Praticamente
dois anos se passaram desde as eleições gerais de 2014
e já estamos novamente defrontados com um novo processo
eleitoral, dessa vez para os cargos municipais. Ao longo desses dois
anos, infelizmente, praticamente nenhuma lição foi
tirada pela esquerda do processo de decomposição do
projeto petista de conciliação de classes e gestão
do capitalismo. Até agora não foi feito um balanço
sério e uma reorientação estratégica, de
modo que os mesmos erros estão sendo cometidos novamente. As
mesmas táticas são adotadas outra vez para o processo
eleitoral, sem uma reflexão sobre como essas táticas
estão em contradição com os objetivos
estratégicos, e mais servem para nos afastar deles do que para
nos aproximarmos.
A queda
da URSS e a crise da alternativa socialista
O
projeto de conciliação de classe e gestão do
capitalismo já era a linha majoritária do PT na década
de 1980 e se impôs de maneira indisputada na década de
1990, a partir da queda da URSS e do Muro de Berlim. A partir daquele
momento assumiu-se o discurso do "fim da história",
"fim do socialismo", "fim do proletariado", etc.,
de modo que a convivência e "aperfeiçoamento"
do capitalismo era tudo o que restava, e todos os que pensavam
diferente foram expurgados do PT. O abandono da luta pelo socialismo
em escala global levou a derrotas materiais e ideológicas
colossais, das quais ainda não nos recuperamos: a
mundialização do capital, a abertura comercial, a
desregulamentação da circulação de
capitais, as privatizações, a reestruturação
produtiva, as terceirizações, os planos de "ajuste"
econômico, etc. Os quais foram completados com a ideologia da
"globalização", da democracia (burguesa) como
"valor universal", do individualismo, da meritocracia, etc.
A desacumulação de forças da classe trabalhadora
foi imensa e custará muito para ser revertida pelas novas
gerações que estão entrando na luta.
Para
reverter esse quadro, é preciso construir uma compreensão
correta dos acontecimentos e da situação histórica,
começando pela trajetória da luta pelo socialismo. A
URSS e demais países que seguiram o seu "modelo" não
eram socialistas, e sim formas de transição
interrompida que partiram de rupturas reais do capitalismo, mas
tiveram a transformação barrada, e retornaram ao
capitalismo. Esse processo de transição interrompida,
suas contradições e a posterior restauração
capitalista nunca foram completamente entendidos pela esquerda, de
modo que não foi possível até hoje retomar o
projeto socialista. Muitos setores da esquerda mantém a sua
filiação ao socialismo apenas como uma declaração
formal de princípios, mas sem a capacidade de identificar os
passos concretos necessários para recolocar nos trilhos a luta
pelo socialismo.
Muitas
organizações socialistas sequer reconhecem a
desacumulação de forças e a necessidade de
reconstruir as mediações organizativas da classe, desde
os locais de trabalho, os microcosmos da reprodução
social, as diversas esferas de atividade, que abrangem da relação
entre os sexos até a arte e a cultura. A maior parte ainda
raciocina como se bastasse à esquerda se divulgar para a
classe como "direção revolucionária"
para romper com o capitalismo, sem que a classe em si mesma esteja
minimamente organizada.
O erro
de acreditar na própria mentira
Do lado
petista essa preocupação com a reorganização
da classe para a ruptura do capitalismo já tinha sido
abandonada a décadas quando o partido chegou ao governo.
Sequer havia a preocupação de organizar a classe para
lutar por melhorias mínimas dentro do capitalismo, pois se
supunha que a disseminação dessas "melhorias"
viria de cima para baixo por obra e virtude de uma gestão
competente do Estado e que assim se garantiria uma base eleitoral
permanente para o PT. Mas ao contrário dos mitos do "fim
da história", o capitalismo continua sendo um sistema
inviável, eivado de contradições, gerador de
misérias, guerras, violência, devastação
ambiental, etc. A alternativa para a humanidade continua sendo
socialismo ou barbárie, por mais que a gestão petista e
outros charlatães no mundo inteiro tenham tentado vender a
ilusão de um capitalismo "bom para todos". Assim, o
capitalismo segue gerando novas crises, e a gestão petista se
mostra incapaz de contorná-las (porque não há
mesmo como contorná-las, e o capitalismo não deve ser
gerido, mas destruído).
A
inevitável demissão dos gestores petistas pelos seus
patrões na Fiesp, Fenaban, CNA, etc. em algum momento iria
chegar, e quando chegou, encontrou os trabalhadores desorganizados
para a luta (situação que os dirigentes vindos do PT e
de seus satélites nos movimentos sociais como CUT, UNE, MST
cultivaram por décadas). E encontra também setores das
camadas médias da população envenenadas pela
pregação onipresente da mídia, igrejas, partidos
da direita tradicional, de que sindicatos e movimentos sociais são
coisas de “vagabundos” e "vitimistas" (negros,
mulheres, LGBTs) que querem viver às custas de esmolas,
prontamente dispensadas pelos demagogos e corruptos do PT. Tal foi o
resultado do projeto petista de conciliação de classes
e gestão do capitalismo: a desorganização da
nossa classe, a desmoralização dos organismos e métodos
de luta e a hegemonia de concepções reacionárias
nas camadas médias da população e em boa parte
dos trabalhadores (doutrinados por televangelistas e apresentadores
de TV).
O PT
cumprindo o seu papel
O
impeachment veio, apesar das bravatas do PT. A luta contra o "golpe"
reuniu um outro setor das camadas médias da população
preocupado com a ofensiva reacionária e setores minoritários
dos trabalhadores. Essa "luta" foi travada por meio de atos
de rua (nos fins de semana e fora do horário comercial) e
memes nas redes sociais. A massa dos trabalhadores não se
colocou em luta, pois se encontra desorganizada, despolitizada,
alienada e prostrada pelos ataques vividos sob a gestão do PT.
Sem estar acostumado ao dia a dia da luta de classes, ninguém
no improvisado movimento contra o "golpe" considera
estranho que a CUT, maior central sindical país, com mais de
3.000 entidades filiadas e 23 milhões de trabalhadores
representados, seja incapaz de convocar uma greve geral, nem mesmo
para enfrentar um suposto "golpe" de Estado.
Não
é apenas que a CUT não queira, ela não seria
capaz. Não seria capaz porque durante décadas a central
se acostumou a um sindicalismo "cidadão", de
colaboração de classe, sem combatividade para enfrentar
os ataques, e deseducou os trabalhadores que era sua função
organizar. E a CUT não quer, porque o objetivo do PT não
é enfrentar um "golpe" de Estado, é se
colocar como alternativa eleitoral "de esquerda" para os
setores democráticos nas camadas médias da população
e assim voltar a ocupar espaços na gestão do Estado. O
Brasil entra assim, com algumas décadas de atraso, no circuito
dos países em que “esquerda” e direita se alternam no
governo, como as únicas alternativas disponíveis, sendo
que na prática aplicam o mesmo programa de governo de
“austeridade” contra os trabalhadores e prodigalidade para o
capital.
Na
sequência da luta contra o "golpe" veio o movimento
pelo "Fora Temer", com a mesma base social de setores
democráticos das camadas médias, universitários,
intelectuais, celebridades e setores minoritários de
trabalhadores. Na ausência da luta de classes real, ou seja,
uma greve geral, com paralização da produção
e circulação de mercadorias, enfrentamento direto aos
interesses vitais do capital, o "Fora Temer" se limita a
constituir base eleitoral para a volta do PT à gestão
do Estado (coligado em mais de 1.400 municípios com os mesmos
"golpistas" do PMDB, PSDB, DEM, etc. que o derrubaram...).
A
esquerda sem rumo
Diante
dessa situação de desorganização dos
trabalhadores, desmoralização dos seus organismos e
métodos de luta e hegemonia de concepções
reacionárias nas camadas médias da população
e em parte dos trabalhadores, alguns setores da esquerda, como PSOL,
PCB e PCO aderiram ao "Fora Temer", capitulando mais ou
menos abertamente a esse operativo do PT de voltar à gestão
do Estado. A única força representativa dentro da
esquerda brasileira que não capitulou ao PT foi o PSTU, mas
por conta de um erro simétrico e talvez até mais grave
do que os demais. Mais além do que o restante da esquerda, o
PSTU vai tão longe na desconsideração da
necessidade de organização independente da classe que
muito antes do "Fora Temer" já estava defendendo o
"Fora Todos", inclusive no mesmo momento em que setores da
burguesia que impulsionaram a ofensiva reacionária estavam
defendendo o "Fora Dilma". Ou seja, o PSTU não
capitulou ao PT, mas na prática capitulou à oposição
burguesa. Tal é o seu grau de menosprezo para com a
organização e consciência da classe.
O fato
de que a classe trabalhadora esteja desorganizada e seja incapaz de
derrubar Temer ou qualquer governante é desconsiderado por
esses setores da esquerda. Pois para eles não é
necessária organização da classe para fazer
nada, basta a "direção revolucionária"
apresentar o caminho. Ao invés de partir da luta de classes
real, do enfrentamento entre capital e trabalho, da luta contra o
desemprego, a inflação, a perda de direitos, a
degradação dos serviços públicos, etc.,
esses setores partem do Estado e da superestrutura política.
Com isso, dizem aos trabalhadores que não é preciso se
organizar para enfrentar os problemas (desemprego, inflação,
perda de direitos, etc.) por meio de greves, ocupações,
bloqueio de ruas, passeatas, etc., basta remover um governante para
resolver os problemas.
Na
pressa de apresentar uma alternativa para a crise, saltam direto para
o poder político e seu símbolo máximo, a
presidência ("Fora Temer"), como se essa palavra de
ordem "radical" fosse um atestado de combatividade contra o
sistema. Sendo que na raiz dos problemas, no solo concreto da
reprodução social, nos locais de trabalho, nos bairros,
nos espaços moleculares da vida social, nas relações
humanas, não houve nenhuma mudança na postura dos
trabalhadores, no seu grau de organização e ação
coletiva. Sem essa mudança fundamental, a realização
do "Fora Temer" seria seguida de eleições
gerais, que significariam apenas a legitimação de um
novo gestor do Estado do capital. Coisa que a própria
burguesia pode providenciar caso Temer não dê sequência
ao que Dilma começou. A oposição à Temer
e a todos os gestores do Estado a serviço do capital tem que
ser feita a partir das lutas concretas, em que a classe se coloca
como sujeito, não a partir do Estado, em que a burguesia detém
as rédeas.
A
reedição das ilusões reformistas
Considerando
que a luta pelo socialismo não está colocada para o
momento imediato, setores da esquerda defendem que a única
luta possível hoje é a defesa de melhorias no interior
do capitalismo. Por isso, é justificável ocupar espaços
de poder no Estado, mandatos eletivos no legislativo ou mesmo
executivo, para "acumular forças" até a
ruptura do capitalismo. Mas a questão não é se a
luta pelo socialismo está colocada para hoje ou não
(não está), e sim se a luta que praticamos hoje
conduzirá algum dia e de que forma a uma ruptura do
capitalismo. A ocupação de mandatos eletivos no
interior do Estado burguês descolada de um processo de
organização a partir da base da classe trabalhadora nos
aproxima ou afasta desse objetivo? O desvio da força militante
para a conquista de mandatos eletivos reforça a crença
na organização para a luta ou no Estado burguês?
A participação nas eleições está
sendo feita a serviço da luta de classes ou a luta de classes
está sendo colocada a serviço da obtenção
de mandatos eletivos?
Nossa
posição é de que a segunda alternativa é
verdadeira para as três perguntas. A esquerda insiste em
privilegiar a superestrutura do Estado ("Fora Temer"
combinado com "vote em mim") ao invés de privilegiar
a organização de base para a luta. Dizem que uma
campanha eleitoral revolucionária pode servir para educar os
trabalhadores. Concordamos que isso é hipoteticamente
possível, desde que se cumpram os requisitos de fazer a
crítica ao Estado burguês (e não se propor
gerí-lo), estabelecer uma delimitação de classe
(não fazer alianças com partidos burgueses nem receber
dinheiro da patronal), propagandear as lutas e desenvolver a unidade
da classe. Vejamos como a esquerda se sai em relação a
esses requisitos.
Dentre
os partidos de esquerda legalizados, o PSOL é aquele que tem
mais representatividade eleitoral, com alguns mandatos parlamentares
federais e estaduais. Deve crescer nesta eleição e
talvez até conquistar alguma prefeitura. Isso porque o projeto
do partido é ocupar espaços no Estado para gerir o
capitalismo, com a pretensão de fazê-lo de maneira mais
“humana” (o que é na verdade impossível) e
supostamente dessa forma encaminhar uma transformação
ao socialismo. Com isso, pode dialogar com setores críticos do
eleitorado petista. Na prática, trata-se de uma tentativa de
reciclar o projeto pestita da década de 1990, com a pretensão
de fazê-lo corretamente dessa vez. Dessa forma, a campanha do
PSOL não fala em ruptura do capitalismo e denúncia do
Estado e da democracia burguesa, mas apresenta diretamente os seus
candidatos como melhores gestores para o Estado.
