A luta
de classes da burguesia
A
história da humanidade é a história da luta de
classes. Se uma das classes deixar de lutar, a outra classe não
vai ter a gentileza de parar também e ficar imóvel à
espera do adversário. Ao contrário, vai aproveitar a
oportunidade, continuar atacando e conquistar cada vez mais terreno.
No Brasil, em termos históricos, a classe trabalhadora parou
de lutar nas últimas décadas, mas a burguesia nunca
parou, e se mantém numa ofensiva permanente contra nós.
Uma classe social não pode abrir mão do seu projeto
histórico, que no caso dos trabalhadores tem que ser a
superação do capitalismo e o estabelecimento do
socialismo.
Uma vez
que a direção da classe trabalhadora, o PT, nunca
assumiu esse projeto histórico e optou pela gestão do
capitalismo, a consequência não poderia deixar de ser o
enfraquecimento dos trabalhadores e o fortalecimento da burguesia.
Nosso exército foi para o campo de batalha, mas seus fuzis
foram confiscados pelos próprios comandantes, que escolheram
se sentar à mesa com o adversário. Depois de décadas
de defesa da gestão do capitalismo pelo PT, não poderia
ser surpresa para ninguém o fato de que estejamos vivendo uma
ofensiva reacionária no país, que se manifesta nos
níveis econômico, político e ideológico.
No plano
econômico, a burguesia procura avançar sobre uma fatia
maior da riqueza socialmente produzida pelos trabalhadores. Em
qualquer sociedade, é claro, a riqueza é sempre
produzida pelos trabalhadores, mas a proporção que
retorna a eles na forma de salários diretos e indiretos está
sujeita à disputa, que é precisamente a rotina da luta
de classes. Para se apropriar de fatias maiores da riqueza social, a
burguesia adota diversos meios como:
-
reduzir salários por meio da rotatividade da mão de
obra, demitindo trabalhadores que ganham mais para contratar outros
para a mesma função ganhando menos (e também,
simplesmente, contratando menos trabalhadores no geral, aumentando a
proporção dos desempregados e subempregados e impondo
sobre cada trabalhador empregado um volume cada vez maior de
serviço), reduz benefícios (vale-transporte,
alimentação, etc.), e independentemente da rotatividade
da mão de obra, simplesmente, no conjunto, aumenta os ritmos,
metas e a intensidade do trabalho, etc.;
- reduz
direitos trabalhistas impondo formas rebaixadas e precarizadas de
contratação, como a terceirização, a
transformação dos trabalhadores em pessoas jurídicas
(pejotização) o empreendedorismo e empresarialização
de si mesmo (uberização), cooperativas de fachada,
contratos temporários, estágios, etc.;
-
através da inflação, aumenta os preços
dos produtos e serviços, sem que os trabalhadores consigam
aumentar os salários na mesma proporção (em boa
parte por inexistência ou omissão de organização
sindical), na prática achatando ainda mais a parte da riqueza
social que caberia aos trabalhadores;
- descumpre
sistematicamente todos os tipos de legislação trabalhista,
ambiental, sanitária, de segurança, contábil ou
fiscal, fraudando a competição entre as próprias
empresas capitalistas, prejudicando o conjunto da sociedade e muito
mais os trabalhadores, tudo em nome de reduzir custos, sonegando
impostos, postergando as obrigações em trâmites
judiciais intermináveis, etc.
