O
aumento do preço das passagens dos ônibus e metrôs
em várias capitais e regiões metropolitanas em 2016
motivou uma nova onda de protestos de rua, impulsionados pelo MPL
(Movimento Passe Livre) e apoiados por outros movimentos e
organizações, reprimidos com a costumeira e criminosa
brutalidade policial, e universalmente difamados pelos sórdidos
mercenários da mídia.
Somando-se
ao massacre, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad – PT,
contestou os protestos dizendo que os ativistas do MPL estão
querendo algo como “almoço grátis, jantar grátis,
viagem para a Disney grátis”, algo impossível, e que
seria preciso “eleger um mágico” para conseguir.
Imediatamente, o prefeito foi aplaudido por todos os setores
conservadores e reacionários por lembrar aos esquerdistas que
“não existe almoço grátis”. Esse velho
chavão é um dito típico do mundo anglo-saxônico
(https://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%A3o_existe_almo%C3%A7o_gr%C3%A1tis),
mas tem se tornado popular entre os direitistas brasileiros, carentes
de imaginação própria, bem como de qualquer
originalidade teórica de modo geral.
O
pensamento conservador costuma responder a todos os movimentos
reivindicatórios, que pedem qualquer tipo de reforma ou
melhoria social, dizendo que “não existe almoço
grátis”. Pelo raciocínio conservador, quem está
pedindo algo como o Passe Livre, ou seja, transporte público
de graça, está pedindo para tirar de onde não
tem. O almoço sempre tem que ser pago por alguém, por
isso não pode ser de graça. O transporte público
tem um custo, que precisa ser coberto por alguém. Se alguém
está querendo transporte público de graça,
segundo a lógica conservadora, esse alguém está
na verdade querendo que outros paguem as suas passagens. Está
querendo andar de ônibus ou de metrô às custas dos
outros. É um vagabundo que não quer trabalhar.
Essa
conclusão de que “não existe almoço grátis”
é uma consequência da visão de mundo
conservadora, que pretende explicar todas as questões sociais
como problemas de aptidão individual. O conservador vive em um
mundo de ficção, onde supostamente quem trabalha duro
consegue pagar pelo que precisa, seja transporte, saúde,
educação, moradia, lazer, etc. E inversamente, quem não
tem o que precisa, na verdade deixa de ter porque não se
esforça o suficiente para merecer. Logo, o Estado não
tem que prover serviços públicos de transporte, saúde,
educação, moradia, lazer, etc., para ninguém,
porque cada um tem que se esforçar para conseguir por conta
própria.
O almoço
já está pago
De fato,
os conservadores têm razão, e não existe almoço
“grátis”, mas porque todo almoço já foi
pago. O que a esquerda reivindica não é que alguém
pague para que os outros consumam sem ter “feito por merecer”,
mas fazer com que todos os que produzem (portanto “merecem”)
tenham o direito de consumir. Porque na sociedade atual a produção
e o consumo estão separados pela barreira da propriedade
privada dos meios de produção. Ou seja, alguns
trabalham e produzem, mas não têm o direito de consumir,
porque tiveram o seu trabalho roubado. E quando querem usufruir do
direito de consumir o que foi produzido (por exemplo, o transporte
público), são acusados de querer consumir de graça,
sem pagar.
Mas na
verdade os trabalhadores, que produzem toda a riqueza existente na
sociedade, já pagaram por meio do seu trabalho um valor mais
do que suficiente para lhes dar o direito de usufruir transporte,
saúde, educação, moradia, lazer, etc. Já
pagaram por meio do seu trabalho, mas foram roubados no próprio
ato de trabalhar, na própria forma como se organiza o
trabalho, na forma capitalista como se trocam as atividades
necessária para a sobrevivência da sociedade: o trabalho
assalariado. Foram roubados, mas não percebem. Vejamos como
essa mistificação acontece.
