O
economicismo é um vício tão arraigado na
esquerda* que as organizações são incapazes de
abordar qualquer questão social de uma outra forma que não
seja uma pauta de reivindicações sindicais. A esquerda
parte do pressuposto de que o “trabalhador” é o sujeito
revolucionário, mas é incapaz de definir o que é
o trabalhador hoje, e transformou essa categoria numa fórmula
metafísica, na qual tenta encaixar à força a
realidade em todos os seus infinitos e multifacetados aspectos.
Há
mais de 100 anos, no “Que Fazer?”, Lênin já
fulminava os economicistas que achavam que o único assunto que
interessava aos trabalhadores eram salários e horas de
trabalho. A política revolucionária consistia
exatamente em elevar a consciência dos trabalhadores para além
do ambiente da fábrica e levá-los a entender e lutar
por mudanças na sociedade em geral. Mas fazer uma política
revolucionária de verdade como a que foi defendida por Lênin,
abrangente e totalizante, é muito difícil. Então,
a esquerda tende a regredir para o piloto automático
economicista e achar que a única discussão “classista”
possível é a que se refere a salários e jornadas
de trabalho. Porque “classe trabalhadora” é sinônimo
de operário na fábrica com baixos salários e
jornadas extenuantes, e não pode ser mais nada além
disso. Nessa visão, todas as dimensões da vida do
trabalhador fora do seu local de trabalho ficam fora do alcance da
esquerda, sob o controle estrito das instituições e da
ideologia burguesa, e a esquerda se exime de fazer qualquer coisa a
respeito delas.
O
trabalhador como uma totalidade humana de relações, que
se baseiam no trabalho e na alienação do trabalho sob a
forma capitalista, mas que vão muito além disso,
desaparece e em seu lugar temos uma vulgar caricatura de “homo
economicus”. Ao “trabalhador” pelo qual a esquerda se
interessa, supostamente não interessa nenhum outro tipo de
questões, como a degradação ambiental, serviços
públicos, crime, violência, drogas, polícia e
direitos humanos, mobilidade urbana, direitos do consumidor, artes e
espetáculos, ciência e tecnologia, esporte e lazer,
psicologia e psicanálise, religião e filosofia,
sexualidade, saúde, comportamento, padrão de beleza,
moda, etc. Supostamente, nada disso passa pela cabeça do
trabalhador em nenhum momento. Logo, para a esquerda, nada disso
interessa nem mobiliza.
A
esquerda reduz o “trabalhador” a um ser cuja vida se reduz a
apenas salários, jornada e condições de
trabalho. Nessa perspectiva reducionista e rebaixada, não é
preciso debater nenhum dos demais aspectos da vida, porque são
questões “sem importância” ou “pequeno burguesas”,
ou não são “de trabalhador”, não são
“classistas”. A esquerda, do alto da sua arrogância,
sectarismo, incultura, e auto complacência, considera que essas
questões não são dignas da atenção
dos “revolucionários”. Não “se rebaixam” a
tratar delas. Prefere correr atrás do próprio rabo,
dialogar consigo mesma, panfletar a si mesma e pregar para os já
convertidos. Enquanto isso, todos os acontecimentos, questões
e lutas que não se referem a salários e condições
de trabalho podem ser deixadas na alçada de movimentos
parciais, específicos, pequeno-burgueses, culturalistas,
pós-moernos, etc.
Quantidade
e qualidade
Se isso
é muito grave no que diz respeito à situação
do “trabalhador” em geral e às formas de organizá-lo
para lutar contra o capitalismo, é muito mais grave no que se
refere aos chamados setores “oprimidos” da sociedade. Pois assim
como não interessam para a esquerda as diversas dimensões
da vida do trabalhador fora da fábrica, também não
interessam, consequentemente, a relação entre os sexos,
o patriarcado, o machismo, racismo, LGBTfobia. Essas questões
somente são debatidas ou incorporadas de alguma forma devido à
teimosia, persistência e heroísmo de alguns militantes
mulheres, negros e LGBTs. Quando esses militantes, num esforço
hercúleo, conseguem convencer a maioria das organizações
em que participam a incluir alguma de suas pautas na discussão,
isso acontece de maneira deformada, rebaixada, restrita, como uma
concessão que a maioria “ortodoxa” faz, como se fosse mais
um item da pauta economicista. Essa é a única língua
que a esquerda consegue falar.
A
esquerda trata as “opressões” sofridas por mulheres,
negros e LGBTs como se fossem uma mera dimensão quantitativa
adicional que em determinados casos se acrescenta à exploração
do “trabalhador” (aquele ser que existe quando adentra a porta da
fábrica, e não fora dela) em geral. De acordo com esse
raciocíno, o “trabalhador em geral” é explorado, e
os oprimidos são aqueles trabalhadores que são “um
pouco mais explorados”. E esse “um pouco mais” de exploração
é a única coisa que a esquerda consegue entender como
uma possível definição de “opressão”.
