A
manifestação das alunas do Colégio Anchieta em
Porto Alegre (no dia 24/02), contra a proibição de usar roupas curtas
no verão, chamou bastante atenção nos últimos
dias. Infelizmente, há um bom número de comentários
negativos, condenando a manifestação, com os mais
variados argumentos. Os argumentos são tão infelizes
que não há como se calar diante deles (e é
preciso muito esforço para chamar alguns de “argumentos”,
porque a maior parte dos comentários melhor se qualifica como
insultos e latidos hidrófobos).
Uma das
objeções que se apresenta é de que se trata de
“patricinhas”, ou seja, adolescentes economicamente
privilegiadas, o que faria com que a sua manifestação
deixasse de ter valor. O fato de serem ou não privilegiadas
pode ser discutido. Mas, mesmo que se conceda que são
“patricinhas”, isso não é critério decisivo
para desqualificar a manifestação, em última
instância. O critério é se a manifestação
é ou não socialmente progressiva. E nesse caso é.
Não se compara as “patricinhas” de Porto Alegre em luta
contra uma proibição na escola com as patricinhas (e
mauricinhos) da Avenida Paulista, por exemplo, que estiveram algumas
vezes nas ruas em defesa do impeachment de Dilma (mas na verdade
estavam expressando seu ódio contra a classe trabalhadora, que
as néscias criaturas pensam que o PT representa). As meninas
de Porto Alegre, supostamente “patricinhas”, pelo contrário,
estão defendendo uma causa que é socialmente
progressiva, como veremos, e por isso devem ser apoiadas sim.
Outro
argumento diz que as meninas não têm o direito de
contestar a proibição de roupas curtas porque se trata
de uma decisão da direção da escola, uma escola
particular, que teria por isso a liberdade de definir os seus
critérios de vestuário, ou do que quer que seja. Se as
alunas não estão contentes, que se mudem para outra
escola, é o que dizem. Mas a escola não pode ter o
poder de se colocar fora da sociedade! A escola particular é
uma empresa, mas não é uma empresa que vende uma
“mercadoria” qualquer. A relação de estudante com a
escola não é uma simples relação de
consumo, em que se pode trocar de marca quando não gosta. Uma
escola é (pelo menos deve ser) um espaço de formação,
de socialização, de inserção nas questões
políticas, sociais e culturais. O combate ao machismo é
uma questão do conjunto da sociedade, e nenhuma escola, seja
ela pública ou privada, pode ser furtar ao dever de enfrentar
esse combate. Por isso, as meninas estão dando uma lição
de cidadania e participação na direção da
escola/empresa em que estudam, e estão de parabéns por
isso.
Enfrentando
o machismo
A causa
pela qual as meninas estão lutando é progressiva,
porque diz respeito ao enfrentamento do machismo. Elas estão
batendo de frente com a concepção de que os homens e
garotos não podem se controlar quando vêem certas partes
do corpo de uma mulher ou garota. É como se a mulher, ao andar
com roupas curtas, desencadeasse uma espécie de gatilho, um
mecanismo automático, em que inevitavelmente,
compulsoriamente, necessariamente o homem vai assediá-la, ou
vai no mínimo ficar descontrolado, distraído, perder a
concentração, etc. Como se o ser do sexo masculino
fosse um animal, um ser incapaz de se conter, que não pode
deixar de abordar, assediar, agredir sexualmente uma mulher de roupas
curtas. Ora, se isso acontece, o problema está nos homens e
garotos que agem assim, não nas mulheres e garotas. É o
sexo masculino que tem que ser educado para aprender a respeitar o
feminino. O homem pode fazer qualquer coisa quando vê uma
mulher com partes do corpo expostas, qualquer coisa menos achar que
isso lhe dá algum tipo de direito sobre o corpo dessa mulher.
É preciso que isso fique bem claro: a culpa do assédio
sexual é sempre do agressor, nunca da vítima. Não
é a atitude da mulher que provoca o abuso, o abuso é
sempre um desrespeito cometido pelo homem.
