24.10.07

A Rússia antes da Revolução





Um dos relatos clássicos da Revolução de 1917, “O ano 1 da Revolução Russa”, publicado pela primeira vez em 1930, constitui um documento histórico inestimável (do qual retiramos dados e estatísticas para este e o próximo artigo), além de representar uma construção literária vívida e envolvente do grande drama histórico iniciado naquele Outubro memorável. Nesta obra, Victor Serge situa no ano de 1861 o marco inicial dos processos que arremessariam a Rússia no torvelinho das transformações da sociedade capitalista moderna. Neste ano, o Czar Alexandre II decretou o fim da servidão dos camponeses. Formalmente, o feudalismo estava abolido no Império Russo, o que abria as portas para o desenvolvimento do capitalismo.

Naquele momento, a Rússia era uma das grandes potências européias, mas era também um dos países mais atrasados do mundo. A esmagadora maioria da população era camponesa e miserável, a monarquia era absoluta, não havia Constituição, nem liberdades civis. Desde as guerras napoleônicas, a Rússia fora um dos bastiões da reação européia, um dos pilares da Santa Aliança, coligação de monarcas europeus dedicada a esmagar revoluções liberais e revoltas populares. No entanto, enquanto a Europa continental evoluía celeremente para o capitalismo industrial liberal e os regimes constitucionais, a Rússia permanecia feudal e arcaica.

O sinal de alarme soou por ocasião da guerra da Criméia (1853-56), quando uma coligação Anglo-Franco-Turca conteve as pretensões expansionistas dos czares em direção ao Mar Negro e aos Balcãs. A superioridade técnica e militar das potências européias convenceu os czares a acelerar a modernização do país. Para fazer frente aos seus rivais europeus e também prosseguir a expansão pelos territórios asiáticos, seria preciso contar com um exército e instituições mais eficientes, bem como uma população mais coesa e homogênea. Mas o dilema do Czar é que isso teria que ser feito sem modificar a estrutura social do país, ou seja, sem alterar os privilégios da nobreza fundiária, do clero ortodoxo, da burocracia do Estado e do exército, camadas que sustentavam o poder autocrático da dinastia reinante.

Características do Império Russo

Antes de tratar das reformas propriamente ditas, é importante descrever mais detalhadamente algumas características da Rússia de então.

O Império Russo se extendia desde a fronteira com a Alemanha e a Austro-Hungria, no Ocidente, até o Japão, no extremo oriente (o Alasca foi vendido aos EUA em 1867 por U$ 7 milhões); desde o círculo polar ártico e as imensas extensões da Sibéria até as fronteiras montanhosas com a Índia, o Afeganistão e a Pérsia. Era o maior país do mundo, com mais de 22 milhões de quilômetros quadrados. Na prática, era impossível precisar as fronteiras exatas, pois no Oriente elas se perdiam nas infindáveis planícies do norte da China e da Mongólia, com suas populações rarefeitas, selvagens e semi-nômades. Em direção à Ásia Central, ao Cáucaso e aos Bálcãs, a posse do território era objeto constante de disputa com as indomáveis tribos montanhesas muçulmanas e também de guerras com o Império Turco Otomano.

Depois do episódio da Criméia, haveria ainda outra guerra contra os turcos em 1877-1878 (na verdade as guerras contra os turcos eram uma rotina desde o século XVIII). Exercitava-se o “pan-eslavismo”, a doutrina de que todos os povos eslavos deveriam estar unidos sob um mesmo cetro (o do Czar, é claro), contra os impérios Austro-Húngaro e Turco Otomano, que subjugavam importantes minorias eslavas (tchecos, eslovacos, romenos, búlgaros, sérvios, croatas, eslovenos, montenegrinos, macedônios, bósnios, albaneses). Evidentemente, isso era mero pretexto para expandir ainda mais o Império Russo.

O território colossal do Império continha fabulosas riquezas naturais, como ferro, carvão (hoje se explora também o petróleo), minérios, florestas, terras férteis, vastas extensões despovoadas e grandes concentrações de populações diversas. Era um mundo a parte.

Esse grande mundo russo continha também uma ampla diversidade populacional, étnica, lingüística, religiosa e cultural. O censo de 1897 contabilizou uma população de 126 milhões de almas, distribuídas entre 56 milhões de russos, 22 milhões de ucranianos, 6 milhões de bielorussos, 8 milhões de poloneses, 3 milhões de lituanos, 1,8 milhões de alemães, 1 milhão de moldávios, 5 milhões de judeus, 2,6 milhões de finlandeses, 1 milhão de caucasianos, 3,5 milhões de fineses e 13,6 milhões de tártaros.

Dentre essas populações figuravam povos que já haviam tido Estados independentes e poderosos no passado remoto, como a Polônia e a Lituânia, e também aqueles que, mesmo sob domínio estrangeiro, vinham desenvolvendo uma forte identidade e consciência nacional, como a Finlândia e a Ucrânia; isso sem falar no caso sempre particular dos judeus.

Para manter o controle sobre essa população heterogênea, o Estado russo se constituía numa estrutura extremamente autoritária. O russo era a língua oficial do Império, o cristianismo ortodoxo de rito grego era a religião do Estado (a denominação de “Czar” dos monarcas russos era uma russificação de “César”, título que evocava o dos imperadores de Constantinopla, de quem os czares alegavam ser os herdeiros na defesa da cristandade oriental), o clero era considerado parte do funcionalismo estatal, a educação básica estava sob controle da Igreja, havia um rígido sistema de castas que impedia aos plebeus o acesso aos cargos da administração civil, bem como à condição de oficiais do exército. Havia ainda o regimento dos cossacos, tropa de elite fanaticamente devotada ao Czar (seus componentes cumpriam serviço militar dos 20 aos 60 anos) e recompensada com a posse de terras férteis na Ucrânia.

Em relação às nacionalidades subjugadas, havia uma política de russificação pela força, impondo o uso da língua russa e a religião ortodoxa. Havia minorias russas no território de todas as nacionalidades dominadas. Essas minorias russas ocupavam as posições hierarquicamente superiores nas regiões em que habitavam. Em geral eram os russos que moravam nas cidades e dedicavam-se às profissões artesanais, comerciais e intelectuais. E também detinham os cargos administrativos. 90% da população total do Império era camponesa e analfabeta.

Conseqüências da reforma de 1861

Foi este o Império que Alexandre II determinou-se a modernizar, sem no entanto abrir mão do férreo controle exercido pelo Estado autocrático. A abolição da servidão libertou os camponeses dos laços servis de tipo feudal, mas aprisionou-os na moderna servidão capitalista. O servo feudal trabalhava nas terras do senhor durante um certo período do ano, durante o qual deveria entregar em espécie uma certa quantidade de produto. No tempo restante, era livre para cuidar da sua subsistência, produzindo localmente os próprios alimentos, vestimentas, utensílios, ferramentas, moradias, etc.

A reforma de 1861 instituiu a propriedade capitalista da terra. Os camponeses foram obrigados a comprar a terra e os bens de que necessitavam e a vender sua produção no mercado. Os lotes foram divididos em porções mínimas, insuficientes para prover o sustento das famílias. O preço dos produtos agrícolas caía e o das manufaturas aumentava. Os pequenos proprietários tinham que trabalhar cada vez mais para manter o já precário nível de vida de que desfrutavam. Os camponeses pobres (mujiques) se endividaram progressivamente e se tornaram arrendatários dos grandes proprietários. Os nobres a princípio detestaram as reformas, mas logo se viram na condição de poder adquirir mais terras do que tinham antes. Os mujiques transformaram-se num proletariado rural sem terra e superexplorado. Apenas uma pequena fração de camponeses prosperou, convertendo-se numa camada de médios proprietários denominados “kulaks”.

A superexploração dos mujiques elevou a exportação russa de cereais para a Europa em 140% entre 1861 e 1876. O lucro dos grandes proprietários aumentou enormemente. Para fugir da superexploração no campo, os mujiques emigraram em massa para as cidades. A população urbana do Império passou de 6 para 18,3 milhões entre 1863 e 1914. Nas cidades, os migrantes se tornaram proletários industriais. A metalurgia e a indústria têxtil se desenvolveram aceleradamente em São Petersburgo, capital do país, e também em Moscou e em Kiev, em menor escala. Com grande investimento de capital francês, inglês, alemão e belga, a Rússia logo se tornaria também uma nação industrial.