Os “oprimidos” são setores que são “explorados em
dobro”, por isso merecem alguma consideração, algum
espaço a mais nas pautas. “Opressão”, segundo essa
lógica, não é nada mais do que isso.
A única
forma da esquerda entender mulheres, negros e LGBTs é como
seres que são oprimidos porque são mais explorados,
recebem os menores salários e trabalham nos piores empregos.
Logo, eles merecem um capítulo a mais na pauta de
reivindicações do sindicato. A esquerda reivindica um
tanto para o trabahador, e “um pouquinho mais” para os
“oprimidos”. E com isso a consciência dos esquerdistas fica
tranquila por haver tratado da questão das “opressões”.
Uma atitude unilateral, condescendente e paternalista, que está
muito longe de ser suficiente para atacar a especificidade e a
profundidade das opressões.
É
verdade que mulheres, negros e LGBTs recebem os piores salários
e trabalham nos piores empregos, mas a “opressão” está
muito longe de se resumir a apenas isso. O grau adicional de
exploração dos “oprimidos” não é
apenas causa da opressão, mas também, dialeticamente,
conseqüência. As “opressões”, ou seja, o
machismo, o racismo e a LGBTfobia surgem e se multiplicam para além
do local de trabalho e dizem respeito a questões que vão
muito para além de salários e jornadas de trabalho. São
relações que atravessam todas as dimensões da
vida dos oprimidos, dentro e fora do local de trabalho, no cotidiano,
na família, no casamento, na cama, na educação,
no transporte público, na vivência cultural, etc.
“...unidade
do diverso” - (Marx)
A
opressão não é (apenas) um “quantum”
adicional de exploração que se acrescenta à cota
de exploração “normal” que determinados setores da
população sofrem enquanto trabalhadores. É muito
mais do que isso: um conjunto de violências, agressões,
discriminações, subestimações,
sofrimentos que agravam determinados setores da população
(em função de diferenças de gênero, etnia,
orientação sexual, nacionalidade, religião,
língua, etc.) em diversos aspectos da sua vida, nos seus
locais de trabalho e para além deles, nos espaços
públicos e privados. Sendo assim, precisam de respostas
específicas.
A
esquerda precisa entender o quanto as “opressões” não
são uma mera dimensão quantitativa adicional da
exploração, mas uma dimensão qualitativa que
afeta a totalidade da vida dos oprimidos, se quiser mobilizar também
esses setores. Na visão simplista da esquerda, os
“trabalhadores” estão por definição e a
priori unidos aos “oprimidos”, as mulheres, negros e LGBTs, na
luta contra a burguesia, o capitalismo e o Estado. Na realidade, o
machismo, o racismo e a LGBTfobia estão arraigados no interior
da própria classe trabalhadora, e na verdade atravessam todas
as classes sociais.
É
a própria classe trabalhadora que também reproduz
cotidianamente o machismo, o racismo e a LGBTfobia como parte das
suas alienações. São os próprios
trabalhadores que tem que ser reeducados para superar a opressão.
A começar pelos próprios militantes de esquerda, que
acham que essas questões não são importantes (já
que na maior parte dos casos não conseguem sequer encaixá-las
na pauta dos sindicatos). No caso do machismo, por exemplo, ele tem
que ser combatido fazendo os homens aprender a cozinhar, lavar roupa
e cuidar dos filhos, na mesma proporção em que as
mulheres, e fazendo as mulheres ler filosofia, desenvolver a oratória
e dirigir reuniões políticas, da mesma forma que os
homens o fazem. É preciso dissolver as hierarquias baseadas em
papéis sociais de gênero. E da mesma forma em relação
às demais opressões, que precisam de medidas
específicas, e ao mesmo tempo transversais e totalizantes.
Por trás
do rótulo de “opressões”
É
verdade que o machismo, o racismo e a LGBTfobia só podem ser
superados com a superação do próprio capitalimo,
e isso só pode ser feito pela ação consciente,
coletiva e organizada da classe trabalhadora, em uma revolução
socialista. Mas para que isso seja feito, é preciso que a
classe trabalhadora (e principalmente os revolucionários que
querem organizá-la) estejam conscientes de que existem o
machismo, o racismo e a LGBTfobia, do que são essas formas de
opressão e de como enfrentá-las. É preciso estar
consciente da dimensão qualitativa das “opressões”,
e não reduzí-las a um aspecto quantitativo adicional da
exploração.
