7.2.16

A falácia do "almoço grátis" e o passe livre



O aumento do preço das passagens dos ônibus e metrôs em várias capitais e regiões metropolitanas em 2016 motivou uma nova onda de protestos de rua, impulsionados pelo MPL (Movimento Passe Livre) e apoiados por outros movimentos e organizações, reprimidos com a costumeira e criminosa brutalidade policial, e universalmente difamados pelos sórdidos mercenários da mídia.
Somando-se ao massacre, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad – PT, contestou os protestos dizendo que os ativistas do MPL estão querendo algo como “almoço grátis, jantar grátis, viagem para a Disney grátis”, algo impossível, e que seria preciso “eleger um mágico” para conseguir. Imediatamente, o prefeito foi aplaudido por todos os setores conservadores e reacionários por lembrar aos esquerdistas que “não existe almoço grátis”. Esse velho chavão é um dito típico do mundo anglo-saxônico (https://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%A3o_existe_almo%C3%A7o_gr%C3%A1tis), mas tem se tornado popular entre os direitistas brasileiros, carentes de imaginação própria, bem como de qualquer originalidade teórica de modo geral.
O pensamento conservador costuma responder a todos os movimentos reivindicatórios, que pedem qualquer tipo de reforma ou melhoria social, dizendo que “não existe almoço grátis”. Pelo raciocínio conservador, quem está pedindo algo como o Passe Livre, ou seja, transporte público de graça, está pedindo para tirar de onde não tem. O almoço sempre tem que ser pago por alguém, por isso não pode ser de graça. O transporte público tem um custo, que precisa ser coberto por alguém. Se alguém está querendo transporte público de graça, segundo a lógica conservadora, esse alguém está na verdade querendo que outros paguem as suas passagens. Está querendo andar de ônibus ou de metrô às custas dos outros. É um vagabundo que não quer trabalhar.
Essa conclusão de que “não existe almoço grátis” é uma consequência da visão de mundo conservadora, que pretende explicar todas as questões sociais como problemas de aptidão individual. O conservador vive em um mundo de ficção, onde supostamente quem trabalha duro consegue pagar pelo que precisa, seja transporte, saúde, educação, moradia, lazer, etc. E inversamente, quem não tem o que precisa, na verdade deixa de ter porque não se esforça o suficiente para merecer. Logo, o Estado não tem que prover serviços públicos de transporte, saúde, educação, moradia, lazer, etc., para ninguém, porque cada um tem que se esforçar para conseguir por conta própria.

O almoço já está pago
De fato, os conservadores têm razão, e não existe almoço “grátis”, mas porque todo almoço já foi pago. O que a esquerda reivindica não é que alguém pague para que os outros consumam sem ter “feito por merecer”, mas fazer com que todos os que produzem (portanto “merecem”) tenham o direito de consumir. Porque na sociedade atual a produção e o consumo estão separados pela barreira da propriedade privada dos meios de produção. Ou seja, alguns trabalham e produzem, mas não têm o direito de consumir, porque tiveram o seu trabalho roubado. E quando querem usufruir do direito de consumir o que foi produzido (por exemplo, o transporte público), são acusados de querer consumir de graça, sem pagar.
Mas na verdade os trabalhadores, que produzem toda a riqueza existente na sociedade, já pagaram por meio do seu trabalho um valor mais do que suficiente para lhes dar o direito de usufruir transporte, saúde, educação, moradia, lazer, etc. Já pagaram por meio do seu trabalho, mas foram roubados no próprio ato de trabalhar, na própria forma como se organiza o trabalho, na forma capitalista como se trocam as atividades necessária para a sobrevivência da sociedade: o trabalho assalariado. Foram roubados, mas não percebem. Vejamos como essa mistificação acontece.
Todos os produtos e serviços que circulam na economia foram produzidos por alguém. Esse “alguém” são os trabalhadores assalariados, ou seja, que trabalham em troca de salário*. O salário é o valor necessário para cobrir a reprodução da vida do trabalhador, ou seja, sua alimentação, vestuário, moradia, etc., de uma forma que ele possa vender sua força de trabalho no dia seguinte. Acontece que a jornada de trabalho dos assalariados é usada para gerar produtos e serviços cujo valor total é muito maior do que o valor do salário.
A soma do total que um trabalhador produz ao longo de sua jornada é maior do que o valor que ele recebe como salário, ou seja, do que o valor necessário para cobrir a sua sobrevivência. Durante uma parte da jornada ele trabalha o suficiente para produzir um valor equivalente ao dos bens e serviços de que precisa para sobreviver, e é pago por esse trabalho na forma de salário. Mas o trabalhador não trabalha somente até esse ponto, ele continua trabalhando depois de já ter gerado o valor do próprio salário. Nessa segunda parte da jornada ele trabalha de graça. Ele continua gerando produtos e serviços, que são apropriados pelo patrão, que os vende no mercado, e recebe assim, ao final, um valor muito maior na venda dos produtos do que o valor inicial que investiu em matérias primas, máquinas, salários, etc.
Ou seja, não existe salário justo, todo salário é um roubo. Todo trabalhador é roubado diariamente, porque seu trabalho gera um valor maior do que aquele que recebe como salário. Esse valor maior é chamado de mais valia, e é a fonte do lucro dos patrões. Ao contrário do que dizem os mitos conservadores, ninguém fica rico por se esforçar no trabalho. A origem de toda a riqueza dos ricos é a apropriação de trabalho não pago. É o roubo sistemático, cotidiano, silencioso e implícito que todo assalariado sofre. Esse roubo diário, a exploração do trabalho, é o alicerce fundamental da sociedade capitalista, o fato básico, elementar, de onde deveria se iniciar qualquer discussão. Mas, convenientemente para os exploradores, o fato básico da exploração é jogado para debaixo do tapete por toneladas de ideologia (falsas explicações da realidade social) inventadas por acadêmicos, jornalistas, religiosos, políticos, publicitários, roteiristas, e uma vasta laia de parasitas intelectuais regiamente pagos para fazer esse serviço sujo. Sem entender a exploração não se entende nenhum fenômeno social, como a desigualdade, cuja origem não está no mérito dos indivíduos, mas na exploração de uns pelos outros.

