18.3.16

A luta de classes na era pós PT e as respostas da esquerda - parte 2/3




Na parte 1 analisamos as posições que tendem para uma defesa do PT e do governo Dilma. Agora, debatemos as posições que defendem a queda do governo (junto com a queda da oposição burguesa), mas com muitos problemas e limites.

Fora Dilma, Fora Todos!
Há um setor da esquerda que defende que o governo do PT deve mesmo cair, porém fazem questão de acrescentar que não são apenas contra Dilma, Lula e o PT, mas também contra Aécio, Cunha, Renan, o Congresso, etc. Defendem Fora Dilma e Fora Todos. O problema dessa posição é que ela não considera o fator mais elementar: quem vai derrubar quem, cara pálida? Existe algum movimento colocado no cenário que possa ir além da derrubada de Dilma e derrubar também todos os demais? Qual é o caráter de classe, a base social, a ideologia, as organizações que compõem o atual movimento pelo impeachment? Será que esse movimento tem alguma coisa a ver com a esquerda, a classe trabalhadora, as suas lutas, suas reivindicações e seu projeto histórico? Deixamos a resposta a essas indagações mais para o final.
Por enquanto basta dizer que, na nossa visão, o atual movimento para derrubar Dilma não vai derrubar “todos” (Aécio, Cunha, Renan, Congresso, etc.). O movimento pelo impeachment vai parar na queda de Dilma (adicionalmente, talvez se acrescente a prisão de Lula como cereja do bolo), pois como disse o jornalista Ricardo Noblat num ato falho de sincericídio, é preciso derrubar logo a presidente para que a Operação Lava Jato pare de prejudicar a classe política (https://twitter.com/BlogdoNoblat/status/708353342653788160?ref_src=twsrc%5Etfw). Ou seja, para que a corrupção possa voltar ao normal, sem ter que repassar a fatia do PT.
O movimento que está sendo orquestrado para derrubar Dilma e remover o PT da gestão do Estado (e do festim da corrupção) vai parar por aí mesmo, no PT, e não vai derrubar “todos”. Para que houvesse um “Fora Todos!”, teria que haver um outro movimento, um movimento dos trabalhadores. E é isso o que está ausente do cenário. Os trabalhadores não estão se mobilizando para derrubar o governo do PT, nem muito menos para derrubar também a oposição de direita (e também não estão se mobilizando para apoiar ou defender o governo, como vimos acima). Boa parte dos trabalhadores rejeitam o governo do PT, e uma parte pode chegar a ter a vaga esperança de que a saída de Dilma e a mudança de governo resolva os problemas. Mas daí até se mobilizar, seja pelo impeachment, seja pelo “Fora Todos!”, a distância é muito grande (mesmo porque a oposição de direita também é bastante rejeitada).
Se os trabalhadores não estão se mobilizando pelo impeachment (no máximo têm uma esperança vaga de melhoria), e por tudo o que dissemos desde o início, a conclusão óbvia é de que esse movimento está sendo construído com uma outra base social e ideologia, a da burguesia. O impeachment é uma posição que está ganhando peso na classe patronal, como possível saída para a crise política e econômica, depois de muita vacilação, idas e vindas, divisões e reacomodações do empresariado desde a eleição de 2014. Subjacente a esse movimento está aquilo a que nos referimos como a desforra ideológica da ultra direita contra todas as causas da esquerda. Defender o “Fora Todos!” no contexto do impeachment ou reconhecer o impeachment como se fosse uma espécie de primeira etapa do “Fora Todos!” (primeiro cai a Dilma e supostamente em seguida cairiam os demais) é desconhecer, desconsiderar, ignorar completamente a sua base social de classe e sua ideologia. Ou seja, é fazer unidade de ação com a burguesia.
Insistir que tem que derrubar Dilma junto com “todos” os outros e que sejam os trabalhadores que o façam só serve para realçar o vazio e a impossibilidade de que isso aconteça concretamente no curto prazo. Não são os trabalhadores que estão mobilizados para derrubar Dilma, nem para derrubar “todos” os demais, e nem para defender Dilma e o PT, simplesmente porque não estão mobilizados em nenhum grau. A participação dos trabalhadores no movimento pelo impeachment, nos atos convocados pela direita, é minoritária, incidental e fragmentada. Sem a presença massiva dos trabalhadores, suas reivindicações, organizações e métodos de luta, o caráter do movimento acaba sendo dado pelo direita e pela ultra direita.
Mesmo que as camadas médias que são maioria nos atos pelo impeachment não estejam em sua maioria cooptadas pelas ideias da ultra direita, nem defendam a ditadura militar, nem acreditem ou apoiem as lideranças da ultra direita (Bolsonaro, Feliciano, Malafaia), ainda assim o caráter dos atos é de direita, anti popular, anti operário. Seu discurso é contra a esquerda, contra os movimentos sociais, contra a luta dos trabalhadores, contra o socialismo, ainda que entenda tudo isso de modo difuso e fudamentalmente equivocado (dizendo “vai pra Cuba” aos petistas, como se o PT e Cuba tivessem alguma coisa a ver com comunismo). Os atos são construídos por partidos da oposição burguesa e ONGs neoliberais financiadas pelo imperialismo e convocadas pela mídia. Este movimento não está em disputa, e não pode ser apoiado. Pegar carona nesse movimento não vai servir para fazer avançar o projeto dos trabalhadores, porque é preciso que a classe esteja mobilizada com reivindicações, métodos e ideias próprias. Esse é o cerne da questão. Os trabalhadores não estão presentes no cenário político como classe, e sem isso qualquer proposta da esquerda não poderá se concretizar.