Todos os
produtos e serviços que circulam na economia foram produzidos
por alguém. Esse “alguém” são os
trabalhadores assalariados, ou seja, que trabalham em troca de
salário*. O salário é o valor necessário
para cobrir a reprodução da vida do trabalhador, ou
seja, sua alimentação, vestuário, moradia, etc.,
de uma forma que ele possa vender sua força de trabalho no dia
seguinte. Acontece que a jornada de trabalho dos assalariados é
usada para gerar produtos e serviços cujo valor total é
muito maior do que o valor do salário.
A soma
do total que um trabalhador produz ao longo de sua jornada é
maior do que o valor que ele recebe como salário, ou seja, do
que o valor necessário para cobrir a sua sobrevivência.
Durante uma parte da jornada ele trabalha o suficiente para produzir
um valor equivalente ao dos bens e serviços de que precisa
para sobreviver, e é pago por esse trabalho na forma de
salário. Mas o trabalhador não trabalha somente até
esse ponto, ele continua trabalhando depois de já ter gerado o
valor do próprio salário. Nessa segunda parte da
jornada ele trabalha de graça. Ele continua gerando produtos e
serviços, que são apropriados pelo patrão, que
os vende no mercado, e recebe assim, ao final, um valor muito maior
na venda dos produtos do que o valor inicial que investiu em matérias
primas, máquinas, salários, etc.
Ou seja,
não existe salário justo, todo salário é
um roubo. Todo trabalhador é roubado diariamente, porque seu
trabalho gera um valor maior do que aquele que recebe como salário.
Esse valor maior é chamado de mais valia, e é a fonte
do lucro dos patrões. Ao contrário do que dizem os
mitos conservadores, ninguém fica rico por se esforçar
no trabalho. A origem de toda a riqueza dos ricos é a
apropriação de trabalho não pago. É o
roubo sistemático, cotidiano, silencioso e implícito
que todo assalariado sofre. Esse roubo diário, a exploração
do trabalho, é o alicerce fundamental da sociedade
capitalista, o fato básico, elementar, de onde deveria se
iniciar qualquer discussão. Mas, convenientemente para os
exploradores, o fato básico da exploração é
jogado para debaixo do tapete por toneladas de ideologia (falsas
explicações da realidade social) inventadas por
acadêmicos, jornalistas, religiosos, políticos,
publicitários, roteiristas, e uma vasta laia de parasitas
intelectuais regiamente pagos para fazer esse serviço sujo.
Sem entender a exploração não se entende nenhum
fenômeno social, como a desigualdade, cuja origem não
está no mérito dos indivíduos, mas na exploração
de uns pelos outros.
Origem
das desigualdades e o papel do Estado
O
mercado não é uma competição em que todos
saem iguais na linha de largada, é uma disputa viciada desde o
início, porque uma parte dos competidores saiu em condições
de vantagem. O filho de um patrão tem sempre melhores
condições de concorrer (por uma vaga em universidade,
concurso, etc.) do que o filho de um trabalhador. A consequência
disso é que uns tendem a continuar sendo patrões e
outros tendem a continuar sendo trabalhadores. Ou seja, a diferença
entre “pobres” e “ricos” não é uma diferença
de grau, em que se pode ir passando aos poucos de um nível
para o outro, como se estivéssemos avançando milímetros
numa régua. É uma diferença de natureza, de
forma de ser, de relação social, que origina classes
sociais separadas por um abismo. Existe uma classe exploradora (que
vive da mais valia gerada pelos outros) e uma classe de explorados
(trabalhadores assalariados que geram mais valia). A origem dessa
diferença está no passado histórico distante, em
que trabalhadores rurais e urbanos foram expropriados (roubados) dos
seus meios de produção (suas terras, ferramentas,
oficinas) e foram forçados a trabalhar para os patrões.
Se
existe uma classe social de grandes empresários e super-ricos,
é porque seus ancestrais em algum momento do passado usaram a
força para obrigar os outros a trabalhar. Os exemplos de gente
que “começou de baixo” e ficou rico são raras
exceções, um caso entre milhares, que fazem a imensa
maioria dos milhões de trabalhadores acreditar que também
tem alguma chance de competir. A quase totalidade dos ricos e super
ricos que controlam a economia dos países descende de membros
dessa mesma classe social. Da mesma forma, alguns países são
ricos e outros são pobres porque lá atrás, em
algum momento da História, alguns países foram
invadidos por outros, saqueados, tiveram suas populações
nativas exterminadas ou escravizadas, etc. Nós vivemos até
hoje as consequências dessa história de violência
e espoliação, e seguimos sendo espoliados todos os
dias.
Quando
dissemos que foi usada a força, estamos nos referindo à
força do Estado, a instituição mãe de
todas as instituições, e detentora do monopólio
do uso da força armada (só o Estado pode ter armas, não
a população). Seja na forma de monarquia, de ditadura,
de república “democrática”, o Estado, por meio das
forças armadas, polícia, prisões, etc., exerce
esse monopólio da força sempre em favor dos patrões
e contra os trabalhadores. É o que vemos em todas as greves,
protestos, ocupações, etc., em que a polícia
está de prontidão para defender a propriedade privada
dos meios de produção e o lucro.
Além
do uso da força, o Estado cumpre um papel econômico, ao
arrecadar impostos, que são descontados das diferentes classes
sociais (em geral os ricos pagam menos e os pobres pagam mais). Com
esses impostos os governos supostamente deveriam prover serviços
que são da utilidade de todos. Mas o que vemos, no caso do
Brasil, por exemplo, é que algo em torno de 45% da arrecadação
federal (ou seja, R$ 978 bilhões em 2014, e mais do que isso
em 2015, conforme http://www.auditoriacidada.org.br/)
é usado para pagar uma tal de “dívida pública”,
uma dívida fraudulenta (originada na ditadura militar, um
regime ilegal, além de que nós trabalhadores nunca
pegamos esse dinheiro emprestado), que consome fortunas todos os
anos, mas mesmo assim não para de aumentar, justamente porque
os juros da dívida são definidos por um comitê
formado pelos próprios credores. Recentemente o BC anunciou
que não iria subir os juros na proporção que o
“mercado” gostaria e foi ameaçado com o fogo do inferno
pelos chacais da imprensa (não que a redução dos
juros fosse fazer alguma diferença, pois é necessário
cancelar a totalidade dessa dívida espúria).
Passe
Livre sem mágica
Voltando
então ao debate sobre o transporte público, esse
serviço evidentemente possui um custo, que é o da
aquisição de ônibus (ou vagões),
combustível (ou eletricidade), manutenção dos
veículos (e trilhos), salário dos funcionários,
obras, reparo de acidentes, etc. O valor pago em passagens deveria
ser o suficiente para cobrir esse custo, e ainda, para formar um
fundo de reserva a ser aplicado, por exemplo, em melhorias (ônibus
ou trens novos e de melhor qualidade, fontes de energia limpas) ou na
ampliação da rede (construção de novas
linhas, estações, etc.). Entretanto, além do
custo de operação do serviço e do fundo de
reserva, uma parte da arrecadação é desviada
para formar o lucro dos proprietários. Essa parte da
arrecadação, portanto, é completamente inútil,
estéril. Se não existisse a propriedade privada das
empresas de transporte urbano, o valor das tarifas deveria ser
ajustado apenas para cobrir apenas o seu custo de operação
(e do fundo para investimentos em melhorias), e não para
garantir o lucro dos empresários.
O ponto
de partida da discussão sobre o custeio do transporte urbano
deveria ser este: qual o custo da sua operação e dos
investimentos necessários para a sua melhoria (os quais
chamaremos de custo real) e qual o plano estratégico para
essas melhorias, a ser decidido coletivamente pelos usuários,
e não como garantir o lucro de empresários privados.