No plano
político, a burguesia usa os governos, o legislativo e o
judiciário para:
-
remover do papel por meio de contrarreformas legais e decisões
judiciais todas aquelas mesmas normas as quais na prática ela
já não cumpre, para que não haja qualquer tipo
de obstáculo, nem mesmo formal, para a exploração
desenfreada, como acaba de ser feito com a reforma trabalhista e a
lei da terceirização geral (e agora se fala em demissão
de funcionários públicos concursados);
- impor
a repressão policial ou mesmo militar contra todo tipo de
manifestação de luta dos trabalhadores, mandando matar,
prender, espancar, demitir, multar, etc., com pretextos arbitrários
e forjados, todos aqueles que se colocam contra a exploração
e a injustiça por meio de greves, passeatas, ocupações
(ao mesmo tempo em que absolve todos os crimes e violências da
burguesia contra nós);
-
desviar fatias cada vez maiores do orçamento público
para o lucro privado, por meio de mecanismos como a dívida
pública (uma dívida fraudulenta, com origem em
contratos abusivos e ilegais da ditadura, que já foi paga
várias vezes, consome quase 50% do orçamento todos os
anos, mas mesmo assim não para de aumentar), desvinculação
de receitas, cortes de gastos e o recém-aprovado teto nos
investimentos sociais, que vão sucatear ainda mais os já
moribundos serviços públicos de saúde, educação,
saneamento, transportes, etc.;
No plano
ideológico, a burguesia usa o monopólio dos meios de
comunicação (televisões, rádios, jornais,
internet), as igrejas, universidades, ONGs e movimentos de fachada
como MBL e outros, para difundir ideias reacionárias de todos
os tipos:
- crença
em soluções individuais e “meritocracia” ao invés
de ações coletivas;
-
legitimação da violência policial e do genocídio
de jovens negros periféricos, por meio de pretextos fajutos
como a “guerra às drogas”, etc.;
-
legitimação da opressão e violência sobre
as mulheres e LGBTs em nome de concepções religiosas;
-
demonização, difamação e mentiras
sistemáticas contra todas as formas de luta e ações
coletivas dos trabalhadores (greves, passeatas, ocupações),
e quando tudo isso falha, a invisibilização e
minimização do seu impacto e potencial real;
De
quantas lutas se faz uma revolução?
A
burguesia nunca para de agir em todas essas frentes. A única
coisa que poderia deter essas múltiplas formas de ataque seria
a mobilização massiva e permanente dos trabalhadores, o
uso intensivo de formas coletivas de luta e resistência,
organizadas desde os locais de trabalho, estudo e moradia e
convergindo para formas totalizantes de unificação, e a
disputa sistemática por ideias e projetos de reformulação
da sociedade numa orientação socialista. É nesse
sentido, de uma mobilização geral em todas as frentes e
com perspectivas unitárias e totalizantes, que dissemos acima
que a classe trabalhadora parou de lutar, pois no que se refere às
tarefas históricas mais abrangentes, as pequenas lutas de
resistência e greves que têm ocorrido simplesmente não
bastam, infelizmente. Na ausência desses elementos de
mobilização massiva em todas as frentes, é
absolutamente natural que a burguesia tenha conseguido impor uma
conjuntura reacionária no país.
Os
trabalhadores lutam, é verdade, mas de forma incipiente,
defensiva, fragmentada, pontual, imediatista. Greves, manifestações
e ocupações têm até mesmo aumentado no
país, desde pelo menos 2010, mas num volume ainda muito aquém
do necessário. E além da quantidade insuficiente, no
seu aspecto qualitativo, todas essas mobilizações
acontecem de maneira desarticulada, desprovidas que estão de
um projeto e horizonte comum a ser defendido por todos os movimentos.
Foi o que brilhou por sua ausência nas chamadas Jornadas de
Junho de 2013, acontecimento que mereceria uma discussão à
parte, mas que não muda o que estamos afirmando: lutas
acontecem, e até ações de massa, mas desprovidas
de um horizonte de transformação social totalizante, e
dos meios organizativos para tal objetivo, que possam lhe dar unidade
e continuidade. Evidentemente, os trabalhadores não vão
desenvolver esse projeto e horizonte por si mesmos, com os níveis
de consciência e organização necessários,
devido justamente ao cotidiano de exploração e
alienação em que vivem, que limita a sua perspectiva de
mundo ao imediato e à suposta continuidade indefinida ou
permanência dos parâmetros fundamentais da sociedade
capitalista (mercado, trabalho assalariado, dinheiro, propriedade
privada, Estado, patriarcado, etc.).