É
estúpida a conexão que se faz entre “usar roupa
curta” e declarar-se como objeto sexual, como vadia, etc. Essa
concepção de achar que a mulher ou adolescente que
expõe partes do corpo está “lhe dando o direito” de
abordá-la, assediá-la, agredí-la sexualmente, é
o que está errado e deve ser combatido. Aqui não se
trata de flerte, de paquera, de uma aproximação
respeitosa e consentida, do jogo da sedução, mas da
concepção de que a mulher que se expõe “dá
o direito” de que o homem trate seu corpo como objeto à
disposição para o seu prazer. De que o homem possa
assobiar, gesticular, chamar de “gostosa”, pra ir “lá em
casa”, etc. Isso não é agradável nem elogioso
para nenhuma mulher, é agressivo, desrespeitoso, repugnante.
Essa concepção de que o corpo da mulher é um
objeto à disposição do homem não é
algo sem importância, ela é a base para a cultura do
estupro, a cultura do femicídio, que faz com que milhares de
mulheres sejam assassinadas, estupradas, espancadas, agredidas física
e psicologicamente pelos homens, que se acham seus proprietários.
As
meninas do colégio Anchieta estão de parabéns
por bater de frente contra essa cultura nefasta e toda a opressão
que ela representa. Além disso, há o aspecto adicional
de que se trata também de uma reivindicação de
igualdade. Afinal, por que os garotos podem usar roupas curtas
impunemente no calor e as garotas não podem? Por que a
exposição de partes do corpo dos garotos não é
considerada “obscena”, “provocativa”, “indecente”? Por
que não aciona nenhum “gatilho” animal no sexo feminino,
que não fica “descontrolado”? Por que é esperado
que as meninas se contenham ao ver os garotos com roupas curtas, mas
não se pode impor igualmente que os meninos se contenham da
mesma forma? Por que os garotos tem esse privilégio? Não
podem ter e já está na hora de aprender que não
podem.
Como
funcionam de fato as lutas sociais
Mas
então, e aí surge o argumento mais cretino de todos,
isso nem sequer deveria estar sendo discutido, porque “existe coisa
mais importante contra a qual se manifestar”. É o cretinismo
do tudo ou nada. Ou as meninas se manifestam contra a corrupção,
o desemprego, a inflação, a crise econômica,
etc., e todos os demais problemas que assolam o país, ou não
podem se manifestar contra nada. Como se a solução
desses problemas dependesse delas! Ou como se ninguém pudesse
se manifestar por coisa nenhuma enquanto esses problemas nacionais
não forem resolvidos. E inversamente, quem diz que as meninas
não podem se manifestar contra a proibição de
roupas curtas supostamente está, ou teria a obrigação
de estar, lutando contra todas as mazelas do país ao mesmo
tempo!
E isso
não acontece, simplesmente porque não existe no momento
nenhum movimento geral “contra tudo o que está errado”.
Mesmo a luta contra os grandes problemas do país, como a
inflação, o desemprego, etc., é uma luta travada
através de uma série de micro enfrentamentos, de greves
de determinadas categorias, de manifestações, de ações
específicas. É a soma dos vários pequenos
movimentos, que giram em torno de questões específicas,
que constitui no momento a luta “contra tudo o que está
errado”. É assim que essa luta é feita, e não
existe nenhuma outra forma (no atual momento histórico,
insistimos). Afirmar que “há coisas mais importantes” e
que por isso a manifestação das meninas não
deveria existir equivale a confessar que não entende nada de
como se trava uma luta política e social.
Dizer
que elas deveriam estar se manifestando por coisas “mais
importantes” chega a ser bizarro, surreal. Onde está o
“causômetro” que define quas causas são prioritárias
e quais são secundárias? Quem define as causas pelas
quais as meninas têm que se manifestar, antes que possam sem
manifestar pelas roupas curtas? A única resposta possível
é que só podem ser elas mesmas que definem. Cada
segmento da sociedade se manifesta contra aquilo que o aflige. Para
as alunas do Anchieta essa é a questão e elas tem todo
o direito de se manifestar. Para os estudantes de Goiás a luta
é contra a privatização das escolas. Para os
índios kaiowás a luta é contra o genocídio
nas mãos dos jagunços do agronegócio, debaixo
das barbas dos poderes constituídos do estado, que expõe
assim o seu caráter de instrumento de classe. Enfim, as causas
são muitas, e cada um luta como pode. Essa é a luta
social que existe hoje, é assim que a luta é feita no
momento.