Mas esse ponto é justamento o que nunca é discutido. O
poder público, a prefeitura e o governo do estado, partem de
um pressuposto, o preço apresentado pelos empresários
do setor, e dizem para a sociedade que é preciso aumentar as
tarifas. Haddad e Alckmin estão lá para garantir o
lucro dos empresários, e não o serviço de
transporte público para a população.
A
primeira medida então, para resolver o problema de
financiamento do transporte público, é expropriar as
empresas de ônibus, trens e metrô, e colocá-las
sob controle social, com fóruns coletivos para decidir sobre o
seu funcionamento, com acesso público total aos seus custos,
decisão mediante voto da população organizada em
conselhos de usuários sobre o planejamento estratégico
em melhorias, etc. Sem essa parcela inútil do total arrecadado
com tarifas que é desviada como lucro dos empresários,
teríamos o valor real do transporte público. Resta como
uma questão a ser investigada descobrir o tamanho dessa
parcela desviada como lucro. Abrir as planilhas de custo das empresas
de transporte possivelmente nos revelaria algumas surpresas, sobre
quanto os empresários embolsam e quanto investem no serviço.
Qual é a proporção de cada fatia?
Outra
questão importante é que, como inadvertidamente deixou
entrever o próprio Haddad, não é preciso nenhuma
mágica para conceder o Passe Livre. Na mesma ocasião em
que fez essa asquerosa declaração debochando dos
protestos contra o aumento, o prefeito de São Paulo disse que
o custo para implantação do Passe Livre seria de R$ 8
bilhões, o equivalente a toda a arrecadação do
IPTU do município. Supondo-se que essa conta esteja correta
(ou seja, esquecendo-se que uma parte desse valor não se
refere ao custo real do transporte, mas na verdade corresponde a uma
fatia inútil desviada como lucro dos empresários, que
não deveria existir), a prefeitura teria que conseguir
arrecadar mais R$ 8 bilhões para subsidiar o transporte
público gratuito, e manter os demais serviços em
funcionamento. De onde tirar esses R$ 8 bilhões?
Muito
simples: aumentando os impostos da classe empresarial. O município
de São Paulo é a sede de uma parte importante do
capital instalado no país. Bancos, empreiteiras, montadoras,
cadeias de varejo, etc., uma quantidade enorme de grandes empresas
nacionais e estrangeiras tem suas sedes em São Paulo. Grandes
empresários tem suas mansões em São Paulo. Ainda
que a competência do município o autorize a cobrar
apenas o imposto predial e territorial (IPTU) e os demais impostos
sejam de competência estadual e federal, um aumento drástico
na alíquota do IPTU faria os empresários devolverem na
forma de imposto uma parte da riqueza que roubam diariamente dos
trabalhadores na forma de lucro, ou seja, mais valia, trabalho não
pago.
Mas para
isso seria preciso que o PT rompesse com a classe empresarial para
quem governa, o que é impossível. O PT não vai
fazer isso, e os trabalhadores organizados, a partir dos locais de
trabalho, moradia e estudo, precisam construir um movimento
independente, capaz de impor essa e outras reivindicações
contra os governos do PT, PSDB, PMDB ou qualquer partido que controle
o Estado. Passe Livre, mediante a expropriação das
empresas de transporte, sob controle da população
organizada em conselhos de usuários, e mediante aumento
drástico dos impostos da classe empresarial. Até que
façamos algum dia uma revolução para acabar com
a propriedade privada, o trabalho assalariado, o Estado e todas as
formas de exploração e de opressão.
*Omitimos
aqui a discussão sobre as diferenças entre trabalho
produtivo e improdutivo, assalariados em geral e classe trabalhadora,
trabalho gerador de mais valia, etc., para não alongar demais
o texto. Usamos esses termos genericamente.
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