Esse
modo de vida impede que eles percebam que todos esses parâmetros
não são naturais nem eternos, mas produtos da ação
humana, da sua própria ação cotidiana
inconsciente, e que somente essa mesma ação, tornada
consciente e coletiva, pode criar outros parâmetros de vida
social. Desenvolver esse projeto e horizonte
caberia a organizações revolucionárias que
estivessem organicamente inseridas no dia a dia da classe, atuando
como um fermento organizativo e síntese da consciência
coletiva (isso de forma alguma significa dizer que necessariamente
tem que haver uma “vanguarda” de “iluminados” que vão
“dirigir” os trabalhadores).
Na
contramão da luta de classes
Quem
acompanhou os 3 mandatos e ½ do PT na Presidência desde
2002 e a sua orientação política geral durante
os mais de 10 anos que antecederam a eleição de Lula
perceberá que o partido que é a principal referência
de organização da classe fez exatamente o oposto do que
seria necessário para enfrentar as formas de luta da burguesia
conforme exposto acima. Como governo, priorizou os lucros do grande
capital (nunca antes na história desse país os bancos
lucraram tanto, assim como as empreiteiras, o agronegócio,
etc.), e somente os mais incautos podem acreditar que as políticas
sociais focadas de assistencialismo e “inclusão”
(neoliberais) representavam um giro “à esquerda”. Não
houve nenhuma mudança estrutural no país nos governos
do PT, nenhum ataque frontal aos interesses da burguesia, apenas um
marketing bem feito das migalhas distribuídas aos mais pobres,
enquanto que o grosso do banquete era festejado pela burguesia.
Como
partido, desde antes de se tornar governo, o PT apostou na
conciliação de classe, na atenuação das
lutas (e praticou a sua desmobilização sistemática,
basta ver a atuação da CUT nos sindicatos das
principais categorias do país, reduzindo drasticamente o grau
de mobilização; o aumento das greves que tem se
verificado desde 2010, aconteceu por pressão das bases e tendo
as direções da CUT/PT e satélites como
obstáculo, os quais, infelizmente, tais lutas não
conseguem ultrapassar), desarticulou e sabotou as formas de
organização de base e de ação coletiva,
compactuou e reproduziu a ideologia meritocrática e
individualista, etc.
Como
se não bastasse a sua ação de desmobilização
e sabotagem das lutas, o PT, como gestor do Estado burguês, se
locupletou nas mesmas negociatas escusas que os demais partidos da
classe patronal praticam rotineiramente desde sempre. Mas ao ser pego
em flagrante na corrupção, o PT desmoralizou consigo
precisamente os mesmos organismos que são necessários
para que a classe se reorganize e lute: sindicatos, associações,
movimentos, coletivos feministas, anti-racistas, LGBTs, etc., todos
passaram a ser considerados “coisa do PT”, ou seja, coisa de
oportunistas que querem adquirir prestígio aproveitando os
ressentimentos “vitimistas” dos pobres e oprimidos para se eleger
e roubar.
Por um
caminho e pelo outro, por omissão e por ação, o
PT é o responsável direto pela criação
das condições que levaram a “direita” ao governo e
a uma condição de ofensiva em todas as frentes de
disputa social e ideológica. Assim, Temer está apenas
sendo Temer: ele não é uma aberração
surgida repentinamente das catacumbas como uma assombração
num filme de terror, pois foi cuidadosamente gestado e alimentado
pelo próprio PT e à sua sombra, como aliado durante
anos, para fazer exatamente o que está fazendo.