Mas
então, alguém poderia questionar: “você está
defendendo que cada um lute apenas pelo que lhe diz respeito?” Não,
porque é exatamente ao contrário que as coisas
acontecem. Ao lutar pela sua questão particular, a proibição
das roupas curtas, as meninas ampliam o seu horizonte e se deparam
também com as questões gerais da sociedade. Por isso
todas as lutas sociais são importantes. Cada segmento
explorado e oprimido da sociedade que luta por suas questões
específicas, ao se colocar em movimento, acaba se deparando
com a questão geral, as mazelas do capitalismo. A própria
realidade é pedagógica, e é por isso que se diz
que só a luta muda a vida. Os que questionam as manifestações
dizendo “por que não se manifestam contra a crise, contra a
corrupção, contra a inflação, etc.,?”
estão com isso dando mostras de que não entendem nada
sobre como funciona uma ação política e uma luta
social. Essas pessoas dão mostras de que o seu único
debate sobre política é o que acontece na mesa de bar,
chingando o governo de plantão.
Só
a luta muda a vida
Se já
tivessem participado de algum tipo de ação política
ou luta social, uma greve, uma manifestação, um ato,
uma ocupação, um comício, etc., se soubessem a
dificuldade envolvida em construir essas atividades, convencer
pessoas, mover os interessados; enfim, se tivessem algum tipo de
experiência política e de luta real, saberiam que na
verdade as coisas seguem um caminho oposto, do particular para o
geral. Em geral as pessoas começam lutando por alguma causa
específica ou local e no curso da luta tomam conhecimento de
como ela está relacionada às questões gerais, do
papel do estado repressor, da mídia difamadora, das igrejas,
dos preconceitos, etc. Nesse ponto, além de serem cretinos, os
detratores do manifesto das meninas de Porto Alegre estão
sendo desonestos. Estão criticando algo que nem sequer se
deram ao trabalho de conhecer. Porque se tivessem ao menos lido o
manifesto das alunas do Anchieta, que aliás, deve ser lido na
íntegra, se deparariam com o seguinte trecho, que mostra que
elas estão sim preocupadas com as questões sociais
gerais (e com esse trecho encerro o texto, porque não preciso
me alongar mais para expressar o que elas podem dizer por si mesmas):
“O
Colégio Anchieta diz ser um colégio que ensina a pensar
e fazer o futuro, mas nós não vemos nada de futuro em
suas aulas e suas políticas. Não discutimos temas
atuais, fenômenos sociais; não aprendemos política;
nunca ouvimos falar de feminismo, machismo, sexismo, racismo e
xenofobia em sala de aula; não aprendemos sobre opressão
de classe, gênero e raça; não nos falaram sobre o
desastre da Vale/Samarco nem sobre as operações
anticorrupção acontecendo no Brasil; não nos
explicam sobre cotas para universidade; não nos ensinam a
diferença entre opinião e discurso de ódio; não
nos ensinam o mínimo para compreender e para viver em
sociedade.
A
prioridade é ensinar para o ENEM e vestibulares, entendemos.
Mas a educação social e política não pode
ser deixada de lado. É por meio dela que construiremos uma
geração melhor que a anterior; é por meio dela
que criaremos um mundo onde mulheres não serão julgadas
e humilhadas pelas roupas que escolhem vestir, pela forma que tem ou
por quantas pessoas já transaram; é por meio dela que
acabaremos com a realidade de que, a cada 2 minutos, 5 mulheres são
espancadas no Brasil e, a cada 11 minutos, 1 é estuprada; é
por meio dela que criaremos um mundo onde cotistas não
precisarão ouvir que “roubaram a vaga” de alguém
que estudou a vida inteira em colégio particular; um mundo
onde mães de crianças negras tenham certeza de que, no
fim do dia, seus filhos voltarão pra casa; um mundo onde não
perderemos mais vidas para a Guerra Às Drogas; onde mulheres
não morrerão em clínicas clandestinas de aborto;
onde a religião e a política não se misturarão;
onde o capital não será mais importante do que a vida;
onde os problemas de hoje serão solucionados.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário