Apresentação
No mundo em que vivemos o estudo da História está interditado por uma proibição de tipo absoluto. Uma vez que a ideologia dominante decretou o “Fim da História”, tanto o futuro quanto o passado tornaram-se opacos, inacessíveis, incompreensíveis. E simultaneamente, o presente está eternizado. Se “a História acabou”, todo o passado não serviu senão para nos trazer ao mundo tal qual ele é hoje no presente. E se o mundo já é hoje “exatamente como deveria ser”, todo o futuro não será mais do que uma repetição “ad eternum” desse mesmo mundo presente. De modo que, para recusar o mundo atual, e lutar por sua transformação, é preciso romper com essa lógica que nos condena a um tempo presente eternizado. É preciso resgatar o tempo histórico, restituindo-lhe as dimensões concretas do passado, do presente e do futuro.
Desenvolver uma narrativa histórica concreta, que respeite a especificidade do tempo histórico em suas três dimensões, pressupõe uma síntese totalizadora que articule o passado ao presente e ao futuro, o que exige o emprego da racionalidade dialética. O estudo do passado abre as portas para a crítica do presente e a transformação do futuro. O passado guarda a memória da luta de classes, das experiências em que a humanidade lutou contra a condição desumana do trabalho alienado e a divisão social do trabalho. A ideologia dominante, naturalmente, precisa varrer essas experiências de luta para debaixo do tapete, fazendo com que sejam esquecidas e mistificadas, de modo que não se pense jamais em repetí-las. Para aqueles que lutam pela transformação do presente, ao contrário, o passado da luta de classes é um rico tesouro repleto de ensinamentos sobre os acertos a serem repetidos e os erros a serem contornados.
Há exatamente 90 anos a humanidade viveu uma dessas experiências de transformação social radical, cujas vicissitudes, apesar de tudo o que diz a ideologia dominante, ainda marcam o nosso presente. A Revolução Russa de outubro de 1917 inaugurou uma época histórica caracterizada pela luta para destruir o capitalismo, a última das sociedades de classe, e construir o socialismo. A tentativa de transição ao socialismo aberta pela Revolução Russa dominou todo o século XX. O melancólico final dessa experiência nos anos de 1989-91 foi justamente o que serviu de pretexto para que a ideologia burguesa decretasse o “Fim da História”. Seu alvo explícito era declarar o fim do socialismo e a perenidade do capitalismo, em conformidade com os ditames eternos da “natureza humana”.
O início do século XXI mostrou porém que a roda da História continua girando, que o capitalismo não se livrou de suas crises, que suas catástrofes sociais e ambientais continuam ameaçando a própria sobrevivência da humanidade e que a sua substituição por uma ordem socialista é uma questão da mais dramática urgência. É mais do que oportuno portanto aproveitar os 90 anos da Revolução Russa para aprender sobre os percalços da transformação social a partir da mais importante experiência realizada até hoje na tentativa de uma transição ao socialismo.
A Revolução e a formação da URSS
De saída, o primeiro ensinamento a ser tirado desse estudo diz respeito à relação entre o projeto dos revolucionários de 1917 e a entidade que veio a se constituir de fato como resultado da luta revolucionária: a URSS. A União Soviética foi durante todo o século XX o “modelo” de socialismo em relação ao qual todos os socialistas tiveram que se posicionar, com maior ou menor margem de distanciamento crítico, sendo que na verdade os revolucionários que a construíram não tinham como projeto servir de modelo para ninguém. Os revolucionários russos, ou seja, o partido bolchevique, eram uma das alas da esquerda socialista internacional, cuja luta objetivava a realização da revolução socialista nos países mais avançados, como Alemanha, França e Inglaterra. A partir das condições econômicas, técnicas e culturais superiores desses países, o socialismo teria condições de se construir como alternativa sociometabólica em escala mundial.
Os revolucionários do início do século XX pensavam o socialismo como um projeto internacionalista e mundial, a ser impulsionado pelos países mais avançados. Jamais a partir da devastada e atrasada Rússia. E no entanto, foi justamente na Rússia que a revolução foi vitoriosa. Esse fato determinou as características da luta pelo socialismo durante todo o século. O retrocesso da revolução européia provocou o isolamento da Rússia revolucionária. E o isolamento da Rússia trouxe a necessidade de defendê-la ideologicamente como cabeça-de ponte avançada da revolução proletária, contra a maciça propaganda difamatória da burguesia.
A necessidade de defender a Revolução Russa acabou trazendo de contrabando a defesa de certas características do regime pós-revolucionário derivadas justamente do atraso russo. O vício foi transformado em virtude, especialmente depois da ascensão da camada burocrática contra-revolucionária stalinista.
Quais eram essas características do atraso russo? A mais importante era o fato de que o proletariado russo era minoritário em relação à população camponesa. Essa minoria proletária teve forças suficientes para produzir uma vanguarda revolucionária capaz de tomar o poder. Entretanto, nas gravíssimas circunstâncias da guerra civil que se seguiu à tomada do poder, essa vanguarda foi dizimada. Restou então ao partido bolchevique a paradoxal tarefa de liderar a transição a uma ordem social mais avançada a partir de um elemento social atrasado, ou seja, a partir do campesinato e de um novo proletariado industrial, inexperiente, que seria recrutado sobre a base desse campesinato.
Ao longo dos anos 1920, para fazer frente a esse atraso, para reconstruir o país, para fazer com que as pessoas trabalhassem, com que a economia fosse capaz de alimentar a população e produzir os bens indispensáveis à sobrevivência, o partido bolchevique se viu forçado a administrar a sociedade com os instrumentos da guerra civil revolucionária. Consolidaram-se a ditadura do partido único, a polícia política (Tcheka / GPU / NKVD / KGB) e a censura. Essas características excepcionais da experiência russa foram convertidas em características por excelência do movimento socialista internacional, a partir da formação dos novos Partidos Comunistas (PCs), que não eram somente inspirados pela Revolução Russa, mas diretamente dirigidos pela III Internacional liderada pelos bolcheviques.
Características da época imperialista
Estabelecemos até aqui que o socialismo é um projeto internacional e que só pode ser viabilizado a partir da transformação dos países mais avançados; que a vitória solitária da revolução na Rússia foi uma espécie de “acidente” no contexto da luta socialista; que não havia condições (sociais, econômicas, culturais, tecnológicas, etc.) para que a Rússia liderasse uma transição ao socialismo; e que as características que definiriam o regime pós-revolucionário na Rússia (partido único, polícia política, censura) eram muito mais um resultado de contingências do atraso russo do que decorrências essenciais do projeto socialista russo e internacional.
Sendo assim, a tomada do poder pelos bolcheviques, mais do que um simples “acidente”, não terá sido na verdade um erro monumental? Se não havia condições de iniciar a construção do socialismo a partir da Rússia, por que os revolucionários tomaram o poder no império dos czares? Se os bolcheviques não contavam com o apoio da maioria da população (camponesa), mas tão somente com o dos operários (que acabaram dizimados na guerra civil), a revolução por eles liderada não terá sido uma aventura inconseqüente? O que a distingue de um simples golpe de Estado? A resposta a essas questões é provavelmente o que diferencia definitivamente a visão de mundo dos marxistas revolucionários da visão burguesa (ou mesmo reformista) que domina o senso comum.
Os marxistas revolucionários, como Lenin e os bolcheviques, sabiam que a Rússia era atrasada e não seria a base para a transição ao socialismo. Seria tão somente o ponto de partida. Os mencheviques e todo um amplo leque de reformistas defendiam para a Rússia o programa de uma “revolução por etapas”, que primeiro desenvolvesse o capitalismo, e com ele o Estado burguês moderno, ou seja, a república parlamentar com suas instituições de democracia formal, para somente depois realizar a transformação socialista. Essa concepção parte de um completo desconhecimento sobre a natureza do capitalismo na época imperialista.
O imperialismo representa a união entre o capital monopolista (fusão do capital financeiro com o industrial) e o Estado na disputa por mercados. Nesse contexto, desaparece definitivamente a ficção da “livre concorrência” do capitalismo liberal típico do século XIX (a pretensão dos neoliberais de ressuscitar o “livre mercado” na era da “globalização” em pleno século XXI, com suas mega-corporações globais monopolistas e seus políticos-gângsteres e mercenários do complexo industrial-militar, só pode ser uma piada de péssimo gosto). O Estado passa a ser o executor direto das políticas de interesse das grandes corporações, disputando mercados pela força das armas. Essa é a causa das duas guerras mundiais (e da “guerra ao terror” de hoje).