Quanto
pior para nós, melhor para o PT
A
ascensão do projeto hoje encabeçado por Temer
representa um retrocesso do país em todos os níveis. A
continuidade da crise econômica que castiga principalmente os
mais pobres, e a ameaça de uma regressão ainda maior
(reforma da previdência, a entrada em vigor da terceirização
total, do fim da CLT, etc.) fazem com que muitos tenham o seguinte
raciocínio: “se estava ruim com o PT, está muito pior
sem ele; logo, a solução é a volta de Lula em
2018”. O imenso repúdio contra Temer e sua trupe de
corruptos notórios e reacionários furibundos está
sendo canalizado pelo PT para essa “solução”, que
na verdade representa mais um beco sem saída. O PT não
só é o autor intelectual das medidas que estão
sendo aplicadas por Temer (agora em marcha mais acelerada) como
também não está desenvolvendo nenhum tipo de
luta efetiva contra elas. Se depender do PT, não vai ter luta,
insistimos há anos. O parágrafo abaixo é
praticamento copiado e colado há anos em todos os textos que
escrevemos sobre a conjuntura:
O
PT controla a CUT, que controla mais de 3 mil sindicatos e entidades,
que representam 23 milhões de trabalhadores. Os sindicalistas
e militantes petistas nos sindicatos ou mesmo nos demais movimentos
sociais não estão usando essa estrutura para ir
diariamente aos locais de trabalho, estudo e moradia para promover
reuniões, debates, assembleias, panfletagens, cursos, etc.,
para desenvolver a organização e a luta exigidas para
barrar as medidas em curso (não o estão fazendo, porque
isso exigiria uma mudança de 180º na forma como as
direções sindicais cutistas têm agido nos últimos
20 anos). Ao contrário, o PT está permitindo que todos
os ataques passem, como já passaram a PEC do teto de gastos, a
lei da terceirização, a reforma trabalhista, a reforma
do ensino médio, para esperar as eleições de
2018 e voltar à gestão do Estado. Não podem se
opor às medidas que a burguesia deseja, pois do contrário
não serão aceitos de volta no governo pela burguesia,
que é quem de fato determina essa questão.
É
preciso lembrar também que esses milhares de petistas que são
dirigentes de sindicatos e entidades dos movimentos sociais (para não
falar dos parlamentares e outros parasitas no aparato do Estado) já
não são parte da classe trabalhadora, são
burocratas, que já não têm interesses em comum
conosco. Não podem mobilizar os trabalhadores, porque isso
traz o risco dos trabalhadores colocarem seus reais interesses em
pauta e assumirem o controle da luta. E com isso os burocratas
perderiam sua função e seu meio de vida, além de
não poderem voltar aos seus conluios com a burguesia.
A
demagogia mais rasteira é o instrumento da chantagem do PT
sobre as organizações dos trabalhadores. Quem não
se alinhar com a campanha de Lula para 2018, já em andamento
(com Sérgio Moro no papel de coadjuvante) será acusado
de “golpista” e colaborador da “direita”, de não se
importar com os milhões de brasileiros que “saíram
da pobreza” na Era Lula, de não querer ver a água
fluindo no Nordeste, de não gostar de ver os “pobres no
aeroporto”, etc., entre outras cretinices. Sem fazer a mais leve
autocrítica que seja, sem sinalizar a mínima
reorientação programática, o PT quer obrigar
todas as organizações dos trabalhadores a aceitar que
não há outra escolha a não ser Lula 2018. Ou é
isso ou é o apocalipse.
A
burguesia adere ao "Fora Temer"
O PT não
tem outro projeto a não ser voltar ao governo pela via
eleitoral, por isso numa frente ele chantageia as organizações
dos trabalhadores para lhe darem apoio contra "a direita" e
na outra precisa prometer bom comportamento para a burguesia, caso
ela esteja interessada. A burguesia nacional e internacional, por sua
vez, não respeita as regras do jogo, e com governo ou sem
governo, impõe seus ataques na prática e apenas obriga
os políticos a aplicá-los, por mais impopulares que
sejam. Aqueles que não demonstram a desenvoltura necessária,
como Dilma, são apeados do executivo mediante canetadas do
judiciário e manchetes da mídia.
E se a
demagogia com as vicissitudes dos pobres é o instrumento de
chantagem da burocracia para obrigar as organizações
dos trabalhadores a aderir ao seu programa, as denúncias de
corrupção são o instrumento
de chantagem da burguesia sobre os políticos: ou aplicam os
ataques que ela precisa, por mais que a população
esteja insatisfeita, ou vão para a cadeia. Mídia,
judiciário e PF são os braços armados da
burguesia para impor obediência aos políticos, que por
sua vez vão usar a polícia e as tropas de choque legais
e ilegais para impor essas medidas contra a população.
