que se transformou, contra todas as expectativas, numa disputa pessoal sem sentido. Uma disputa sem vencedores, em que os derrotados foram os leitores. Agradável ou não, o escriba julga que era seu dever apresentar a história como a vivenciou, mesmo que isso exigisse revolver ferimentos não cicatrizados. Depois dessa exposição, não faz mais nenhum sentido continuar usando o nome de Janus Mazursky. O autor dos textos de Janus Mazursky tem nome, sobrenome, endereço, telefone, certidão de nascimento, carteira de vacinação, RG, CPF, título de eleitor, histórico escolar, certificado de reservista, inscrição no PIS/PASEP, carta de motorista, carteira de trabalho, emprego fixo, cargo concursado numa empresa de economia mista, matrícula funcional, mandato de representante sindical no local de trabalho, título acadêmico de bacharel e ainda uma segunda graduação em curso. O escriba passará a assinar todos os seus textos com esse nome, começando pela presente autópsia de seu alter-ego.
“O Tyler esteve ocupado... abrindo franquias por todo o país”
O escriba passará a assinar seus textos com seu nome verdadeiro, mas não porque o uso de pseudônimo seja uma prática de “impessoas (que) não precisam se responsabilizar pelo que escrevem ou fazem”. Para desmontar essa pífia insinuação, basta lembrar que George Orwell, mestre de todos nós, era um pseudônimo usado por Eric Arthur Blair. O abandono do pseudônimo se dá precisamente pela razão inversa.
“Tem certeza de que não é um teste?”
Nós marxistas trabalhamos com o conceito hegeliano de “dialética da continuidade na descontinuidade e descontinuidade na continuidade”: o outro é o mesmo e o mesmo é o outro. O que deixou de ser ainda é e o que ainda é já não é mais. Eu não serei mais Janus Mazursky, porque terei que ser eu mesmo, mas para ser eu mesmo, terei que ser Janus Mazursky. Para reconquistar minha integridade e minha honra, tive que usar do método e da verve mazurskyanos, em um texto em forma de carta-testamento, explicando o fim da relação com o Duplipensar.net.
“Eu pareço como você gostaria de parecer, e transo como você gostaria de transar”
Para continuar sendo Janus Mazursky, defendendo aquilo que defendia no Duplipensar.net, o escriba é obrigado a deixar de sê-lo. O contexto político em que se enraizava o uso do personagem não existe mais, na medida em que o projeto do Duplipensar.net perdeu sua legitimidade. A estratégia de declarar-se criticamente impessoa foi frustrada pela falência do veículo que a converteu em realidade, ou seja, vaporizou Janus Mazursky. A intenção crítica contida nessa estratégia só pode se realizar com o abandono do antigo perfil virtual do escriba.
“Tyler Durden! Tyler Durden, seu maluco!! O que está havendo?”
A fase impessoal está superada. Em toda superação dialética, perde-se uma parte, conserva-se outra e adquire-se algo novo. Na síntese final desta opereta bufa, perde-se um nome, conserva-se a convicção e ganha-se um aprendizado. “A morte de Janus Mazursky” não foi aqui descrita com a intenção de expor as fraquezas, tropeços e idiossincrasias pessoais de A, B ou C, mas de acertar as contas criticamente com o processo de desligamento do escriba do Duplipensar.net. Esse processo serviu para demonstrar a inviabilidade de quaisquer projetos desprovidos de clareza ideológica e de um programa organicamente construído, explicitado e coerentizado na prática.
“O filme continua e as pessoas na audiência nem percebem”
EPÍLOGO
É bastante irônico que o Duplipensar.net tenha tratado seus antigos colaboradores como impessoas. Na obra de Orwell, aqueles que discordam do duplipensar dominante são vaporizados e deixam de existir. Mas antes disso, antes de matá-los fisicamente, a Polícia do Pensamento mata sua vontade de lutar e de resistir. Mata sua humanidade, fazendo com que aceitem voluntariamente o duplipensar. Ao morrer, as vítimas da Polícia do Pensamento amam o Grande Irmão.
“Algo terrível está para acontecer ao seu edifício”
Para destruir a humanidade de todos aqueles que cometem o crime de pensar (crimidéia), nada melhor do que mostrar-lhes que é impossível resistir. Quem faz isso é a Fraternidade, uma suposta organização terrorista e guerrilheira dedicada a subverter o domínio absoluto do Partido e do Grande Irmão. O desejo de humanidade leva os dissidentes a se associar à Fraternidade, onde por alguns momentos têm a ilusão de que estão enfrentando o sistema. Mas tudo não passa de uma isca para atrair os tais dissidentes.
“Você tem problemas emocionais seríssimos. Precisa de ajuda profissional”
Winston Smith, o protagonista do “1984”, adere à Fraternidade, apenas para descobrir logo depois que se trata de uma armadilha. A Fraternidade é a própria Polícia do Pensamento disfarçada, que age assim para capturar e em seguida torturar e aplicar lavagem cerebral nos dissidentes. Não há escapatória, não há final feliz, não há concessões, não há esperança. O gesto de tentar libertar-se é o mesmo que conduz infalivelmente à guilhotina.
“Eu corro até meus músculos arderem e minhas veias jorrarem ácido de bateria. E aí eu corro um pouco mais”
O processo é implacável, inexorável e irreversível. Crimidéia mata. Ao morrer, Winston amava o Grande Irmão.
“Vamos lá, arranjei um lugar legal pra gente assistir de camarote”
Os antigos conselheiros do Duplipensar.net “reuniam-se” numa lista virtual denominada “Conselho da Fraternidade”. A ironia desse nome mostrou-se amargamente cruel quando os membros do conselho foram vaporizados e banidos como impessoas. Caíram na armadilha da Polícia do Pensamento.
“Um passo mais próximo do equilíbrio econômico”
O Duplipensar.net deixou de combater o sistema para reproduzir seus métodos autoritários. Entretanto, não foi o banimento do Duplipensar.net que matou Janus Mazursky, nem tirou sua vontade de lutar. A Polícia do Pensamento não foi eficaz. O alvo escapou-lhe por entre os dedos. Janus Mazursky não ama o Grande Irmão.
“E como sempre, vou lhe carregar, você reclamando e no final me agradecendo”
Como o leitor mais atento certamente terá percebido, as frases em itálico intercaladas nesse texto pertencem ao clássico filme “Clube da Luta” (cada dia que você passa sem tê-lo visto também é um crime contra sua consciência!). O protagonista de “Clube da Luta” desenvolve uma segunda personalidade anarquista que o ajuda a se libertar do sistema. Entretanto, para se libertar dessa segunda personalidade, o protagonista de “Clube da Luta” teve que dar um tiro na própria cabeça. Que entretanto, não o matou.
“Acredite, vai ficar tudo bem”
É o que faz agora o escriba com o nome de Janus Mazursky. O personagem serviu ao propósito. Para continuar a ser Janus Mazursky, ou seja, para continuar lutando contra o duplipensar, será preciso deixar de usar esse nome. Dar-se um tiro na cabeça e matar o personagem. Winston Smith está morto. Abaixo o Grande Irmão! Tyler Durden está morto. Eu sou a ira de Jack! Janus Mazursky está morto. Viva a revolução!
“Você me conheceu numa época estranha da minha vida”
Daniel M. Delfino
06/07/2006
22.8.06
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Um comentário:
Grande amigo,
Pra duvidar de vc somente uma mente muito doentia, fraca, e medíocre. Vc é umas das pessoas mais corretas que conheci nos últimos tempos, ler vc aqui, ou onde quer que vc escreva é, e, será sempre um prazer. Pude sentir e compartilhar com vc toda dor e sofrimento que devem ter lhe assolado ao trancrevê-las nessas difíceis linhas. Mas afinal, vc "expurgou o mal". Vc me conhece, sou a favor da limpeza através das palavras, faladas ou escritas. Lamento não ter sido mais perspicaz, mais amiga, mais próxima, teria enxugado cada lágrima, se é que vc se permitiu derramá-las, teria me colocado na frente de qualquer soco, se fosse lhe poupar de sofrimentos...
Desejo-lhe boa sorte, que vc mantenha sua determinação de escrever como parte da transformação que desejamos para nosso mundo!
Abçs,Ana Menezes.
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