Na disputa feroz entre as seções nacionais do capital imperialista, desaparece qualquer possibilidade da parte dos países periféricos de experimentar um desenvolvimento capitalista independente. Desde o início do século XX, a idéia de uma “revolução burguesa” nos países periféricos já estava condenada. A burguesia russa era sócia menor e subordinada do capital imperialista inglês e francês. Exatamente por isso, entrou na I Guerra ao lado dos países da Entente. E em obediência aos seus patrões, recusou-se a sair da guerra, agravando o sofrimento das massas russas. Por sua vinculação orgânica com o imperialismo, a burguesia nacional russa jamais seria capaz de conceder as reivindicações populares que desencadearam a revolução: “paz, pão e terra”.
O que era válido para a burguesia russa do início do século XX era válido para o conjunto dos países periféricos. As burguesias locais e oligarquias rurais eram em todos os casos demasiado débeis para liderar qualquer desenvolvimento nacional independente e ao mesmo tempo sempre predispostas a esmagar as reivindicações populares em obediência a seus amos imperialistas. Desse modo, a estratégia dos PCs liderados pelo stalinismo depois da II Guerra somente poderia resultar em desastre. Os PCs stalinistas reciclaram para consumo externo a fracassada estratégia menchevique da “revolução por etapas”, apoiando os “setores avançados” da burguesia nacional nos países periféricos e renunciando à tarefa fundamental de construir organizações políticas independentes e revolucionárias das classes exploradas e de desenvolver a consciência socialista.
Se no contexto das lutas políticas nacionais particulares era talvez correto desenvolver alianças táticas temporárias num ou noutro momento com setores de classe pequeno-burgueses ou mesmo burgueses, isso jamais poderia resultar, como aconteceu na maior parte dos casos, em renúncia à estratégia da revolução socialista liderada pela classe trabalhadora. A renúncia à construção de partidos revolucionários dos trabalhadores e à criação de uma consciência socialista de massa levou a que os movimentos populares dos países periféricos, tão logo se aproximavam do limiar revolucionário, fossem invariavelmente afogados em sangue pela ala reacionária da burguesia nacional e pelo imperialismo.
A Rússia escapou a esse destino por ter tido a vanguarda operária e o partido bolchevique forjados na experiência de 1905. Se a Rússia era atrasada e incapaz de construir o socialismo, o restante da periferia também o era. Mas a quebra dos “elos frágeis” da cadeia do capital, rompendo os circuitos de acumulação da economia-mundo capitalista, interrompendo o fornecimento de matérias-primas e a demanda de manufaturas, minando o controle do capital monopolista, faria com que o capitalismo entrasse em colapso nos países imperialistas centrais e abrisse as portas para a revolução nos países avançados.
É por isso que a revolução liderada pelos bolcheviques não foi um golpe de Estado vulgar. A revolução na Rússia era vista pelos revolucionários russos como uma etapa da revolução mundial. É por isso que o Outubro russo não foi um “acidente” nem um desvio e sim uma exceção, já que foi o único momento em que a estratégia da revolução mundial foi bem sucedida. Foi a única vitória de um amplo movimento que no seu conjunto acabou derrotado. Por ter sido a única revolução bem sucedida, a Revolução Russa acabou arcando com o ônus dos fracassos alheios, ou seja, passou a carregar sozinha o fardo e a responsabilidade da construção do socialismo num contexto de retrocesso da revolução socialista européia e mundial.
É importante ainda lembrar que a idéia de uma revolução européia como fonte de uma transformação socialista mundial não era um delírio messiânico dos bolcheviques, mas uma possibilidade concreta ao alcance das mãos dos socialistas europeus. Na Finlândia houve uma revolta operária em 1918 (que sofreu uma das repressões mais sangrentas da história), na Inglaterra houve grandes greves em 1919, na França houve motins de marinheiros também em 1919, na Alemanha houve a revolta spartaquista em 1919 e o levante de 1923, na Hungria a “república dos conselhos” operários em 1920, na Itália o movimento das fábricas ocupadas também em 1920. A efervescência vermelha estava por toda parte e não apenas na Rússia. Tomar o poder e trabalhar pela revolução européia não era uma utopia, mas era a única estratégia racional disponível naquelas circunstâncias.
A Guerra Civil
Se a tomada do poder se justifica em função de uma estratégia mundial, os defensores empedernidos da visão de mundo burguesa e reformista ainda podem esgrimir o argumento da democracia formal. Ou seja, os bolcheviques não poderiam jamais apelar para métodos ditatoriais na condução da revolução, pois “por melhores que fossem suas intenções”, o mecanismo ditatorial abriria as portas para a ascensão de aventureiros e oportunistas do tipo de Stalin, como acabou acontecendo. Esse argumento “democrático” na verdade esconde um grosseiro desconhecimento de como a História se desenrola concretamente, quando não uma cínica mistificação.
Se os bolcheviques chegaram à condição de tomar o poder em outubro de 1917, é porque tinham a maioria nos soviets surgidos em fevereiro daquele ano. Os soviets eram conselhos de delegados operários, soldados e camponeses, eleitos por local de trabalho, por fábrica, por bairro, por pelotão, por aldeia, etc. e com mandatos revogáveis e controlados pela base. Eram instituições avançadas da democracia direta. Se os bolcheviques tinham a maioria nos soviets, é por que sua política representava as aspirações da esmagadora maioria da população, que queria o fim da guerra, o fim das privações e a distribuição da terra. Se os bolcheviques não organizassem a tomada do poder para atender a essas reivindicações, seriam varridos por uma incontrolável avalanche popular, juntamente com os outros grupos políticos que vacilavam. Era sua responsabilidade tomar o poder para organizar um governo popular e evitar que a queda inevitável do regime capitalista russo em colapso não resultasse na decomposição do país em completo caos e anarquia e ainda maior sofrimento.
Os bolcheviques atenderam às reivindicações da maioria camponesa (distribuição da terra) e dos operários que constituíam sua base social mais direta. Concederam liberdade política aos partidos de oposição e liberdade de imprensa até mesmo para a burguesia. Agiram portanto com a máxima democracia possível. Se o regime veio a se tornar ditatorial logo depois, não foi por ter sido essa a escolha inicial dos bolcheviques, mas por imposições práticas posteriores decorrentes da necessidade de defender as conquistas da revolução. Somente quem não tem o menor conhecimento da História concreta, ou seja, da luta de classes, poderia supor que a burguesia iria observar calmamente a organização de um governo de transição socialista debaixo de seu nariz e não iria reagir. Desde o início a burguesia russa, a pequena-burguesia, setores da intelectualidade e “socialistas” reformistas se colocaram contra o governo que os bolcheviques tentavam organizar.
Não apenas se declararam contrários a esse governo, mas lutaram contra ele de todas as formas. Organizaram atentados terroristas que feriram Lenin e mataram dirigentes bolcheviques, sabotaram a economia, fecharam fábricas, esconderam matérias-primas e víveres, especularam com os preços, saqueraram os camponeses, jogaram a população do campo contra as cidades, etc. A partir de meados de 1918, essa oposição contra-revolucionária aliou-se aos antigos generais monarquistas para travar uma guerra civil sanguinária que durou até o fim de 1920 e custou a vida de dezenas de milhões de pessoas, seja pelas armas, seja pelas privações que causou.
Além disso, a burguesia internacional não deu tréguas ao governo dos soviets. A narrativa histórica convencional diz que a I Guerra Mundial durou de 1914 a 1918. Mas esquece de mencionar que ao longo da guerra civil revolucionária (1918-1920) os exércitos de praticamente todos os países beligerantes invadiram a Rússia para derrubar o governo soviético, perpetrando também toda sorte de atrocidades. Na verdade, a Guerra Mundial foi encerrada apressadamente pelo temor dos Estados-maiores de que o exemplo russo fosse seguido e que, das deserções que já começavam a se massificar, os soldados e operários passassem à formação de soviets e conselhos revolucionários e à destruição da ordem burguesa na Europa. Se no pós-Segunda Guerra tivemos a “Guerra Fria”, o pós-Primeira Guerra já havia trazido o “cordão sanitário”, a tentativa de truncar pela força das armas a experiência socialista russa então no nascedouro.
Esses “espíritos democráticos” que fazem questão de permanecer absolutamente ignorantes da História concreta raciocinam como se a disputa de alternativas sociais entre capitalismo e socialismo fosse um debate de tipo acadêmico no qual ambas as partes conservam um saudável distanciamento e com cavalheiresco espírito esportivo concedem um ao outro a chance de demonstrar seus méritos, cada qual no seu terreno de escolha, agindo na mais completa paz, com toda liberdade de movimentos e em total igualdade de condições. Ao contrário dessa ficção piedosa, tão ao gosto dos intelectuais de gabinete e dos jornalistas sabichões, a disputa se deu concretamente como uma luta de vida ou morte em que os socialistas não tiveram sequer um segundo de descanso e tiveram que testar a viabilidade de seus métodos improvisados nas condições mais desvantajosas possíveis.