E uma vez
que o próprio Temer se queimou cedo demais e está sendo
alvo do mais amplo e generalizado repúdio já
registrado, a maior rejeição da história, a
ponto de reabilitar parcialmente as chances eleitorais de Lula, um
setor mais clarividente da burguesia já tratou de se colocar
em campo contra Temer, como fez a Globo. Nunca é demais
lembrar que Temer era companheiro de chapa de Dilma (vice decorativo,
como ele mesmo se denominou corretamente) portanto, esse setor da
burguesia pode dizer que ele e o PT são farinha do mesmo saco
e propor algo "novo", como o prefeito de São Paulo
João dólar, ou alguma outra figura do PSDB, ou do MBL,
via eleições diretas sem Lula, ou indiretas,
parlamentarismo, STF e tramoias do gênero. O que importa é
que Temer também é um presidente decorativo, que só
serviu para viabilizar a remoção do PT. Quem governa de
fato é Henrique Meirelles, que foi nada menos do que
presidente do BC nos dois mandatos de Lula.
O PT é
um partido burguês composto de burocratas dos sindicatos, ONGs,
movimentos sociais, universidades, etc.; o PMDB é um partido
(ou quadrilha, como disse o ex-procurador-geral) composto de caciques
de velhas e novas oligarquias. O custo de ter o Estado gerido por
essas burocracias pode estar se tornando muito caro para a burguesia,
fato do qual pode decorrer a opção por uma versão
brasileira do "gestor" e "não-político",
como Trump e Macron, tipo Dória.
O que
queremos deixar assinalado é que essa ofensiva contra os
salários, direitos e condições de vida dos
trabalhadores não é produto de uma deformação
particular ou de uma maldade específica da burguesia
brasileira (embora ela seja de fato uma das mais repugnantes e
elitistas do mundo), mas uma decorrência das crises do
capitalismo, em fase de crise estrutural. As formas de luta da
burguesia que elencamos no início do texto vêm se
intensificando a partir de 2008 em resposta à crise, de modo
que o impeachment/“golpe” e o pacote de maldades de Temer são
apenas o capítulo mais recente desse processo.
Escada
abaixo
A
chantagem do PT se combina com os movimentos cíclicos da
economia. Uma vez que o governo Temer está atravessando a fase
mais penosa da crise, aproveitando para desencadear mais livremente
os ataques que a burguesia deseja, surge naturalmente a tentativa do
PT de fazer parecer que um novo governo Lula seria completamente
diferente. Esquecem-se por exemplo, que a primeira medida do governo
Lula original, em 2003, foi uma etapa de reforma da Previdência
(contra a qual, na luta de resistência, surgiram o PSOL e a
Conlutas), seguida de um ajuste fiscal, comandado por Joaquim "mãos
de tesoura" Levy, o mesmo que foi ministro de Dilma, etc. Essa
promessa de "giro à esquerda" não passa mesmo
de chantagem, não tem base real, nem política, nem
econômica. Infelizmente, a crise atual não é uma
criação nem de Temer, nem de Dilma, eles apenas
tentaram salvar a burguesia.
A forma
atual das crises capitalistas é diferente das crises cíclicas
do passado, que alternavam momentos de crescimento e de queda, o que
num gráfico aparece como uma sucessão de ondas:
crescimento-pico-desaceleração-queda-vale e depois
crescimento-pico-desaceleração-queda-vale, tudo de
novo, e assim sucessivamente. No momento da crise estrutural, as
crises continuam se sucedendo, mas as recuperações não
mais alcançam o ponto alto de crescimento como antes. Num
gráfico, ela deve aparecer como uma sucessão de degraus
numa escada: crise-queda-estabilização num nível
mais baixo, e depois nova crise-queda-estabilização num
nível mais baixo, descendo escada abaixo.
Aqui nos
referimos especialmente às condições da
reprodução social, às condições de
vida da população, níveis de emprego, direitos,
políticas públicas, muito mais do que à
reprodução do capital. O nível de produção,
em termos de quantidade de mercadoria, e de massa de valor, pode até
alcançar um grau semelhante ao dos picos de recuperação
anteriores, mas ao custo do aprofundamento do descalabro social. Nos
Estados Unidos, a recuperação que se seguiu à
crise de 2008-2009 foi chamada de "jobless recovery", ou
seja, recuperação sem empregos. Do ponto de vista
"técnico" da ciência econômica pode até
ser correto falar em recuperação, mas isso se torna
cada vez mais grotesco ou cínico do ponto de vista da
totalidade social, em que despontam sintomas de barbárie, como
a crise dos refugiados, o aumento da violência, o fanatismo, a
fascistização, etc.