Eleições gerais
Uma versão mais atenuada do “Fora Dilma, Fora Todos!” é a que defende a convocação de eleições gerais como saída para o impasse político. O que está por trás dessa posição é a percepção de que o desgaste do governo pode favorecer as organizações de esquerda nas próximas eleições Algumas organizações têm a avaliação de que pode se repetir no Brasil o mesmo fenômeno de crescimento da votação da extrema esquerda eleitoral que vem ocorrendo em outros países, como Syriza na Grécia, Podemos na Espanha, Jeremy Corbin na liderança do Partido Trabalhista inglês e Bernie Sanders travando uma disputa honrosa pela indicação do Partido Democrata nos Estados Unidos (deixemos de lado temporariamente a avaliação do que significam esses fenômenos, pois exigiriam um texto para cada um). O correspondente desses fenômenos no Brasil seria, por exemplo, uma votação do PSOL ou talvez até mesmo do PSTU nas próximas eleições, que seja significativamente superior à sua irrisória média histórica.
Independente dessa avaliação estar correta ou não, de ser possível ou não uma votação expressiva dessas organizações nas eleições, o problema dessa posição é o seu imediatismo, quase oportunismo. É uma tentativa de colher algo de positivo do cenário de decomposição do PT, mesmo que seja simplesmente a eleição de alguns parlamentares. Os mini aparatos de esquerda salivam com a possibilidade de emplacar alguns de seus dirigentes e figuras públicas em mandatos periféricos, minoritários, numa correlação completamente desfavorável no geral, em que os projetos da direita tradicional teriam uma vitória esmagadora. A solução do problema para esses partidos, aquilo que vieram buscando por toda sua existência, uma maior projeção eleitoral, está longe de ser a solução dos problemas para a classe trabalhadora.
Concretamente, na luta de classes real, a eleição de alguns parlamentares ou mesmo prefeitos dos partidos de esquerda legalizados (PSOL, PSTU, PCB e PCO), não vai mudar muita coisa. Porque as eleições são um reflexo distorcido da luta de classes. No dia a dia da reprodução social, a capacidade de controle da burguesia e o grosso do aparato do Estado seguirá sendo usado contra os trabalhadores. Uma mudança real teria que vir de um processo massivo de mobilização e organização da classe trabalhadora. Essa deveria ser a prioridade de qualquer organização de esquerda. Nesse contexto, eleições gerais seriam um atalho que levaria a um beco sem saída, não um caminho para que as demandas dos trabalhadores possam ser atendidas.
De certa forma, defender eleições gerais, com o objetivo de que os partidos de esquerda tenham uma votação maior, equivale a reciclar a estratégia que levou ao fracasso do PT, a conquista de espaço no Estado. O PT trocou a luta de classes pela luta eleitoral e se tornou um partido burguês, cooptado pelo sistema. Querer repetir a ilusão de que as eleições podem melhorar a vida dos trabalhadores é repetir a história como farsa. O caminho a ser retomado vai na direção oposta, insistimos, a da mobilização e organização dos trabalhadores. A participação nas eleições tem que ser no máximo um instrumento secundário e subordinado.