É muito comum os “espíritos democráticos” censurarem os bolcheviques por terem instaurado o terror vermelho, a pena de morte e a perseguição aos opositores. A mesma estridência com que se aplicam nessa denúncia se converte em estrepitoso silêncio quando se trata de expor a existência do terror branco, que começou primeiro, causou muito mais mortes e que na verdade foi o que obrigou o governo revolucionário a organizar sua legítima defesa.
Democracia e ditadura
Quando se fala em erros que os bolcheviques cometeram nesse período (a guerra civil revolucionária de 1918-1920), é necessário precisar em relação a que critérios as suas escolhas podem ser consideradas erradas. É muito comum lembrar a revolta dos marinheiros da base naval de Kronstadt (março de 1921), vizinha a São Petersburgo, como um exemplo clássico de erro. Os marinheiros daquela base entraram em greve exigindo o fim da ditadura e depois de negociações mal-sucedidas, acabaram sendo massacrados. Os anarquistas em particular se especializaram em fazer de Kronstadt a “prova definitiva” da má fé dos bolcheviques e da inviabilidade do socialismo, fazendo coro nesse ponto com os “espíritos democráticos” burgueses.
É muito fácil, a posteriori, censurar o governo dos bolcheviques por ter ordenado o massacre de Kronstadt. Com a mesma facilidade com que se faz essa condenação, se omite que o governo revolucionário havia acabado de passar por uma guerra civil mortal, em que a sua sobrevivência esteve diversas vezes por um fio. Vivia-se um cenário em que não se podia ter certeza de que o perigo havia passado, pois havia ameaças internas e externas de todos os lados, e o menor sinal de fraqueza poderia ser o estopim para uma nova guerra. Não se tratava da paranóia arbitrária de um bando de ditadores, mas da vivência traumática de quem havia se acostumado a enfrentar cotidianamente o terrorismo, a sabotagem, a sedição, a insurreição e a guerra implacável em suas variedades clandestina e aberta por mais de três anos.
Para discutir o mérito dessa escolha, é preciso se colocar na mesma posição daqueles que se viram diante dela. Não é essa a posição em que se colocam a maioria dos críticos. De um ponto de vista socialista, o massacre de Kronstadt pode ser considerado um erro, assim como o banimento da oposição política (ainda havia uma minoria de mencheviques, socialistas-revolucionários de esquerda e anarquistas que apoiavam a revolução), a partir de 1921. Do mesmo modo, foi um erro a proibição da formação de tendências e frações no interior do partido bolchevique, como a Oposição Operária, e a censura às posições divergentes nas publicações do partido. Essas medidas ditatoriais foram todas tomadas em caráter provisório, em face das circunstâncias calamitosas em que estava o país após os quatro anos da Guerra Mundial e os três da guerra revolucionária.
Nunca é demais lembrar que os operários, soldados e camponeses haviam feito a revolução, sob a liderança dos bolcheviques, com o objetivo de trabalhar menos. Agora, com a população das cidades reduzida à menos da metade, a produção industrial reduzida à cerca de 15% do que era antes da guerra, a fome, o frio e as doenças matando milhões de pessoas, o comércio exterior e toda forma de intercâmbio praticamente interrompido, a barbárie corroendo a sociedade como um câncer (corrupção, banditismo, estupros, canibalismo), um estado geral de exaustão, desmoralização, venalidade, individualismo e cinismo; o partido bolchevique era obrigado a pedir ao povo que trabalhasse mais do que antes. Nessas condições, não há governo no mundo capaz de manter sua popularidade. As reivindicações de mais democracia, melhores salários, etc., por mais que parecessem formalmente justas, eram materialmente inatingíveis. Os grupos que apresentavam essas reivindicações em tais circunstâncias excepcionais agiam como demagogos irresponsáveis e inconseqüentes.
Nesse momento, ceder parte do poder aos outros partidos de esquerda poderia significar a volta das turbulências da guerra civil. Era esse o risco que os bolcheviques queriam evitar. Ao contrário da revolução permanente defendida por Trotsky, a Rússia vivia um estado de “rebelião permanente”. Depois que o governo do Czar havia sido derrubado em fevereiro de 1917 e o governo provisório burguês em outubro daquele ano, muitos raciocinavam como se o governo bolchevique também pudesse ser derrubado a qualquer momento. Durante a guerra civil formaram-se vários outros governos provisórios em outras regiões da Rússia, liderados por generais monarquistas, os quais desencadearam o terror branco e obrigaram os bolcheviques por sua vez a militarizar o regime. Qualquer bando de aventureiros de armas em punho se achava no direito de fundar seu governo, e tentava de fato fazê-lo, perpetuando um estado de anarquia que só podia ser debelado pela força.
Condições sociais da ascensão do stalinismo
Os bolcheviques acabaram adotando portanto meios de luta (ditadura e terror de Estado) aparentemente contrários aos fins da transformação socialista. Antes de censurá-los por isso, é preciso perguntar: havia outra escolha? A guerra contra-revolucionária desencadeada pela burguesia, pelos monarquistas e pelo imperialismo não lhes deixou nenhuma. Os bolcheviques estavam cientes da contradição entre meios e fins e estavam prontos para abandonar os métodos emergenciais adotados durante a guerra civil tão logo o conflito amainasse. Por que não o fizeram? Porque as novas condições sociais da Rússia pós-guerra civil não lhes permitiram fazer isso. Fez-se sentir o peso das condições materiais, ou seja, a impossibilidade conceitual de um país atrasado tornar-se socialista manifestou-se de forma concreta.
No início dos anos 20 a Rússia estava devastada e faminta. Não havia comércio interno e externo. Havia escassez de alimentos e produtos essenciais. As pessoas morriam de fome, frio e doenças. A tarefa fundamental dos governantes nesse momento era manter o país funcionando. A economia estava desorganizada. Parte do pessoal técnico (engenheiros, gerentes, etc.) se opôs à Revolução e partilhou do mesmo destino da burguesia, ou seja, teve que exilar-se ou desaparecer no terror vermelho. A parte restante do pessoal técnico e letrado aderiu oportunisticamente ao partido bolchevique e serviu como matéria-prima para a reconstrução do Estado. Essa nova camada social havia se tornado indispensável para fazer com que as fábricas, as ferrovias, as comunicações, etc., ou seja, a infra-estrutura econômica funcionasse. Mas para isso, exigiu privilégios materiais, salários mais altos e itens de conforto dos quais os operários comuns não desfrutavam.
A classe operária dos anos 1920, por sua vez, não era a mesma que havia feito a revolução em 1917 (dos quais uma boa parte havia sido formada já na revolução de 1905). Essa nova classe operária, recém-recrutada no campesinato, não tinha a experiência e a formação necessária para se opor politicamente à ascensão da nova camada de técnicos e burocratas. As comissões de fábrica, sindicatos e soviets perderam efetividade, já que na prática a burocracia era o único setor que tinha condições técnicas de tomar as decisões econômicas. Reproduziu-se a separação entre economia e política, entre prática e teoria, entre trabalho braçal e trabalho intelectual, típica da sociedade de classes e do capitalismo.
Depois da Revolução e das duras provações da guerra civil, no momento decisivo da construção do regime socialista, esteve ausente o único elemento social que poderia realizar tal construção, ou seja, um proletariado dotado de consciência de classe. A camada mais consciente do proletariado russo, como vimos, pereceu na guerra civil. A classe operária que se formou após a Revolução vinha diretamente do campo e trazia consigo o peso brutal do analfabetismo e do atraso cultural geral. Os bolcheviques, que representavam o setor mais avançado da classe operária, viram-se subitamente privados de sua base social. O peso econômico decisivo da camada administrativo/burocrática submeteu o partido dirigente a seus interesses materiais, sacramentando os privilégios e a separação social entre burocracia e demais trabalhadores.
Dentro bolchevismo, a Oposição Operária e depois a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky se opuseram à política pró-burocracia do partido. Mas essa oposição acabou privada de uma base social que pudesse sustentar sua luta política. Após o afastamento de Lenin por doença em 1922 e sua morte em 1924, a liderança do partido coube justamente à ala que representava os interesses da burocracia, ou seja, Stalin. Na formação do stalinismo como tendência política não entra apenas o elemento pessoal de traição ou o caráter malévolo de um indivíduo, mas um conjunto de fatores sociais. A Revolução Russa avançou socialmente até onde ainda existia fisicamente uma classe operária consciente a lhe dar impulso. Depois disso, na ausência daquele elemento social, desarticulado, coube à burocracia recolher suas conquistas.