No caso
do Brasil, as formas de luta de classes da burguesia listadas no
início do texto podem produzir o resultado de aumentar
momentaneamente o lucro dos empresários. A tal ponto que os
negócios capitalistas possam vir a ser em alguma medida
reativados. Agora com salários menores, menos direitos
trabalhistas, jornadas mais intensas (e mais extensas), maior
exploração do trabalho, menos regulamentação,
menos custos no geral, tudo isso pode conduzir a uma
pseudo-recuperação. Com um grau maior de desemprego e
subemprego, com maior exploração, adoecimento,
deterioração das condições de trabalho,
com sucateamento ainda maior dos serviços públicos,
etc., mas do ponto de vista do capital, será uma "retomada
do crescimento econômico". Mesmo assim, não chegará
aos patamares anteriores à crise, permanecendo como uma
estabilização num degrau mais baixo, até que
sobrevenha a próxima crise.
Se a
estabilização acontecer ainda em 2017 ou 2018, isso vai
aparecer como resultado dos “méritos” da gestão do
governo atual, que soube impor o “remédio amargo”
necessário das políticas de austeridade para que o país
volte a crescer. E com esse discurso as atuais forças
dirigentes vão tentar eleger o seu sucessor. Se
essa estabilização não se produzir, ou tardar
demais, ou o descalabro social não puder ser ocultado, todas
as esperanças vão ser jogadas na eleição
de uma alternativa em 2018, que pode ser até mesmo o PT. Que
vai aparecer como o salvador da pátria e responsável
pela “retomada” da economia.
Todas as
projeções precisam considerar também o fato de
que a economia brasileira também é influenciada,
evidentemente, pelos processos da economia mundial, especialmente
dada nossa condição de país dominado. O eixo
dinâmico da economia brasileira na era PT foi a exportação
de matérias primas, produtos agropecuários e minérios,
principalmente para a China; apenas na fase final com Dilma tentou-se
uma guinada para o consumo interno de imóveis, carros e
eletrodomésticos, mas via crédito, sem crescimento real
da renda dos trabalhadores, portanto com fôlego curto. O
esgotamento do fôlego do mercado interno, combinado com uma
situação de retração no mercado mundial,
ajudou a mergulhar o país na crise. Além de já
estar em crise há mais de 2 anos, o Brasil pode ser apanhado
na próxima queda da economia mundial, mergulhando de cabeça
em um novo degrau de crise ainda mais abissal.
Esses
movimentos dizem respeito à lógica profunda e
fatalmente defeituosa do sistema do capital, portanto incontornável,
incontrolável, inadministrável e incurável. Mas
a questão não é tratada dessa forma, ela aparece
no discurso da mídia, dos partidos e do senso comum como um
problema de gestão mais ou menos competente dos dirigentes do
Estado, como se a escolha de um partido ou outro pudesse fazer
diferença fundamental nessa questão.
Socialismo
ou barbárie
Dissemos
acima que as formas de luta desenvolvidas pela burguesia são
uma decorrência de uma crise estrutural do capital. Isso
significa que as opções políticas, as políticas
econômicas, os projetos de governo, etc., não são
o produto de uma “vontade política” que supostamente teria
o poder superior de alterar a realidade, mediante uma “gestão”
competente. Nada mais falso do que isso: as alternativas
político-partidárias, os programas de governo, as
práticas dos governantes, são todas iguais há
algumas décadas. Não há nenhuma alternância
de projeto, de programa, de concepções; há uma
continuidade das mesmas políticas econômicas, das mesmas
práticas, das mesmas concepções, maquiadas pelas
cores dos diferentes partidos e pelo marketing dos candidatos. E isso
não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.