É sintomático que no mesmo ano em que acontece a abolição da servidão na Rússia (1861) tenha início a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Nos dois extremos do mundo, Rússia e Estados Unidos, destinados a serem as maiores potências do século XX, o avanço em direção ao capitalismo encontra um mesmo marco no calendário. O capitalismo necessita que a força de trabalho seja libertada dos laços escravistas e feudais para se desenvolver enquanto sistema de extração de mais-valia mediatizado pela compra e venda entre “iguais”.

O desenvolvimento da cultura russa

Além da abolição da servidão, as reformas de Alexandre II outorgaram liberdade de organização ao ensino superior, revogando a tutela do clero sobre as universidades. Uma camada letrada começou a despontar nas cidades. Muitos intelectuais russos, oriundos da aristocracia e das classes burguesas, passaram a travar intercâmbio com a intelectualidade européia. Os ideais românticos e nacionalistas da burguesia européia tiveram eco no surgimento de uma consciência nacional russa moderna, marcada por um forte misticismo de origem popular. Era a época em que a “alma nacional” estava sendo “descoberta” (ou melhor, inventada) em vários países da Europa, especialmente os menores, mais atrasados e subjugados a impérios estrangeiros, mas também na própria Rússia. Nos meios intelectuais russos, acreditava-se na “missão” da Rússia de salvar a humanidade.

A partir da década de 1880, uma vibrante literatura russa conquistaria renome internacional, projetando autores que se tornaram clássicos universais. Desde o legendário poeta Alexander Puchkin, morto em duelo em 1837, considerado o Dante ou o Shakespeare da Rússia, até o tempestuoso e arrebatador Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o popularíssimo Leon Tolstoi (1828-1910), e um dos inventores do conto e do teatro modernos, Anton Tchecov (1860-1904); os autores russos se tornaram sinônimos de uma literatura de profundidade psicológica e existencial inigualável.

Nas artes em geral a Rússia se mostrou capaz de produzir obras tão sofisticadas quanto as das culturas mais avançadas da época. As composições de Piotr Tchaikovski (1840-1893) foram executadas nos grandes teatros europeus ao lado das de outros gênios contemporâneos como Wagner e Verdi. As companhias de ópera e ballet e as orquestras dos teatros Bolshoi (fundado em 1776) e Mariinsky (fundado em 1860 e rebatizado como Kirov depois da Revolução) firmaram uma reputação de excelência no cenário mundial que se mantém até hoje.

Até mesmo nas ciências naturais os russos se tornaram capazes de produzir inovações e descobertas tão fundamentais quanto as que eram desenvolvidas nos laboratórios das potências européias. Para ficar em apenas um exemplo, o químico Dmitri Mendelev (1834-1907) desenvolveu um sistema para classificar os elementos químicos a partir do seu peso atômico, criando o primeiro esboço daquilo que ficaria conhecido como tabela periódica e prevendo a descoberta de novos elementos.

A intelectualidade e os movimentos revolucionários

Essa cultura vívida e sofisticada se desenvolvia, as classes abastadas se tornavam ainda mais ricas, a economia do país crescia; mas a situação da maioria da população piorava. A crescente pauperização dos camponeses, as condições de vida do proletariado urbano (as jornadas de trabalho freqüentemente chegavam a 14 horas diárias, os salários eram miseráveis, as habitações precárias), a corrupção generalizada do Estado, o monopólio das carreiras de prestígio pelas famílias aristocráticas, o fausto da nobreza e da autocracia, a persistência do absolutismo, a opressão das nacionalidades, a completa ausência de liberdades civis e políticas; tudo isso exasperava a intelectualidade pequeno-burguesa das cidades. Nos círculos cultos de estudantes universitários e pequeno-burgueses, desenvolvem-se os germes dos primeiros movimentos revolucionários, na década de 1870.

O primeiro movimento significativo foi chamado de “narodnik” (da palavra russa “narod”, que significa povo), comumente traduzido como “populista”. Os narodnik tentaram dirigir-se às camadas mais exploradas do povo, ao campesinato, para despertá-lo para a necessidade de lutar contra o regime. Sonhavam reproduzir na Rússia as revoluções que já haviam acontecido na Europa, pondo fim ao absolutismo e ao feudalismo e proclamando a república. Sonhavam também com um vago ideal de socialismo utópico, baseado nas comunas rurais das aldeias (chamadas “Mir” em russo).

Os mujiques permanceram surdos aos apelos dos narodnik, incapazes de enxergar-se como classe (e menos ainda como classe revolucionária) e de ver o seu “paizinho Czar” como opressor. Inconformados, os narodnik partiram diretamente para a conspiração. Planejaram tomar o poder primeiro, para que o povo os seguisse depois. Organizaram-se sociedades secretas (dentre as quais a “Vontade do povo” e sua fração “Terra e Liberdade” ficaram famosas pela audácia) e planejaram-se atentados terroristas.

A escalada terrorista teve seu auge a partir de 1878. Generais, ministros, governadores e o próprio Czar foram acossados por franco-atiradores, granadas, carruagens que explodiam pelos ares. A maior parte da população ignorava ou não compreendia esses acontecimentos. Enquanto o povo permanecia passivo, a polícia caçava febrilmente os terroristas, suas redes de apoio, e mesmo os suspeitos de serem simpatizantes. Finalmente, o próprio Czar foi morto a tiros em 1881, depois de três atentados fracassados.

A reação se fez sentir imediatamente. As reformas do Czar assassinado, mesmo tímidas como foram (a concentração da terra na verdade se acentuou), haviam desagradado a nobreza, que clamava por um endurecimento do regime. O novo Czar, Alexandre III, acatou tais conselhos e instituiu a Okrana, a polícia secreta, encarregada de perseguir os revolucionários. Uma repressão feroz se abateu sobre os meios intelectuais. Houve dezenas de enforcamentos, um número ainda maior de exilados e milhares de presos foram enviados à Sibéria. Dentre os condenados ilustres à Sibéria, estiveram o escritor Dostoiévski e o pensador Tchernichevski (1828-89). A Rússia, que já exportava escritores brilhantes, passou a exportar também revolucionários ardentes e tiranicidas apaixonados. Depois da primeira safra de narodnik, vieram os anarquistas como Bakunin (cuja liderança rivalizou com Marx na direção da Associação Internacional dos Trabalhadores, a 1ª Internacional), Nechaiev e Kropotkin, todos forçados a se exilar na Europa.

Num novo complô contra o Imperador, em 1887, desbaratado antes de ser desencadeado, foi preso e enforcado o estudante Alexander Ulianov, de 21 anos, membro de uma organização terrorista. Seu irmão, Vladimir Ilitch Ulianov, então com 17 anos, passaria à história como Lenin, e seria bem sucedido onde Alexander falhou, adotando porém uma estratégia política completamente diferente.

É preciso destacar ainda a ocorrência dos “pogroms”, as perseguições aos judeus, tradicional bode expiatório dos regimes autoritários. Os judeus foram proibidos de residir nas grandes cidades, ou confinados em guetos e também forçados a migrar para a Polônia. Foram hostilizados pela população, muitos foram mortos, tiveram suas lojas depredadas, etc. A Okrana forjou os “Protocolos dos sábios de Sião”, um suposto plano dos judeus para conquistar o mundo, usado como pretexto para perseguir os judeus, os intelectuais e os revolucionários (na época essas três palavras eram muito freqüentemente sinônimos).

O movimento socialista e os partidos

Os 30 anos que separam a conspiração de Alexander da Revolução de Vladimir foram marcados pelo crescimento da industrialização, pelo desenvolvimento do movimento operário e pela difusão do socialismo. Em nenhum outro país como na Rússia a profecia de Marx de que “o capitalismo cria seus próprios coveiros” (a classe operária) seria mais verdadeira. A industrialização russa, tardia e acelerada, reunia em grandes fábricas (a lendária metalúrgica Putilov, em São Petersburgo, tinha mais de 10 mil operários, número assombroso para a época) um proletariado fortemente concentrado e submetido a uma exploração brutal. As jornadas eram longas, os salários eram baixos, pagos com atraso e corroídos por multas e punições arbitrárias dos patrões. Essas imensas massas humanas rapidamente desenvolviam a consciência da sua condição comum de exploração e da necessidade de organização e luta coletiva.

Já na década de 1870 começam as greves e manifestações operárias, violentamente reprimidas (os sindicatos eram proibidos e também qualquer tipo de organização ou mesmo reunião política). Também nessa década, os narodnik e os anarquistas começam a militar entre os operários. Na década seguinte formam-se as primeiras organizações operárias, todas clandestinas. O movimento toma impulso quando as idéias socialistas lhe fornecem uma doutrina, explicando o papel da classe operária na História, ou seja, sua condição protagônica na superação do capitalismo e da sociedade de classes. Os compactos batalhões do proletariado russo ofereciam terreno fértil para a semeadura das idéias socialistas.

“O Capital” havia sido publicado em russo em 1872; os grupos marxistas revolucionários se formam na década de 1890. O primeiro Congresso das organizações socialistas russas acontece em 1894, com o intuito de fundar um partido. Todos os participantes foram imediatamente presos. A militância socialista só poderia prosseguir na clandestinidade. A repressão não diferenciava entre os grupos narodnik e anarquistas, com suas táticas terroristas, e os socialistas, com seu paciente trabalho de organização entre os operários. Eram todos considerados criminosos e como tais eram enforcados, presos, mandados para a Sibéria ou exilados.

O segundo Congresso somente aconteceria em 1903, em Londres, resultando na fundação do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Dele participaram nomes como Giorgi Plekhanov, introdutor do marxismo na Rússia, Vera Zasulitch, veterana revolucionária que fora terrorista narodnik na juventude, e o jovem mas já destacado Lenin. Esses três nomes integravam a redação da revista “Iskra” (Centelha), que publicava artigos de teoria marxista. Foi nessa revista que Lenin publicou o “Que fazer?”, obra em que expõe sua concepção de como deveria funcionar o partido.

Para Lenin, o partido deveria ser composto de revolucionários profissionais, ou seja, militantes clandestinos, inteiramente dedicados à causa da revolução, dispostos a mudar de fábrica para fábrica, de cidade em cidade, organizando greves e círculos operários, promovendo comícios e panfletagens, divulgando as publicações do partido e coletando fundos para a organização, recolhendo notícias das diversas bases e distribuindo informes da situação nacional e internacional.

Na votação que se seguiu sobre os critérios de filiação ao partido, a proposta de Lenin obteve a maioria, enquanto a ala liderada por Iuri O. Zederbaum (Martov), que propunha um critério mais frouxo de filiação, admitindo simpatizantes sem tarefas definidas, ficou em minoria. O partido acaba dividido em duas alas, a da maioria (“bolchevique”, em russo) e a da minoria (“menchevique”). Essa divisão quanto à questão organizativa refletia uma divergência política de fundo em relação à concepção programática. Enquanto a ala menchevique se aproximaria do reformismo e da colaboração com a burguesia, os bolcheviques mantiveram a inflexível linha revolucionária.

O partido de tipo proposto pelos mencheviques é adequado à concepção “etapista” de revolução. Nessa concepção, deveria haver primeiramente uma revolução burguesa na Rússia e somente depois a revolução socialista. A Rússia deveria passar preliminarmente por uma revolução capitalista, sob a égide da burguesia, a quem os trabalhadores deveriam seguir, para somente depois, num momento posterior, num capitalismo desenvolvido e num regime democrático-burguês consolidado, colocar-se a tarefa de disputar o poder. O partido de tipo proposto pelos bolcheviques, ao contrário, é um partido preparado para a guerra implacável contra o regime burguês. Os bolcheviques partiam da caracterização correta de que a burguesia russa era demasiado fraca para lutar contra o czarismo e pior, atavicamente predisposta a se aliar com este para esmagar as classes subalternas. Desse modo, a Revolução anti-czarista na Rússia seria liderada pelo proletariado, que, das reivindicações políticas democrático-burguesas, passaria logo em seguida à tomada do poder e às medidas transicionais socialistas (reforma agrária, estatizações, etc.).

As duas alas seguiriam atuando dentro do mesmo partido, disputando sua direção a cada Congresso e aplicando separadamente suas respectivas linhas políticas, até 1912, quando as divergências se provaram inconciliáveis a ponto de determinar a formação de dois partidos distintos. Curiosamente, o grupo bolchevique logo se tornaria minoria (paradoxo explicável, pois era muito mais difícil recrutar revolucionários profissionais do que “simpatizantes” socialistas) em relação aos mencheviques e assim prosseguiria até 1917.