Assembleia Constituinte
Uma outra versão da proposta de eleições gerais é a que defende uma Assembleia Constituinte como saída para a crise política. O problema dessa proposta é desconsiderar a correlação de forças políticas e ideológicas desfavorável aos trabalhadores que foi criada pelo naufrágio histórico do PT. Nessa atual correlação de forças, uma Assembleia Constituinte seria composta por representantes da direita mais raivosa e anti-popular. Alguns elementos progressistas que constam da atual Constituição de 1988, como por exemplo, a função social da propriedade, o salário mínimo, o SUS, entre outros, poderiam ser removidos. É claro que esses elementos só existem no papel, pois no dia a dia da reprodução social eles são atropelados pelo poder econômico do capital. Entretanto, eles ao menos constam no papel, e foram postos lá como resultado da correlação de forças da década de 1980, uma década de intensa mobilização e luta social.
É claro que a mobilização daquela época esteve longe de obter todas as conquistas que poderia, mas foi capaz de impor alguns elementos progressivos na Constituição. A luta para que sejam postos em prática efetivamente ainda pode servir como ponto de partida para mobilizações (como por exemplo, a proposta de auditoria cidadã da dívida, que foi prevista na Constituição, mas nunca aplicada). No cenário atual, pelo contrário, em que as legislações mais reacionárias estão sendo aprovadas pelo Congresso (Lei da terceirização, Lei Anti-terrorismo, etc.), as pautas da direita tem muito mais chance de serem incluídas: pena de morte, fim do direito de greve, etc.
Os defensores da Assembleia Constituinte fazem questão de dizer que defendem uma Constituinte apoiada na mobilização dos trabalhadores. Mas aí é que está a questão. Se há mobilização dos trabalhadores, é possível impor qualquer coisa: Constituinte, não pagamento da dívida, reestatização das empresas privatizadas, etc. O cardápio é vasto e cada um pode escolher a sua reivindicação preferida. O problema, pela enésima vez, não é escolher entre “Fora Dilma, Fora Todos!” ou “Assembleia Constituinte”, ou mesmo defesa contra o “golpe”, é como construir o processo de mobilização para tornar efetiva qualquer uma dessas saídas. E com isso temos a chave para passar ao próximo capítulo.

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O problema de todas essas posições, tanto as que defendem a permanência do governo quanto as que defendem a sua saída é observarem a política do ponto de vista da superestrutura, do poder político, do Estado e suas instituições, não do ponto de vista marxista, da política revolucionária, da luta de classes, da correlação de forças, dos projetos de classe e suas respectivas ideologias. Ao se concentrar na superestrutura, essas posições buscam soluções que não envolvem o trabalho de base e a construção de vínculos orgânicos, estruturas, organizações, projetos e ideologias próprios da classe trabalhadora. Sem ter feito a lição de casa, sem pegar no pesado, sem enfiar a mão na massa, sem meter o pé no barro, envolver-se no dia a dia da classe trabalhadora, fazendo pacientemente todo o percurso desde suas lutas mais moleculares até as questões mais gerais; sem ter feito nada disso as organizações que adotam essa metodologia superestrutural imaginam que podem mesmo assim se apropriar de movimentos criados por outras forças políticas e se tornar lideranças dos processos.
As organizações da esquerda brasielria imaginam que podem cair de pára quedas nos atos pelo impeachment ou pegar carona na defesa do governo e com isso passar direto para a liderança da classe trabalhadora. Dessa forma, a política revolucionária se reduz a simples política, deixa de ter uma base social de classe e passa a ser puro discurso. Passa a ser uma espécie de competição de táticas, um “concurso de palavras de ordem”: a organização que tiver a tática mais “revolucionária” vai liderar os trabalhadores e chegar ao poder. Trata-se então de um problema de “criatividade”. Quem for mais inventivo, mais competente no marketing, mais genial na comunicação, vai conseguir resolver a crise em favor dos trabalhadores. É como se o mérito do Partido Bolchevique na Revolução Russa fosse o de inventar a palavra de ordem de “Pão, paz e terra!”. Mais de quinze anos de mobilização e de organização entre os trabalhadores não tiveram nada a ver com o seu sucesso, foi tudo uma questão de criatividade nas palavras de ordem. Essa é a leitura histórica da esquerda brasileira, a se julgar pela sua atuação na crise atual.
Estamos fazendo uma caricatura propositalmente forçada para mostrar o quão gravemente está distorcida a teoria, a metodologia e a prática das organizações de esquerda no Brasil. A teoria inteira se baseia em uma frase de Trotsky: “a crise da humanidade é a crise da sua direção revolucionária”, arrancada do Programa de Transição de 1938. Como cada organização se considera ela própria “a direção revolucionária” dos trabalhadores brasileiros, basta fazer com que os trabalhadores reconheçam isso (inventando as palavras de ordem mais “revolucionárias”) para que esta organização os conduza ao poder. O fato elementar de que, para que haja uma direção revolucionária é preciso que haja antes um movimento revolucionário a ser dirigido não perturba os nossos bravos revolucionários. Se a realidade não se encaixa na sua “teoria”, dane-se a realidade!
O fato de que os trabalhadores, quando tomados em si, tais como existem imediatamente, não são revolucionários, mas reformistas quando muito, de que se preocupam apenas com as suas questões imediatas, de que raciocinam em termos de nação e de indivíduo, não de classe social, de que acreditam no que diz a televisão e a igreja para formar a sua visão de mundo, de que partilham de preconceitos e reproduzem a opressão entre suas diversas camadas, etc., também não é um problema, do ponto de vista da esquerda brasileira. A lição de que “a ideologia dominante numa determinada sociedade é a ideologia da classe dominante” também foi esquecida. Na sua santa ingenuidade (ou ignorância), essas organizações concebem os trabalhadores como se fossem por definição revolucionários, e só não sabem disso porque ainda não ouviram o partido. Vão saber quando aceitarem Jesus, digo, o partido, como seu salvador.
O que há de “trotskismo” nessa concepção é tema para um outro (e caudaloso) debate. Qualquer que seja a sua fonte, o nome que se pode dar a ela é de substituísmo, pois entende que alguma outra força social pode substituir os trabalhadores em suas tarefas. De um lado, há os que acham que é possível disputar o movimento do impeachment pela esquerda, um movimento que foi construído por partidos da oposição burguesa, pela mídia reacionária e por ONGs liberais financiadas pelo imperialismo. De outro, há os que acham possível disputar o governo do PT, ou defendê-lo, para que a partir daí os trabalhadores tomem a ofensiva. Nem uma coisa nem outra são possíveis, por mais geniais que sejam os que defendem uma ou outra posição na arte de criar palavras de ordem. Para que os trabalhadores se coloquem em cena no processo político é preciso que o façam como classe, como coletivo, de forma organizada, estruturada, a partir dos seus locais de trabalho, de estudo e de moradia. Não há como saltar essa etapa e partir direto para a ofensiva, pegando carona na rejeição ao governo (ou na defesa deste).
A etapa de reconstruir a organização da classe terá que ser cumprida, qualquer que seja o desfecho da atual crise política, a queda do governo via impeachment ou a sua permanência até o fim do mandato. Em qualquer um desses cenários, é preciso construir uma outra referência de projeto para os trabalhadores. É preciso preparar a classe para um cenário de enfrentamento direto com a patronal, sem a mediação da burocracia petista, após o seu apodrecimento e decomposição final.

17/03/2016



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