A adoção da tese do “socialismo num só país” no congresso do partido em 1925 significava o abandono da estratégia da revolução mundial em função da qual a própria Revolução Russa se justificava. Dizer que o socialismo era possível num só país significava dizer que este país, a Rússia, estava maduro para o socialismo, o que não era verdade, pois ignorava o fato fundamental de que a classe trabalhadora estava alijada dos dispositivos de controle econômico e político. Significava também que a nova burocracia dirigente exerceria o poder em nome da classe trabalhadora, transformando a ditadura do proletariado em “ditadura sobre o proletariado”.
A longa sobrevida da URSS
Com todas essas restrições (o isolamento da Rússia, o atraso tecnológico e cultural, a desaparição da vanguarda operária, as perdas humanas de proporções cataclísmicas, os sofrimentos inomináveis e privações intoleráveis impostos aos operários e camponeses, a ascensão da camada burocrática, o fim da democracia operária dos soviets), a Rússia transformou-se numa superpotência, com o nome de União Soviética, capaz de enfrentar as maiores potências imperialistas, como a Alemanha na II Guerra Mundial e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. Como se explica esse “milagre”? Como um país semi-feudal e de industrialização incipiente, tendo passado pelos transes de duas guerras mundiais, sangrado quase até a morte; conseguiu em poucas décadas estar à frente dos Estados Unidos na corrida espacial e armamentista?
A resposta é uma só: a expropriação da burguesia. A colocação dos meios de produção social sob controle estatal permitiu um planejamento que no sistema capitalista é impossível. O fim da anarquia do mercado capitalista racionalizou e potencializou enormemente a estreita base das forças produtivas da Rússia pré-revolucionária. É claro que esse avanço econômico se deu sob controle da burocracia e do Estado, bloqueando o exercício do controle pelos próprios produtores diretos. Esse bloqueio à participação dos trabalhadores nas decisões econômicas e políticas determinaria, ao fim de algumas décadas, o esgotamento do sistema burocrático de produção.
A expropriação da burguesia é apenas a primeira fase de uma transformação socialista, que compreende a efetiva devolução dos poderes sociais de direção econômica e política aos trabalhadores associados. Esse segundo passo não chegou a ser dado na Rússia, pois os poderes de controle permaneceram nas mãos da burocracia. Sem esse segundo passo, a revolução estava condenada. Sem a criação de novas relações sociais, que rompessem com a subordinação estrutural do trabalho, o mais natural era que a forma puramente capitalista de subordinação voltasse a se impor. Foi isso o que aconteceu, na década de 1980. Observando-se o processo em perspectiva, não é surpresa que a URSS tenha desabado em 1991, e sim que tenha persistido por tanto tempo. O fato de que o Estado pós-revolucionário burocratizado tenha sobrevivido por sete décadas é o que há de mais excepcional em todo esse processo.
A longa sobrevida do Estado pós-capitalista russo, se por um lado faz ressaltar dramaticamente a importância e a profundidade das transformações ali realizadas, por outro lado fez com que o movimento socialista internacional ficasse paralisado, por assim dizer, ao nível das limitações russas. Como foi dito acima, a necessidade de defender ideologicamente a Revolução Russa trouxe de contrabando a defesa do atraso russo. O movimento socialista do século XX acabou tomando a forma dos PCs centralizados por Moscou, diante dos quais as diversas formas de dissidência (trotskista, maoísta, foquista, situacionista, etc.) não conseguiram alcançar influência mais do que marginal. À medida em que a União Soviética se consolida como um Estado pós-capitalista administrado por uma burocracia, os PCs se convertem em instrumentos da diplomacia soviética, impedindo o desenvolvimento de linhas teóricas e práticas independentes.
A sectarização do marxismo
Toda forma de consciência social (ideologia) é a expressão de uma determinada forma de existência material. Pelas mãos do stalinismo mundial, o marxismo deixou de ser a visão de mundo da classe trabalhadora em luta pela emancipação para se tornar uma espécie peculiar de falsa consciência, a “propaganda enganosa” do socialismo já “realizado” no “modelo soviético”. O marxismo deixou de ser expressão dos interesses gerais da humanidade, materializados na luta da classe trabalhadora, para se converter na expressão dos interesses particulares da burocracia. Em outras palavras, a burocracia se apropriou do marxismo para convertê-lo no seu contrário, a apologia de uma forma de dominação, e com isso legitimar-se no poder.
A vigência de um determinado sistema de pensamento só pode ser provada quando esse sistema é capaz de demonstrar não só que os sistemas alternativos estão errados, como também de explicar porque esses erros necessariamente se produzem sob condições dadas. A vitalidade do marxismo reside justamente nessa sua capacidade de medir-se com a realidade concreta em todos os momentos da história.
Enquanto expressão viva da luta de classes, o marxismo continuou existindo na prática cotidiana de incontáveis militantes anônimos e na voz insubmissa de pensadores dissidentes e marginais. Sob forma “morta”, o marxismo se transformou no discurso oficial emanado de Moscou e difundido pelos PCs e seus epígonos, inclusive na academia e até mesmo em setores da mídia. O marxismo “petrificou-se” numa ortodoxia doutrinária, que não admite divergência em relação aos seus “textos sagrados”. O espírito revolucionário que vivifica as palavras dos grandes autores marxistas converteu-se na letra morta dos manuais stalinistas. Além de petrificado, o marxismo foi também pasteurizado, ao ser reduzido a uma teoria determinista e economicista da sucessão dos modos de produção, ao modo das teorias positivistas do progresso. Confortavelmente instalados nas suas “dachas”, os burocratas podiam contar com a “vitória final” do socialismo, pois isso “estava escrito nos desígnios da História”.
Quando um sistema de pensamento se transforma em porta-voz de interesses materiais firmemente estabelecidos, torna-se necessariamente conservador, ou seja incapaz de renovar-se e assimilar novos elementos da realidade. Passa assim a assumir as características de um discurso religioso, ou seja dogmático. A principal conseqüência do dogmatismo é a sectarização. Para sacramentar o seu poder de dirigente máximo, Stalin precisou usurpar o nome de Lenin (e seu cadáver, que permanece até hoje insepulto na Praça Vermelha como objeto de culto) e criar o “leninismo”, que seria a interpretação “oficial” e “correta” do marxismo. Precisou também criar uma heresia oficial que servisse de bode expiatório para todos os males, atribuindo aos opositores a pecha de “trotskistas”. Os seguidores de Trotsky, por sua vez, caíram na armadilha e inventaram o “marxismo-leninismo-trotskismo”, mergulhando numa disputa sem fim para determinar qual corrente política é “a representante mais fiel” do legado marxista revolucionário.
Para recomeçar
O sectarismo é um dos muitos vícios da esquerda no presente, inclusive dos setores que reivindicam a defesa da Revolução Russa. Muitos fazem essa defesa de maneira formal, vazia, abstrata, descolada da realidade e fanática. Usam o passado como um escudo para se afastar do presente, que não lhes parece “revolucionário” o bastante; ao invés de fazer do conhecimento crítico e aprofundado do passado o instrumento para a intervenção concreta no presente. Uma militância que não tem os pés bem plantados no chão da realidade que pretende transformar corre o risco de se transformar em simples profissão de fé, ou seja, outra forma de alienação. Onde falta conteúdo, a forma vazia se sobressai caricaturalmente.
O mecanismo da sectarização faz com que muitos revolucionários se percam em disputas bizantinas acerca de filigranas da literatura marxista, esgrimindo citações dos clássicos extraídas dos contextos e debates mais diversos para demonstrar a “superioridade incontestável” das suas respectivas escolas e conventículos “revolucionários”. Enquanto se perdem nessas disputas, deixam passar o bonde da História e negligenciam as verdadeiras tarefas que esperam pelo empenho dos que se inspiram em Marx: o estudo das contradições reais em que se enredam os homens reais no mundo real, a luta real ao lado dos trabalhadores tais como existem em carne e osso, a convivência ombro a ombro com os companheiros de luta de todos os “credos” e denominações, o debate com todas as formas de falsa consciência emanadas da ideologia burguesa que corrompem a filosofia, a arte e a ciência, a superação dos obstáculos materiais que obstruem a revolução socialista no presente.
Dedicar-se a essas tarefas é provavelmente a melhor forma de prestar a merecida homenagem aos bolcheviques e demais revolucionários do passado.
Daniel M. Delfino
26/10/2007
No mundo em que vivemos o estudo da História está interditado por uma proibição de tipo absoluto. Uma vez que a ideologia dominante decretou o “Fim da História”, tanto o futuro quanto o passado tornaram-se opacos, inacessíveis, incompreensíveis. E simultaneamente, o presente está eternizado. Se “a História acabou”, todo o passado não serviu senão para nos trazer ao mundo tal qual ele é hoje no presente. E se o mundo já é hoje “exatamente como deveria ser”, todo o futuro não será mais do que uma repetição “ad eternum” desse mesmo mundo presente. De modo que, para recusar o mundo atual, e lutar por sua transformação, é preciso romper com essa lógica que nos condena a um tempo presente eternizado. É preciso resgatar o tempo histórico, restituindo-lhe as dimensões concretas do passado, do presente e do futuro.