Inclusive,
usamos até aqui “opressões” entre aspas, desde o
título do texto, porque esse é o nome que se dá
para o capítulo adicional que se dedica nas pautas sindicais
às mulheres, negros e LGBTs, como uma espécie de anexo
ou nota de rodapé do conjunto de resoluções. Ao
dar esse nome e juntar todos num pacote, a esquerda contribui
justamente para mistificar e não entender o que são as
opressões. A especificidade da condição da
mulher, do negro e dos LGBT desaparece quando todos são
incluídos num mesmo pacote com o nome de “opressões”.
Por baixo do rótulo de “opressões” dado ao pacote,
fica mais fácil fazer com que desapareça o que há
de específico na condição de cada um e com que a
opressão seja entendida de maneira indevida como mera dimensão
quantitativa adicional da exploração. Para evitar esse
processo de mistificação, ao invés de usar
“opressões” como um pacote de agravamentos quantitativos
indistintos que se acrescentam à exploração de
determinados setores, é preciso falar separadamente e de
maneira específica o que é a opressão sofrida
por cada um deles, o machismo, o racismo e a LGBTfobia. É
preciso criar um capitulo para cada um.
Para
além da dupla jornada da mulher, o machismo é um
sistema de opressão que condena a mulher a não ser e
reduz o homem a uma determinada forma de ser. Sob o patriarcado, a
mulher é o ser que não é (Saffioti). A mulher
não pode ser protagonista, sujeito, racional, dona de si e
capaz de decidir. O homem, por outro lado, tem que ser competitivo,
duro, senhor das decisões e emocionalmente mutilado. O
machismo mutila homens e mulheres de diferentes formas, eles como
agressores e elas como vítimas. Só com o fim do
machismo teremos relações equilibradas e igualitárias
entre homens e mulheres. E estarão abertas formas de
sensibilidade e realização para ambos os sexos,
independentemente dos papéis de gênero hoje existentes.
A luta
contra o racismo, por sua vez, enfrenta uma imensa dificuldade para
ser “encaixada” numa aboragem classista. A esquerda não
consegue unificar raça e classe, porque não percebe que
já estão unificados na figura dos trabalhadores negros.
Não é possível separar, num trabalhador negro, a
parte em que ele é trabalhador e a parte em que é
negro. O trabalhador negro é sempre e a todo momento um
trabalhador e um negro. A classe trabalhadora é negra e a
demanda de igualdade racial é uma demanda dos trabalhadores. A
esquerda tem um pavor da luta por reparações para o
povo negro, por cotas, ações afirmativas, etc., porque
são pautas supostamente “reformistas”, que não
atacam o capital e a divisão de classes. Como se a luta por
melhores salários e condições de trabalho (ou
seja, a continuidade do trabalho assalariado) fosse muito
revolucionária! A esquerda não tolera uma gota de
“reformismo” no movimento negro, ao mesmo tempo em que se atola
no reformismo sindical. Exige que os negros passem direto da favela
para os soviets, sem mediações, enquanto que os
sindicatos (reformistas na sua natureza e estatizados) são
cultuados pelos séculos afora como se fossem o espaço
por excelência da emancipação do trabalhador.
A
população LGBT, por sua vez, enfrenta a impossibilidade
de se realizar sexualmente e ser socialmente aceita, por conta da
existência de um modelo de família e de relação
sexual estruturado em torno do patriarcado e do machismo. Os LGBTs
não se encaixam nos papéis sociais e sexuais designados
nem para os homens, nem para as mulheres, e por isso são um
“problema” para os conservadores, que querem de qualquer forma
neutralizá-los ou normatizá-los, violentando sua
orientação sexual e sua forma de ser. Em tempos de
polarização social, são a vítima
preferencial do fundamentalismo religioso e do fascismo.
Em cada
caso específico, as “opressões” dizem respeito a
estruturas de poder e formas de dominação que são
funcionais ao capitalismo, mas que não se confundem
necessariamente e diretamente com a relação de trabalho
assalariado. Por isso, precisam ser enfrentados na sua especificidade
e no seu aspecto qualitativo, profundo e totalizante, para além
de uma pauta meramente econômica e quantitativa. Para lutar
contra essas formas de dominação é preciso
desenvolver esforços dirigidos, específicos, que se
aprofundem na realidade das mulheres, negros e LGBTs, tais como eles
são (tal como a esquerda deveria fazer com o “trabalhador”
em geral), a partir da base, das demandas concretas, e elevar
gradualmente essas lutas a um enfrentamento contra o capital.
*esquerda
= setor que defende a transformação da sociedade (ao
contrário de “direita”, que defende a sua transformação).
Sendo a atual sociedade de tipo capitalista, é de esquerda
quem defende o fim do capitalismo e a construção do
socialismo. Considerando esse critério, deve ficar óbvio
que nem PT, nem PcdoB são de esquerda, já que são
administradores do capitalismo (para ser rigoroso, não é
esquerda nem mesmo a maior parte do PSOL). Portanto, quando falamos
de esquerda, estamos falando de quem defende uma revolução
socialista.
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