Origem das desigualdades e o papel do Estado
O mercado não é uma competição em que todos saem iguais na linha de largada, é uma disputa viciada desde o início, porque uma parte dos competidores saiu em condições de vantagem. O filho de um patrão tem sempre melhores condições de concorrer (por uma vaga em universidade, concurso, etc.) do que o filho de um trabalhador. A consequência disso é que uns tendem a continuar sendo patrões e outros tendem a continuar sendo trabalhadores. Ou seja, a diferença entre “pobres” e “ricos” não é uma diferença de grau, em que se pode ir passando aos poucos de um nível para o outro, como se estivéssemos avançando milímetros numa régua. É uma diferença de natureza, de forma de ser, de relação social, que origina classes sociais separadas por um abismo. Existe uma classe exploradora (que vive da mais valia gerada pelos outros) e uma classe de explorados (trabalhadores assalariados que geram mais valia). A origem dessa diferença está no passado histórico distante, em que trabalhadores rurais e urbanos foram expropriados (roubados) dos seus meios de produção (suas terras, ferramentas, oficinas) e foram forçados a trabalhar para os patrões.
Se existe uma classe social de grandes empresários e super-ricos, é porque seus ancestrais em algum momento do passado usaram a força para obrigar os outros a trabalhar. Os exemplos de gente que “começou de baixo” e ficou rico são raras exceções, um caso entre milhares, que fazem a imensa maioria dos milhões de trabalhadores acreditar que também tem alguma chance de competir. A quase totalidade dos ricos e super ricos que controlam a economia dos países descende de membros dessa mesma classe social. Da mesma forma, alguns países são ricos e outros são pobres porque lá atrás, em algum momento da História, alguns países foram invadidos por outros, saqueados, tiveram suas populações nativas exterminadas ou escravizadas, etc. Nós vivemos até hoje as consequências dessa história de violência e espoliação, e seguimos sendo espoliados todos os dias.
Quando dissemos que foi usada a força, estamos nos referindo à força do Estado, a instituição mãe de todas as instituições, e detentora do monopólio do uso da força armada (só o Estado pode ter armas, não a população). Seja na forma de monarquia, de ditadura, de república “democrática”, o Estado, por meio das forças armadas, polícia, prisões, etc., exerce esse monopólio da força sempre em favor dos patrões e contra os trabalhadores. É o que vemos em todas as greves, protestos, ocupações, etc., em que a polícia está de prontidão para defender a propriedade privada dos meios de produção e o lucro.
Além do uso da força, o Estado cumpre um papel econômico, ao arrecadar impostos, que são descontados das diferentes classes sociais (em geral os ricos pagam menos e os pobres pagam mais). Com esses impostos os governos supostamente deveriam prover serviços que são da utilidade de todos. Mas o que vemos, no caso do Brasil, por exemplo, é que algo em torno de 45% da arrecadação federal (ou seja, R$ 978 bilhões em 2014, e mais do que isso em 2015, conforme http://www.auditoriacidada.org.br/) é usado para pagar uma tal de “dívida pública”, uma dívida fraudulenta (originada na ditadura militar, um regime ilegal, além de que nós trabalhadores nunca pegamos esse dinheiro emprestado), que consome fortunas todos os anos, mas mesmo assim não para de aumentar, justamente porque os juros da dívida são definidos por um comitê formado pelos próprios credores. Recentemente o BC anunciou que não iria subir os juros na proporção que o “mercado” gostaria e foi ameaçado com o fogo do inferno pelos chacais da imprensa (não que a redução dos juros fosse fazer alguma diferença, pois é necessário cancelar a totalidade dessa dívida espúria).

Passe Livre sem mágica
Voltando então ao debate sobre o transporte público, esse serviço evidentemente possui um custo, que é o da aquisição de ônibus (ou vagões), combustível (ou eletricidade), manutenção dos veículos (e trilhos), salário dos funcionários, obras, reparo de acidentes, etc. O valor pago em passagens deveria ser o suficiente para cobrir esse custo, e ainda, para formar um fundo de reserva a ser aplicado, por exemplo, em melhorias (ônibus ou trens novos e de melhor qualidade, fontes de energia limpas) ou na ampliação da rede (construção de novas linhas, estações, etc.). Entretanto, além do custo de operação do serviço e do fundo de reserva, uma parte da arrecadação é desviada para formar o lucro dos proprietários. Essa parte da arrecadação, portanto, é completamente inútil, estéril. Se não existisse a propriedade privada das empresas de transporte urbano, o valor das tarifas deveria ser ajustado apenas para cobrir apenas o seu custo de operação (e do fundo para investimentos em melhorias), e não para garantir o lucro dos empresários.
O ponto de partida da discussão sobre o custeio do transporte urbano deveria ser este: qual o custo da sua operação e dos investimentos necessários para a sua melhoria (os quais chamaremos de custo real) e qual o plano estratégico para essas melhorias, a ser decidido coletivamente pelos usuários, e não como garantir o lucro de empresários privados. Mas esse ponto é justamento o que nunca é discutido. O poder público, a prefeitura e o governo do estado, partem de um pressuposto, o preço apresentado pelos empresários do setor, e dizem para a sociedade que é preciso aumentar as tarifas. Haddad e Alckmin estão lá para garantir o lucro dos empresários, e não o serviço de transporte público para a população.
A primeira medida então, para resolver o problema de financiamento do transporte público, é expropriar as empresas de ônibus, trens e metrô, e colocá-las sob controle social, com fóruns coletivos para decidir sobre o seu funcionamento, com acesso público total aos seus custos, decisão mediante voto da população organizada em conselhos de usuários sobre o planejamento estratégico em melhorias, etc. Sem essa parcela inútil do total arrecadado com tarifas que é desviada como lucro dos empresários, teríamos o valor real do transporte público. Resta como uma questão a ser investigada descobrir o tamanho dessa parcela desviada como lucro. Abrir as planilhas de custo das empresas de transporte possivelmente nos revelaria algumas surpresas, sobre quanto os empresários embolsam e quanto investem no serviço. Qual é a proporção de cada fatia?
Outra questão importante é que, como inadvertidamente deixou entrever o próprio Haddad, não é preciso nenhuma mágica para conceder o Passe Livre. Na mesma ocasião em que fez essa asquerosa declaração debochando dos protestos contra o aumento, o prefeito de São Paulo disse que o custo para implantação do Passe Livre seria de R$ 8 bilhões, o equivalente a toda a arrecadação do IPTU do município. Supondo-se que essa conta esteja correta (ou seja, esquecendo-se que uma parte desse valor não se refere ao custo real do transporte, mas na verdade corresponde a uma fatia inútil desviada como lucro dos empresários, que não deveria existir), a prefeitura teria que conseguir arrecadar mais R$ 8 bilhões para subsidiar o transporte público gratuito, e manter os demais serviços em funcionamento. De onde tirar esses R$ 8 bilhões?
Muito simples: aumentando os impostos da classe empresarial. O município de São Paulo é a sede de uma parte importante do capital instalado no país. Bancos, empreiteiras, montadoras, cadeias de varejo, etc., uma quantidade enorme de grandes empresas nacionais e estrangeiras tem suas sedes em São Paulo. Grandes empresários tem suas mansões em São Paulo. Ainda que a competência do município o autorize a cobrar apenas o imposto predial e territorial (IPTU) e os demais impostos sejam de competência estadual e federal, um aumento drástico na alíquota do IPTU faria os empresários devolverem na forma de imposto uma parte da riqueza que roubam diariamente dos trabalhadores na forma de lucro, ou seja, mais valia, trabalho não pago.
Mas para isso seria preciso que o PT rompesse com a classe empresarial para quem governa, o que é impossível. O PT não vai fazer isso, e os trabalhadores organizados, a partir dos locais de trabalho, moradia e estudo, precisam construir um movimento independente, capaz de impor essa e outras reivindicações contra os governos do PT, PSDB, PMDB ou qualquer partido que controle o Estado. Passe Livre, mediante a expropriação das empresas de transporte, sob controle da população organizada em conselhos de usuários, e mediante aumento drástico dos impostos da classe empresarial. Até que façamos algum dia uma revolução para acabar com a propriedade privada, o trabalho assalariado, o Estado e todas as formas de exploração e de opressão.

*Omitimos aqui a discussão sobre as diferenças entre trabalho produtivo e improdutivo, assalariados em geral e classe trabalhadora, trabalho gerador de mais valia, etc., para não alongar demais o texto. Usamos esses termos genericamente.



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