Desenvolver uma narrativa histórica concreta, que respeite a especificidade do tempo histórico em suas três dimensões, pressupõe uma síntese totalizadora que articule o passado ao presente e ao futuro, o que exige o emprego da racionalidade dialética. O estudo do passado abre as portas para a crítica do presente e a transformação do futuro. O passado guarda a memória da luta de classes, das experiências em que a humanidade lutou contra a condição desumana do trabalho alienado e a divisão social do trabalho. A ideologia dominante, naturalmente, precisa varrer essas experiências de luta para debaixo do tapete, fazendo com que sejam esquecidas e mistificadas, de modo que não se pense jamais em repetí-las. Para aqueles que lutam pela transformação do presente, ao contrário, o passado da luta de classes é um rico tesouro repleto de ensinamentos sobre os acertos a serem repetidos e os erros a serem contornados.
Há exatamente 90 anos a humanidade viveu uma dessas experiências de transformação social radical, cujas vicissitudes, apesar de tudo o que diz a ideologia dominante, ainda marcam o nosso presente. A Revolução Russa de outubro de 1917 inaugurou uma época histórica caracterizada pela luta para destruir o capitalismo, a última das sociedades de classe, e construir o socialismo. A tentativa de transição ao socialismo aberta pela Revolução Russa dominou todo o século XX. O melancólico final dessa experiência nos anos de 1989-91 foi justamente o que serviu de pretexto para que a ideologia burguesa decretasse o “Fim da História”. Seu alvo explícito era declarar o fim do socialismo e a perenidade do capitalismo, em conformidade com os ditames eternos da “natureza humana”.
O início do século XXI mostrou porém que a roda da História continua girando, que o capitalismo não se livrou de suas crises, que suas catástrofes sociais e ambientais continuam ameaçando a própria sobrevivência da humanidade e que a sua substituição por uma ordem socialista é uma questão da mais dramática urgência. É mais do que oportuno portanto aproveitar os 90 anos da Revolução Russa para aprender sobre os percalços da transformação social a partir da mais importante experiência realizada até hoje na tentativa de uma transição ao socialismo.
A Revolução e a formação da URSS
De saída, o primeiro ensinamento a ser tirado desse estudo diz respeito à relação entre o projeto dos revolucionários de 1917 e a entidade que veio a se constituir de fato como resultado da luta revolucionária: a URSS. A União Soviética foi durante todo o século XX o “modelo” de socialismo em relação ao qual todos os socialistas tiveram que se posicionar, com maior ou menor margem de distanciamento crítico, sendo que na verdade os revolucionários que a construíram não tinham como projeto servir de modelo para ninguém. Os revolucionários russos, ou seja, o partido bolchevique, eram uma das alas da esquerda socialista internacional, cuja luta objetivava a realização da revolução socialista nos países mais avançados, como Alemanha, França e Inglaterra. A partir das condições econômicas, técnicas e culturais superiores desses países, o socialismo teria condições de se construir como alternativa sociometabólica em escala mundial.
Os revolucionários do início do século XX pensavam o socialismo como um projeto internacionalista e mundial, a ser impulsionado pelos países mais avançados. Jamais a partir da devastada e atrasada Rússia. E no entanto, foi justamente na Rússia que a revolução foi vitoriosa. Esse fato determinou as características da luta pelo socialismo durante todo o século. O retrocesso da revolução européia provocou o isolamento da Rússia revolucionária. E o isolamento da Rússia trouxe a necessidade de defendê-la ideologicamente como cabeça-de ponte avançada da revolução proletária, contra a maciça propaganda difamatória da burguesia.
A necessidade de defender a Revolução Russa acabou trazendo de contrabando a defesa de certas características do regime pós-revolucionário derivadas justamente do atraso russo. O vício foi transformado em virtude, especialmente depois da ascensão da camada burocrática contra-revolucionária stalinista.
Quais eram essas características do atraso russo? A mais importante era o fato de que o proletariado russo era minoritário em relação à população camponesa. Essa minoria proletária teve forças suficientes para produzir uma vanguarda revolucionária capaz de tomar o poder. Entretanto, nas gravíssimas circunstâncias da guerra civil que se seguiu à tomada do poder, essa vanguarda foi dizimada. Restou então ao partido bolchevique a paradoxal tarefa de liderar a transição a uma ordem social mais avançada a partir de um elemento social atrasado, ou seja, a partir do campesinato e de um novo proletariado industrial, inexperiente, que seria recrutado sobre a base desse campesinato.
Ao longo dos anos 1920, para fazer frente a esse atraso, para reconstruir o país, para fazer com que as pessoas trabalhassem, com que a economia fosse capaz de alimentar a população e produzir os bens indispensáveis à sobrevivência, o partido bolchevique se viu forçado a administrar a sociedade com os instrumentos da guerra civil revolucionária. Consolidaram-se a ditadura do partido único, a polícia política (Tcheka / GPU / NKVD / KGB) e a censura. Essas características excepcionais da experiência russa foram convertidas em características por excelência do movimento socialista internacional, a partir da formação dos novos Partidos Comunistas (PCs), que não eram somente inspirados pela Revolução Russa, mas diretamente dirigidos pela III Internacional liderada pelos bolcheviques.
Características da época imperialista
Estabelecemos até aqui que o socialismo é um projeto internacional e que só pode ser viabilizado a partir da transformação dos países mais avançados; que a vitória solitária da revolução na Rússia foi uma espécie de “acidente” no contexto da luta socialista; que não havia condições (sociais, econômicas, culturais, tecnológicas, etc.) para que a Rússia liderasse uma transição ao socialismo; e que as características que definiriam o regime pós-revolucionário na Rússia (partido único, polícia política, censura) eram muito mais um resultado de contingências do atraso russo do que decorrências essenciais do projeto socialista russo e internacional.
Sendo assim, a tomada do poder pelos bolcheviques, mais do que um simples “acidente”, não terá sido na verdade um erro monumental? Se não havia condições de iniciar a construção do socialismo a partir da Rússia, por que os revolucionários tomaram o poder no império dos czares? Se os bolcheviques não contavam com o apoio da maioria da população (camponesa), mas tão somente com o dos operários (que acabaram dizimados na guerra civil), a revolução por eles liderada não terá sido uma aventura inconseqüente? O que a distingue de um simples golpe de Estado? A resposta a essas questões é provavelmente o que diferencia definitivamente a visão de mundo dos marxistas revolucionários da visão burguesa (ou mesmo reformista) que domina o senso comum.
Os marxistas revolucionários, como Lenin e os bolcheviques, sabiam que a Rússia era atrasada e não seria a base para a transição ao socialismo. Seria tão somente o ponto de partida. Os mencheviques e todo um amplo leque de reformistas defendiam para a Rússia o programa de uma “revolução por etapas”, que primeiro desenvolvesse o capitalismo, e com ele o Estado burguês moderno, ou seja, a república parlamentar com suas instituições de democracia formal, para somente depois realizar a transformação socialista. Essa concepção parte de um completo desconhecimento sobre a natureza do capitalismo na época imperialista.
O imperialismo representa a união entre o capital monopolista (fusão do capital financeiro com o industrial) e o Estado na disputa por mercados. Nesse contexto, desaparece definitivamente a ficção da “livre concorrência” do capitalismo liberal típico do século XIX (a pretensão dos neoliberais de ressuscitar o “livre mercado” na era da “globalização” em pleno século XXI, com suas mega-corporações globais monopolistas e seus políticos-gângsteres e mercenários do complexo industrial-militar, só pode ser uma piada de péssimo gosto). O Estado passa a ser o executor direto das políticas de interesse das grandes corporações, disputando mercados pela força das armas. Essa é a causa das duas guerras mundiais (e da “guerra ao terror” de hoje).
Na disputa feroz entre as seções nacionais do capital imperialista, desaparece qualquer possibilidade da parte dos países periféricos de experimentar um desenvolvimento capitalista independente. Desde o início do século XX, a idéia de uma “revolução burguesa” nos países periféricos já estava condenada. A burguesia russa era sócia menor e subordinada do capital imperialista inglês e francês. Exatamente por isso, entrou na I Guerra ao lado dos países da Entente. E em obediência aos seus patrões, recusou-se a sair da guerra, agravando o sofrimento das massas russas. Por sua vinculação orgânica com o imperialismo, a burguesia nacional russa jamais seria capaz de conceder as reivindicações populares que desencadearam a revolução: “paz, pão e terra”.