Em
eleições passadas o PSOL já aceitou
contribuições de empresas para a campanha. Este ano,
chegaram a ser montadas coligações em 101 municípios
envolvendo partidos como PSDB, DEM, PMDB, PR, PRB, PTB, PSD, PPS,
PSC, SD e PP, as quais a direção do partido precisou
intervir para que fossem desfeitas, conforme nota do próprio
partido. Mas em Porto Alegre, o PSOL está coligado com o PPL,
racha do PMDB. Em São Paulo, lançou como candidata
Luíza Erundina, figura postiça, sem história no
partido, que já foi gestora da prefeitura pelo PT e reprimiu a
greve da CMTC, já foi ministra do governo FHC, etc. O
histórico, o programa, as campanhas e candidaturas colocam o
PSOL como um partido policlassista, sem independência de
classe. Além dos seus parlamentares e figuras públicas,
abriga algumas correntes no seu interior que possuem inserção
militante na luta de classes real e defendem o socialismo, mas
participam do partido apenas para captar militantes entre os
simpatizantes e se construir. Não possuem influência nos
rumos do partido, e na prática não o disputam,
permanecendo no seu interior por questões meramente
oportunistas de visibilidade.
Votar em
protesto?
Em
relação às demais organizações,
PSTU, PCB e PCO, estão mais preocupadas em se construir do que
em usar suas candidaturas como instrumento de luta. Para começar,
essas organizações (e também as correntes
combativas no interior do PSOL) não são capazes de
construir instâncias unitárias para unificar os
enfrentamentos da luta de classes real, as greves e processos de
luta, em que a classe carece de uma referência de organização.
Ao não existir essa referência, não existe um
fórum do movimento em que se possa discutir a intervenção
nas eleições. Não havendo subordinação
da intervenção eleitoral ao processo de luta, os
programas e as candidaturas são decididas unilateralmente e em
separado pelas direções partidárias, conforme as
suas conveniências de projeção das lideranças.
Uma intervenção desse tipo não serve para educar
os trabalhadores para a necessidade de lutar.
Se no
dia a dia da luta de classes as organizações da
esquerda não estão unificadas e contribuindo para a
construção de uma alternativa dos trabalhadores, é
evidente que não o farão nas eleições.
Esperar que haja uma candidatura melhor que as outras e que possa
cumprir esse papel é inverter a ordem das coisas, ver a
intervenção política de cabeça para
baixo. O critério para tomada de decisão tem que ser
sempre a organização da classe
Se a
justificativa da participação dos socialistas
revolucionários nas eleições é apresentar
um contraponto às candidaturas da burguesia, fazer a denúncia
do Estado e da democracia burguesa, apresentar um programa de luta
contra o capitalismo e colaborar para o avanço da consciência
e organização da classe, as candidaturas da esquerda
nessas eleições não cumprem esses requisitos, e
a participação delas não se justifica, mais
atrapalha do que ajuda. A trajetória do PT, desde o surgimento
na luta de classes até a derrocada na gestão do Estado,
não deixou nenhuma lição, pois mais uma vez a
esquerda desloca sua atividade para a superestrutura do Estado. Ao
invés de deixar um legado de avanço na organização
e consciência da classe, deixa uma mensagem subliminar de
reforço na crença no Estado e na democracia burguesa
como instâncias de resolução dos problemas, em
detrimento da luta. A mesma crença que precisamos destruir.
As
candidaturas do PSOL, PSTU, PCB e PCO, tais como apresentadas nas
eleições municipais de 2016, não cumprem os
requisitos mínimos de uma intervenção
construtiva nas eleições de um ponto de vista
socialista. Logo, chamar o voto em qualquer um desses partidos só
serve para reforçar a crença dos trabalhadores nas
eleições e no Estado. O que representa o oposto daquilo
que precisamos desenvolver, o protagonismo da classe a partir da sua
organização independente para a luta. Na esteira desse
mesmo tipo de participação no processo eleitoral que
sucumbe à lógica da democracia burguesa (é
preciso necessariamente votar em alguém), uma organização
atuante em São Paulo que se notabiliza pelo marketing criativo
está fazendo campanha para as candidaturas da esquerda dizendo
“vote em protesto”. Mas nem só de marketing vive a
esquerda e sim de organização real. Nas eleições,
faça qualquer coisa menos votar. Ou, em protesto, não
vote.
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