Outro agrupamento que desempenharia papel importantíssimo no período subseqüente era o Partido Socialista-Revolucionário (que não era marxista, apesar do nome), mais conhecido como SR (seus militantes eram chamados “esseristas”). Surgido no início do século XX das cinzas dos narodnik, o SR defendia o socialismo utópico baseado na Mir, e era extremamente popular entre os camponeses e a pequena-burguesia das cidades. Dada a debilidade da burguesia liberal, que temia muito mais a sublevação das classes subalternas do que o pesado tacão da repressão, e portanto não se organizava em partidos de oposição significativos, o SR era na verdade o maior partido da Rússia. Combinava a luta parlamentar com a tática terrorista. Sua formidável organização clandestina de combate causaria baixas importantes nas fileiras da classe dominante, assassinando ministros e aristocratas por anos a fio.

O fato de que o socialismo marxista tenha apresentado uma tática mais eficiente e historicamente superior ao terrorismo, qual seja, a organização da classe operária diretamente no “chão de fábrica”, não significava que ela tivesse sido imediatamente adotada por todos. O terrorismo continuaria sendo uma praga na vida política russa por décadas. O POSDR conviveu com os SR e os anarquistas, pequena porém estridente minoria, durante os longos anos de preparação até a Revolução de Outubro.

A Revolução de 1905

Os primeiros anos do século XX foram marcados por um forte ascenso do movimento operário. O ritmo do movimento pode ser medido pelo número de vezes em que o governo usou tropas para reprimir greves e manifestações. Foram 19 vezes em 1893. Esse número cresceu para 50 em 1899, 33 em 1900, 241 em 1901, 522 em 1902 e 427 em 1903. Esse crescimento impressionante das mobilizações atesta a imensa combatividade da classe operária russa. O ascenso do proletariado, ao lado das mobilizações estudantis, das agitações esseristas no campo e do levantamento das nacionalidades oprimidas, colocava um desafio aberto à capacidade do regime imperial de administrar o país.

A saída do Czar para contornar essa situação difícil não poderia ser pior: a guerra contra o Japão. Como parte do impulso em direção ao Oriente, a ferrovia Transiberiana é completada em 1904, ligando Moscou a Vladivostok, no Pacífico, com acesso a Port Artur (Lüshun), cedido pela China. O Japão sentiu-se provocado pela penetração russa em sua área de influência e declarou guerra ao Impéro russo. Era a oportunidade que o Czar esperava para mobilizar o entusiasmo popular em defesa da “mãe Rússia”, galvanizar a nação e silenciar a oposição interna. No entanto, o tiro saiu pela culatra. O Japão venceria a guerra (a armada russa no Pacífico foi completamente destruída), o que foi motivo de espanto mundial.

O conflito seria encerrado de maneira humilhante para os russos em agosto de 1905. Antes disso, a população sofreu com as dificuldades econômicas provocadas pelo esforço de guerra. Para que se tenha idéia das dificuldades que a guerra acarretava, um navio da frota do Mar Negro (portanto muito distante do teatro de operações), o encouraçado Potemkin, foi tomado por um motim dos marinheiros, que se rebelaram contra as privações e o sistema de castigos corporais vigente na Marinha. O episódio do Potemkin se tornaria célebre (virou filme em 1925) e foi encerrado com o exílio dos amotinados na Romênia.

O recrudescimento das dificuldades econômicas provocado pela guerra com o Japão aumentou a disposição das massas populares. Uma marcha em direção ao próprio palácio do Czar foi organizada por um padre no dia 9 de janeiro de 1905, com o objetivo de entregar uma petição ao soberano. Reivindicava-se a redução da jornada de trabalho nas fábricas, o direito de organização, liberdade de imprensa, Constituição e sufrágio universal. Os operários marcharam com suas famílias, mulheres, crianças e idosos, carregando ícones religiosos e entoando cânticos de louvor ao “paizinho Czar”. Foram recebidos à bala pelos cossacos da guarda imperial. Houve centenas de mortos e milhares de feridos.