O que era válido para a burguesia russa do início do século XX era válido para o conjunto dos países periféricos. As burguesias locais e oligarquias rurais eram em todos os casos demasiado débeis para liderar qualquer desenvolvimento nacional independente e ao mesmo tempo sempre predispostas a esmagar as reivindicações populares em obediência a seus amos imperialistas. Desse modo, a estratégia dos PCs liderados pelo stalinismo depois da II Guerra somente poderia resultar em desastre. Os PCs stalinistas reciclaram para consumo externo a fracassada estratégia menchevique da “revolução por etapas”, apoiando os “setores avançados” da burguesia nacional nos países periféricos e renunciando à tarefa fundamental de construir organizações políticas independentes e revolucionárias das classes exploradas e de desenvolver a consciência socialista.
Se no contexto das lutas políticas nacionais particulares era talvez correto desenvolver alianças táticas temporárias num ou noutro momento com setores de classe pequeno-burgueses ou mesmo burgueses, isso jamais poderia resultar, como aconteceu na maior parte dos casos, em renúncia à estratégia da revolução socialista liderada pela classe trabalhadora. A renúncia à construção de partidos revolucionários dos trabalhadores e à criação de uma consciência socialista de massa levou a que os movimentos populares dos países periféricos, tão logo se aproximavam do limiar revolucionário, fossem invariavelmente afogados em sangue pela ala reacionária da burguesia nacional e pelo imperialismo.
A Rússia escapou a esse destino por ter tido a vanguarda operária e o partido bolchevique forjados na experiência de 1905. Se a Rússia era atrasada e incapaz de construir o socialismo, o restante da periferia também o era. Mas a quebra dos “elos frágeis” da cadeia do capital, rompendo os circuitos de acumulação da economia-mundo capitalista, interrompendo o fornecimento de matérias-primas e a demanda de manufaturas, minando o controle do capital monopolista, faria com que o capitalismo entrasse em colapso nos países imperialistas centrais e abrisse as portas para a revolução nos países avançados.
É por isso que a revolução liderada pelos bolcheviques não foi um golpe de Estado vulgar. A revolução na Rússia era vista pelos revolucionários russos como uma etapa da revolução mundial. É por isso que o Outubro russo não foi um “acidente” nem um desvio e sim uma exceção, já que foi o único momento em que a estratégia da revolução mundial foi bem sucedida. Foi a única vitória de um amplo movimento que no seu conjunto acabou derrotado. Por ter sido a única revolução bem sucedida, a Revolução Russa acabou arcando com o ônus dos fracassos alheios, ou seja, passou a carregar sozinha o fardo e a responsabilidade da construção do socialismo num contexto de retrocesso da revolução socialista européia e mundial.
É importante ainda lembrar que a idéia de uma revolução européia como fonte de uma transformação socialista mundial não era um delírio messiânico dos bolcheviques, mas uma possibilidade concreta ao alcance das mãos dos socialistas europeus. Na Finlândia houve uma revolta operária em 1918 (que sofreu uma das repressões mais sangrentas da história), na Inglaterra houve grandes greves em 1919, na França houve motins de marinheiros também em 1919, na Alemanha houve a revolta spartaquista em 1919 e o levante de 1923, na Hungria a “república dos conselhos” operários em 1920, na Itália o movimento das fábricas ocupadas também em 1920. A efervescência vermelha estava por toda parte e não apenas na Rússia. Tomar o poder e trabalhar pela revolução européia não era uma utopia, mas era a única estratégia racional disponível naquelas circunstâncias.
A Guerra Civil
Se a tomada do poder se justifica em função de uma estratégia mundial, os defensores empedernidos da visão de mundo burguesa e reformista ainda podem esgrimir o argumento da democracia formal. Ou seja, os bolcheviques não poderiam jamais apelar para métodos ditatoriais na condução da revolução, pois “por melhores que fossem suas intenções”, o mecanismo ditatorial abriria as portas para a ascensão de aventureiros e oportunistas do tipo de Stalin, como acabou acontecendo. Esse argumento “democrático” na verdade esconde um grosseiro desconhecimento de como a História se desenrola concretamente, quando não uma cínica mistificação.
Se os bolcheviques chegaram à condição de tomar o poder em outubro de 1917, é porque tinham a maioria nos soviets surgidos em fevereiro daquele ano. Os soviets eram conselhos de delegados operários, soldados e camponeses, eleitos por local de trabalho, por fábrica, por bairro, por pelotão, por aldeia, etc. e com mandatos revogáveis e controlados pela base. Eram instituições avançadas da democracia direta. Se os bolcheviques tinham a maioria nos soviets, é por que sua política representava as aspirações da esmagadora maioria da população, que queria o fim da guerra, o fim das privações e a distribuição da terra. Se os bolcheviques não organizassem a tomada do poder para atender a essas reivindicações, seriam varridos por uma incontrolável avalanche popular, juntamente com os outros grupos políticos que vacilavam. Era sua responsabilidade tomar o poder para organizar um governo popular e evitar que a queda inevitável do regime capitalista russo em colapso não resultasse na decomposição do país em completo caos e anarquia e ainda maior sofrimento.
Os bolcheviques atenderam às reivindicações da maioria camponesa (distribuição da terra) e dos operários que constituíam sua base social mais direta. Concederam liberdade política aos partidos de oposição e liberdade de imprensa até mesmo para a burguesia. Agiram portanto com a máxima democracia possível. Se o regime veio a se tornar ditatorial logo depois, não foi por ter sido essa a escolha inicial dos bolcheviques, mas por imposições práticas posteriores decorrentes da necessidade de defender as conquistas da revolução. Somente quem não tem o menor conhecimento da História concreta, ou seja, da luta de classes, poderia supor que a burguesia iria observar calmamente a organização de um governo de transição socialista debaixo de seu nariz e não iria reagir. Desde o início a burguesia russa, a pequena-burguesia, setores da intelectualidade e “socialistas” reformistas se colocaram contra o governo que os bolcheviques tentavam organizar.
Não apenas se declararam contrários a esse governo, mas lutaram contra ele de todas as formas. Organizaram atentados terroristas que feriram Lenin e mataram dirigentes bolcheviques, sabotaram a economia, fecharam fábricas, esconderam matérias-primas e víveres, especularam com os preços, saqueraram os camponeses, jogaram a população do campo contra as cidades, etc. A partir de meados de 1918, essa oposição contra-revolucionária aliou-se aos antigos generais monarquistas para travar uma guerra civil sanguinária que durou até o fim de 1920 e custou a vida de dezenas de milhões de pessoas, seja pelas armas, seja pelas privações que causou.
Além disso, a burguesia internacional não deu tréguas ao governo dos soviets. A narrativa histórica convencional diz que a I Guerra Mundial durou de 1914 a 1918. Mas esquece de mencionar que ao longo da guerra civil revolucionária (1918-1920) os exércitos de praticamente todos os países beligerantes invadiram a Rússia para derrubar o governo soviético, perpetrando também toda sorte de atrocidades. Na verdade, a Guerra Mundial foi encerrada apressadamente pelo temor dos Estados-maiores de que o exemplo russo fosse seguido e que, das deserções que já começavam a se massificar, os soldados e operários passassem à formação de soviets e conselhos revolucionários e à destruição da ordem burguesa na Europa. Se no pós-Segunda Guerra tivemos a “Guerra Fria”, o pós-Primeira Guerra já havia trazido o “cordão sanitário”, a tentativa de truncar pela força das armas a experiência socialista russa então no nascedouro.
Esses “espíritos democráticos” que fazem questão de permanecer absolutamente ignorantes da História concreta raciocinam como se a disputa de alternativas sociais entre capitalismo e socialismo fosse um debate de tipo acadêmico no qual ambas as partes conservam um saudável distanciamento e com cavalheiresco espírito esportivo concedem um ao outro a chance de demonstrar seus méritos, cada qual no seu terreno de escolha, agindo na mais completa paz, com toda liberdade de movimentos e em total igualdade de condições. Ao contrário dessa ficção piedosa, tão ao gosto dos intelectuais de gabinete e dos jornalistas sabichões, a disputa se deu concretamente como uma luta de vida ou morte em que os socialistas não tiveram sequer um segundo de descanso e tiveram que testar a viabilidade de seus métodos improvisados nas condições mais desvantajosas possíveis.
É muito comum os “espíritos democráticos” censurarem os bolcheviques por terem instaurado o terror vermelho, a pena de morte e a perseguição aos opositores. A mesma estridência com que se aplicam nessa denúncia se converte em estrepitoso silêncio quando se trata de expor a existência do terror branco, que começou primeiro, causou muito mais mortes e que na verdade foi o que obrigou o governo revolucionário a organizar sua legítima defesa.
Democracia e ditadura
Quando se fala em erros que os bolcheviques cometeram nesse período (a guerra civil revolucionária de 1918-1920), é necessário precisar em relação a que critérios as suas escolhas podem ser consideradas erradas. É muito comum lembrar a revolta dos marinheiros da base naval de Kronstadt (março de 1921), vizinha a São Petersburgo, como um exemplo clássico de erro. Os marinheiros daquela base entraram em greve exigindo o fim da ditadura e depois de negociações mal-sucedidas, acabaram sendo massacrados. Os anarquistas em particular se especializaram em fazer de Kronstadt a “prova definitiva” da má fé dos bolcheviques e da inviabilidade do socialismo, fazendo coro nesse ponto com os “espíritos democráticos” burgueses.
É muito fácil, a posteriori, censurar o governo dos bolcheviques por ter ordenado o massacre de Kronstadt. Com a mesma facilidade com que se faz essa condenação, se omite que o governo revolucionário havia acabado de passar por uma guerra civil mortal, em que a sua sobrevivência esteve diversas vezes por um fio. Vivia-se um cenário em que não se podia ter certeza de que o perigo havia passado, pois havia ameaças internas e externas de todos os lados, e o menor sinal de fraqueza poderia ser o estopim para uma nova guerra. Não se tratava da paranóia arbitrária de um bando de ditadores, mas da vivência traumática de quem havia se acostumado a enfrentar cotidianamente o terrorismo, a sabotagem, a sedição, a insurreição e a guerra implacável em suas variedades clandestina e aberta por mais de três anos.
Para discutir o mérito dessa escolha, é preciso se colocar na mesma posição daqueles que se viram diante dela. Não é essa a posição em que se colocam a maioria dos críticos. De um ponto de vista socialista, o massacre de Kronstadt pode ser considerado um erro, assim como o banimento da oposição política (ainda havia uma minoria de mencheviques, socialistas-revolucionários de esquerda e anarquistas que apoiavam a revolução), a partir de 1921. Do mesmo modo, foi um erro a proibição da formação de tendências e frações no interior do partido bolchevique, como a Oposição Operária, e a censura às posições divergentes nas publicações do partido. Essas medidas ditatoriais foram todas tomadas em caráter provisório, em face das circunstâncias calamitosas em que estava o país após os quatro anos da Guerra Mundial e os três da guerra revolucionária.
Nunca é demais lembrar que os operários, soldados e camponeses haviam feito a revolução, sob a liderança dos bolcheviques, com o objetivo de trabalhar menos. Agora, com a população das cidades reduzida à menos da metade, a produção industrial reduzida à cerca de 15% do que era antes da guerra, a fome, o frio e as doenças matando milhões de pessoas, o comércio exterior e toda forma de intercâmbio praticamente interrompido, a barbárie corroendo a sociedade como um câncer (corrupção, banditismo, estupros, canibalismo), um estado geral de exaustão, desmoralização, venalidade, individualismo e cinismo; o partido bolchevique era obrigado a pedir ao povo que trabalhasse mais do que antes. Nessas condições, não há governo no mundo capaz de manter sua popularidade. As reivindicações de mais democracia, melhores salários, etc., por mais que parecessem formalmente justas, eram materialmente inatingíveis. Os grupos que apresentavam essas reivindicações em tais circunstâncias excepcionais agiam como demagogos irresponsáveis e inconseqüentes.
Nesse momento, ceder parte do poder aos outros partidos de esquerda poderia significar a volta das turbulências da guerra civil. Era esse o risco que os bolcheviques queriam evitar. Ao contrário da revolução permanente defendida por Trotsky, a Rússia vivia um estado de “rebelião permanente”. Depois que o governo do Czar havia sido derrubado em fevereiro de 1917 e o governo provisório burguês em outubro daquele ano, muitos raciocinavam como se o governo bolchevique também pudesse ser derrubado a qualquer momento. Durante a guerra civil formaram-se vários outros governos provisórios em outras regiões da Rússia, liderados por generais monarquistas, os quais desencadearam o terror branco e obrigaram os bolcheviques por sua vez a militarizar o regime. Qualquer bando de aventureiros de armas em punho se achava no direito de fundar seu governo, e tentava de fato fazê-lo, perpetuando um estado de anarquia que só podia ser debelado pela força.
Condições sociais da ascensão do stalinismo
Os bolcheviques acabaram adotando portanto meios de luta (ditadura e terror de Estado) aparentemente contrários aos fins da transformação socialista. Antes de censurá-los por isso, é preciso perguntar: havia outra escolha? A guerra contra-revolucionária desencadeada pela burguesia, pelos monarquistas e pelo imperialismo não lhes deixou nenhuma. Os bolcheviques estavam cientes da contradição entre meios e fins e estavam prontos para abandonar os métodos emergenciais adotados durante a guerra civil tão logo o conflito amainasse. Por que não o fizeram? Porque as novas condições sociais da Rússia pós-guerra civil não lhes permitiram fazer isso. Fez-se sentir o peso das condições materiais, ou seja, a impossibilidade conceitual de um país atrasado tornar-se socialista manifestou-se de forma concreta.
No início dos anos 20 a Rússia estava devastada e faminta. Não havia comércio interno e externo. Havia escassez de alimentos e produtos essenciais. As pessoas morriam de fome, frio e doenças. A tarefa fundamental dos governantes nesse momento era manter o país funcionando. A economia estava desorganizada. Parte do pessoal técnico (engenheiros, gerentes, etc.) se opôs à Revolução e partilhou do mesmo destino da burguesia, ou seja, teve que exilar-se ou desaparecer no terror vermelho. A parte restante do pessoal técnico e letrado aderiu oportunisticamente ao partido bolchevique e serviu como matéria-prima para a reconstrução do Estado. Essa nova camada social havia se tornado indispensável para fazer com que as fábricas, as ferrovias, as comunicações, etc., ou seja, a infra-estrutura econômica funcionasse. Mas para isso, exigiu privilégios materiais, salários mais altos e itens de conforto dos quais os operários comuns não desfrutavam.
A classe operária dos anos 1920, por sua vez, não era a mesma que havia feito a revolução em 1917 (dos quais uma boa parte havia sido formada já na revolução de 1905). Essa nova classe operária, recém-recrutada no campesinato, não tinha a experiência e a formação necessária para se opor politicamente à ascensão da nova camada de técnicos e burocratas. As comissões de fábrica, sindicatos e soviets perderam efetividade, já que na prática a burocracia era o único setor que tinha condições técnicas de tomar as decisões econômicas. Reproduziu-se a separação entre economia e política, entre prática e teoria, entre trabalho braçal e trabalho intelectual, típica da sociedade de classes e do capitalismo.
Depois da Revolução e das duras provações da guerra civil, no momento decisivo da construção do regime socialista, esteve ausente o único elemento social que poderia realizar tal construção, ou seja, um proletariado dotado de consciência de classe. A camada mais consciente do proletariado russo, como vimos, pereceu na guerra civil. A classe operária que se formou após a Revolução vinha diretamente do campo e trazia consigo o peso brutal do analfabetismo e do atraso cultural geral. Os bolcheviques, que representavam o setor mais avançado da classe operária, viram-se subitamente privados de sua base social. O peso econômico decisivo da camada administrativo/burocrática submeteu o partido dirigente a seus interesses materiais, sacramentando os privilégios e a separação social entre burocracia e demais trabalhadores.
Dentro bolchevismo, a Oposição Operária e depois a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky se opuseram à política pró-burocracia do partido. Mas essa oposição acabou privada de uma base social que pudesse sustentar sua luta política. Após o afastamento de Lenin por doença em 1922 e sua morte em 1924, a liderança do partido coube justamente à ala que representava os interesses da burocracia, ou seja, Stalin. Na formação do stalinismo como tendência política não entra apenas o elemento pessoal de traição ou o caráter malévolo de um indivíduo, mas um conjunto de fatores sociais. A Revolução Russa avançou socialmente até onde ainda existia fisicamente uma classe operária consciente a lhe dar impulso. Depois disso, na ausência daquele elemento social, desarticulado, coube à burocracia recolher suas conquistas.
A adoção da tese do “socialismo num só país” no congresso do partido em 1925 significava o abandono da estratégia da revolução mundial em função da qual a própria Revolução Russa se justificava. Dizer que o socialismo era possível num só país significava dizer que este país, a Rússia, estava maduro para o socialismo, o que não era verdade, pois ignorava o fato fundamental de que a classe trabalhadora estava alijada dos dispositivos de controle econômico e político. Significava também que a nova burocracia dirigente exerceria o poder em nome da classe trabalhadora, transformando a ditadura do proletariado em “ditadura sobre o proletariado”.
A longa sobrevida da URSS
Com todas essas restrições (o isolamento da Rússia, o atraso tecnológico e cultural, a desaparição da vanguarda operária, as perdas humanas de proporções cataclísmicas, os sofrimentos inomináveis e privações intoleráveis impostos aos operários e camponeses, a ascensão da camada burocrática, o fim da democracia operária dos soviets), a Rússia transformou-se numa superpotência, com o nome de União Soviética, capaz de enfrentar as maiores potências imperialistas, como a Alemanha na II Guerra Mundial e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. Como se explica esse “milagre”? Como um país semi-feudal e de industrialização incipiente, tendo passado pelos transes de duas guerras mundiais, sangrado quase até a morte; conseguiu em poucas décadas estar à frente dos Estados Unidos na corrida espacial e armamentista?
A resposta é uma só: a expropriação da burguesia. A colocação dos meios de produção social sob controle estatal permitiu um planejamento que no sistema capitalista é impossível. O fim da anarquia do mercado capitalista racionalizou e potencializou enormemente a estreita base das forças produtivas da Rússia pré-revolucionária. É claro que esse avanço econômico se deu sob controle da burocracia e do Estado, bloqueando o exercício do controle pelos próprios produtores diretos. Esse bloqueio à participação dos trabalhadores nas decisões econômicas e políticas determinaria, ao fim de algumas décadas, o esgotamento do sistema burocrático de produção.
A expropriação da burguesia é apenas a primeira fase de uma transformação socialista, que compreende a efetiva devolução dos poderes sociais de direção econômica e política aos trabalhadores associados. Esse segundo passo não chegou a ser dado na Rússia, pois os poderes de controle permaneceram nas mãos da burocracia. Sem esse segundo passo, a revolução estava condenada. Sem a criação de novas relações sociais, que rompessem com a subordinação estrutural do trabalho, o mais natural era que a forma puramente capitalista de subordinação voltasse a se impor. Foi isso o que aconteceu, na década de 1980. Observando-se o processo em perspectiva, não é surpresa que a URSS tenha desabado em 1991, e sim que tenha persistido por tanto tempo. O fato de que o Estado pós-revolucionário burocratizado tenha sobrevivido por sete décadas é o que há de mais excepcional em todo esse processo.
A longa sobrevida do Estado pós-capitalista russo, se por um lado faz ressaltar dramaticamente a importância e a profundidade das transformações ali realizadas, por outro lado fez com que o movimento socialista internacional ficasse paralisado, por assim dizer, ao nível das limitações russas. Como foi dito acima, a necessidade de defender ideologicamente a Revolução Russa trouxe de contrabando a defesa do atraso russo. O movimento socialista do século XX acabou tomando a forma dos PCs centralizados por Moscou, diante dos quais as diversas formas de dissidência (trotskista, maoísta, foquista, situacionista, etc.) não conseguiram alcançar influência mais do que marginal. À medida em que a União Soviética se consolida como um Estado pós-capitalista administrado por uma burocracia, os PCs se convertem em instrumentos da diplomacia soviética, impedindo o desenvolvimento de linhas teóricas e práticas independentes.
A sectarização do marxismo
Toda forma de consciência social (ideologia) é a expressão de uma determinada forma de existência material. Pelas mãos do stalinismo mundial, o marxismo deixou de ser a visão de mundo da classe trabalhadora em luta pela emancipação para se tornar uma espécie peculiar de falsa consciência, a “propaganda enganosa” do socialismo já “realizado” no “modelo soviético”. O marxismo deixou de ser expressão dos interesses gerais da humanidade, materializados na luta da classe trabalhadora, para se converter na expressão dos interesses particulares da burocracia. Em outras palavras, a burocracia se apropriou do marxismo para convertê-lo no seu contrário, a apologia de uma forma de dominação, e com isso legitimar-se no poder.
A vigência de um determinado sistema de pensamento só pode ser provada quando esse sistema é capaz de demonstrar não só que os sistemas alternativos estão errados, como também de explicar porque esses erros necessariamente se produzem sob condições dadas. A vitalidade do marxismo reside justamente nessa sua capacidade de medir-se com a realidade concreta em todos os momentos da história.
Enquanto expressão viva da luta de classes, o marxismo continuou existindo na prática cotidiana de incontáveis militantes anônimos e na voz insubmissa de pensadores dissidentes e marginais. Sob forma “morta”, o marxismo se transformou no discurso oficial emanado de Moscou e difundido pelos PCs e seus epígonos, inclusive na academia e até mesmo em setores da mídia. O marxismo “petrificou-se” numa ortodoxia doutrinária, que não admite divergência em relação aos seus “textos sagrados”. O espírito revolucionário que vivifica as palavras dos grandes autores marxistas converteu-se na letra morta dos manuais stalinistas. Além de petrificado, o marxismo foi também pasteurizado, ao ser reduzido a uma teoria determinista e economicista da sucessão dos modos de produção, ao modo das teorias positivistas do progresso. Confortavelmente instalados nas suas “dachas”, os burocratas podiam contar com a “vitória final” do socialismo, pois isso “estava escrito nos desígnios da História”.
Quando um sistema de pensamento se transforma em porta-voz de interesses materiais firmemente estabelecidos, torna-se necessariamente conservador, ou seja incapaz de renovar-se e assimilar novos elementos da realidade. Passa assim a assumir as características de um discurso religioso, ou seja dogmático. A principal conseqüência do dogmatismo é a sectarização. Para sacramentar o seu poder de dirigente máximo, Stalin precisou usurpar o nome de Lenin (e seu cadáver, que permanece até hoje insepulto na Praça Vermelha como objeto de culto) e criar o “leninismo”, que seria a interpretação “oficial” e “correta” do marxismo. Precisou também criar uma heresia oficial que servisse de bode expiatório para todos os males, atribuindo aos opositores a pecha de “trotskistas”. Os seguidores de Trotsky, por sua vez, caíram na armadilha e inventaram o “marxismo-leninismo-trotskismo”, mergulhando numa disputa sem fim para determinar qual corrente política é “a representante mais fiel” do legado marxista revolucionário.
Para recomeçar
O sectarismo é um dos muitos vícios da esquerda no presente, inclusive dos setores que reivindicam a defesa da Revolução Russa. Muitos fazem essa defesa de maneira formal, vazia, abstrata, descolada da realidade e fanática. Usam o passado como um escudo para se afastar do presente, que não lhes parece “revolucionário” o bastante; ao invés de fazer do conhecimento crítico e aprofundado do passado o instrumento para a intervenção concreta no presente. Uma militância que não tem os pés bem plantados no chão da realidade que pretende transformar corre o risco de se transformar em simples profissão de fé, ou seja, outra forma de alienação. Onde falta conteúdo, a forma vazia se sobressai caricaturalmente.
O mecanismo da sectarização faz com que muitos revolucionários se percam em disputas bizantinas acerca de filigranas da literatura marxista, esgrimindo citações dos clássicos extraídas dos contextos e debates mais diversos para demonstrar a “superioridade incontestável” das suas respectivas escolas e conventículos “revolucionários”. Enquanto se perdem nessas disputas, deixam passar o bonde da História e negligenciam as verdadeiras tarefas que esperam pelo empenho dos que se inspiram em Marx: o estudo das contradições reais em que se enredam os homens reais no mundo real, a luta real ao lado dos trabalhadores tais como existem em carne e osso, a convivência ombro a ombro com os companheiros de luta de todos os “credos” e denominações, o debate com todas as formas de falsa consciência emanadas da ideologia burguesa que corrompem a filosofia, a arte e a ciência, a superação dos obstáculos materiais que obstruem a revolução socialista no presente.
Dedicar-se a essas tarefas é provavelmente a melhor forma de prestar a merecida homenagem aos bolcheviques e demais revolucionários do passado.
Daniel M. Delfino
26/10/2007
Um comentário:
Caro Delfino,
Parabéns pelo texto. Vc tb o fez com colaboração do Coggiolla? (Aquela série sobre 1905 contou com a ajuda dele, certo?).
Bom... Acho que devo me apresentar. Travei contato com você há tempos, quando você ainda escrevia para o duplipensar. Sou estudante de economia da FEA, e na época estava começando a me interessar por Marx. Desde então, li mais da literatura marxista, o que só fez aumentar meu interesse.
Enfim, feita a re-apresentação... Procurei pelo Janus na internet depois de, por curiosidade (e após já ter constatado a degradação há um bom tempo), voltar ao sítio do duplipensar... E ver um texto em homenagem ao Milton Friedman!!
Eis que acabo encontrando o Janus morto...
Mas parabéns pela continuação do trabalho!
Abraço.
Bruno
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