O “domingo sangrento” marcou o divórcio definitivo entre a população de São Petersburgo e a autocracia. Dali por diante não poderia haver senão ódio e desejo de vingança por parte do povo contra o tirano. O massacre debilitou as organizações populares na capital, mas por todo o país aconteciam greves, manifestações, motins e atentados contra autoridades. A população de São Petersburgo somente voltaria a se mobilizar em outubro de 1905. Os gráficos de Moscou entram em greve, exigindo o pagamento dos sinais de pontuação. Imediatamente, a greve ganha a adesão das outras categorias e das demais cidades. Logo, a capital também está em greve geral. Grandes massas se mobilizam novamente. Dessa vez, porém, os operários estão melhor preparados. Ao invés de ícones religiosos, erguem-se barricadas nas ruas.

No processo de organização da greve os operários de cada fábrica, cada bairro, cada setor da cidade, enviam representantes para um comando de greve centralizado, o “conselho dos delegados operários”. O conselho (“soviet” em russo), cujos delegados podiam ser revogados a qualquer momento por suas bases, materializava a forma mais acabada de democracia direta e foi a mais importante inovação política do movimento socialista russo. Nascido diretamente da iniciativa das massas, o seu surgimento podia ser tomado como indicador da elevada maturidade da consciência de classe do proletariado russo. O presidente do primeiro soviet foi Lev D. Bronstein (Trotsky), então estudante de matemática, que militava entre os operários e não pertencia nem aos bolcheviques, nem aos mencheviques.

O governo enviou tropas para sufocar o soviet e houve enfrentamento com os operários armados. Os trabalhadores resistiram heroicamente, mas a sua inexperiência e a falta de um projeto estratégico (o soviet não se propunha derrubar o governo e tomar o poder) culminaram na derrota do movimento. Os líderes foram presos e o movimento refluiu.

Esse conjunto de episódios ficaria conhecido como a “Revolução de 1905”, a qual Lenin mais tarde denominou o “ensaio geral” para a Revolução de Outubro. Logo em seguida a essa primeira onda revolucionária, o Czar Nicolau II (entronizado em 1894), que sentiu a força e o perigo da insatisfação popular, foi obrigado a fazer concessões. Foram convocadas eleições para uma Duma (Parlamento), que no entanto somente se reuniria em 1907 (quando os deputados revolucionários já haviam sido devidamente expurgados). O primeiro-ministro Stolipyn decretou uma nova reforma agrária, distribuindo mais terras aos camponeses, porém não ainda em quantidade suficiente.

Ao mesmo tempo em que acenava com essas concessões, o governo recrudescia a repressão, obrigando a maior parte das lideranças (entre as quais Lenin e Trotsky) a se exilarem. O movimento operário entra refluxo e somente volta a se levantar às vésperas da 1ª Guerra Mundial.

Às vésperas da Revolução

Em meados de 1917, a população russa já estava exausta com mais uma guerra, dessa vez muito mais longa e mortífera. Havia escassez de víveres e racionamento, sendo que a prioridade era dada aos soldados na linha de frente. Cansados de lutar, porém, os soldados desertavam em massa, voltando para suas aldeias e cidades. Os regimentos se decompunham caoticamente e a hierarquia do exército se esfarelava. A economia também estava desorganizada, a produção em declínio, havia gargalos de abastecimento em todos os setores.

O cansaço com a guerra era generalizado e também a insatisfação com o regime. A agitação política se intensificava e os rumores de uma nova Revolução cresciam. Logo os soviets começariam a ressurgir espontaneamente no seio das massas. A população em geral (e os soldados em especial) queria o fim da guerra. Os camponeses queriam mais terra. E todos queriam pão. Só havia um grupo político que, sintonizado com as necessidades populares, agitava sistematicamente essas três palavras de ordem, “pão, paz e terra”: o partido bolchevique. E mais do que isso, os bolcheviques indicavam também por meio de outro slogan o único caminho pelo qual essas três reivindicações poderiam ser atingidas: “todo poder aos soviets!” Era a senha da Revolução.

Daniel M. Delfino
24/10/2007

3 comentários:

Lily disse...

Ajudaram imensamente todas essas informações, obrigada.

Micaela disse...

MICAELA disse...
Essas informações são muito interessantes e me ajuda muito....
Muito Obrigada.

Anônimo disse...

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