A
“austeridade”, os cortes de investimentos sociais, a retirada de
direitos trabalhistas, as privatizações, a
desregulamentação dos mercados, o serviços das
dívidas públicas, etc., são a panacéia
que os governantes de partidos de direita ou “de esquerda” do
mundo inteiro empurram goela abaixo dos seus povos. O capitalismo não
permite outra alternativa, não há margem objetiva para
outro tipo de política, não há possibilidade do
capital sobreviver (que significa se expandir sempre) sem assaltar as
condições de vida dos trabalhadores, devastar o meio
ambiente, espalhar o desemprego, multiplicar as guerras, etc. É
essa a feição concreta da crise estrutural.
Depois
de décadas dessas chamadas políticas “neoliberais”,
que não são outra coisa além de uma
intensificação drástica da ação do
Estado para desviar fundos públicos em favor do grande
capital, o cansaço e a insatisfação das
populações já é tão grande que se
buscam todos os tipos de saídas que fujam do roteiro
tradicional, na esperança de romper com o estado de coisas.
Essa busca vai até o ponto absurdo da eleição de
Trump nos Estados Unidos, o que em termos históricos pode ser
comparado a jogar gasolina para apagar o incêndio. As políticas
de Trump representam uma transferência ainda mais acelerada de
riqueza para o grande capital e um desmonte brutal das instituições
em que os trabalhadores buscavam algum apoio.
Num
capitalismo em crise estrutural, não há alternativa
para os trabalhadores a não ser abolir o capitalismo. O Estado
burguês não pode ser outra coisa além de um
instrumento do capital para aplicar medidas “neoliberais” e de
“austeridade”. O Estado não é um mecanismo neutro
que, dependendo da classe social que “ocupa” o poder, poderia
mudar o rumo das coisas. O Estado não é determinante,
ele é determinado. Nenhuma outra classe social “ocupa” o
Estado burguês, isso não é possível, pelas
suas próprias regras de jogo. Nenhum partido que defenda as
medidas que os trabalhadores realmente necessitam, por exemplo, o não
pagamento da dívida pública, jamais será eleito,
e se eleito, não governará. E consequentemente,
qualquer partido que seja eleito, necessariamente, não pode
pode fazer o que quer que seja em favor dos trabalhadores.
Nosso
problema não é optar entre Temer ou Lula, é como
construir a resistência e o projeto de superação
do capitalismo, a partir das lutas de resistência contra as
medidas de “austeridade” de todos os governos. O PT 2002 foi a
tragédia da estratégia reformista de administrar o
Estado em favor do capital (“nunca na história desse país”
...os capitalistas lucraram tanto), com o discurso de ser favorável
aos pobres; o PT 2018 será a farsa de que é possível
obter melhorias ou reverter a deterioração atual, sem
que tenha havido nehuma mudança no grau de organização
dos trabalhadores para a luta.
Essa é
a questão decisiva, a política eleitoral cria as
ilusões de que mudanças na realidade (ou uma pausa nos
ataques da burguesia) podem ser possíveis sem que a classe se
organize para lutar, bastando apenas escolher o candidato menos pior
(por falar nisso, Lula já declarou que não vai reverter
nenhuma das medidas da gestão Temer, o que é bastante
coerente com o modo como o PT/CUT sabotou a luta contra tais
medidas). A organização para a luta e as eleições
não são caminhos paralelos que se pode trilhar
simultaneamente, são na verdade bifurcações, ou
mesmo se colocam um na contramão do outro.
O
petismo fora do PT
A
burguesia tirou lições da crise de 2008 e está
atuando de acordo, ou seja, desenvolvendo a luta de classes à
sua maneira. O PT está preso ao horizonte programático
que adotou décadas atrás, de gestão do
capitalismo, opção que converteu o partido em
instrumento usável e desfrutável pela burguesia, e ele
não pode mais reverter esse rumo e se tornar outra coisa. O
mais lamentável é que uma boa parte das organizações
e movimentos da classe trabalhadora que se colocam no campo da luta
emancipatória/anticapitalista não tirou as devidas
lições do momento histórico e está
propensa a ceder à chantagem demagógica do PT. Muitas
já chamaram voto crítico em Dilma em 2014, outras se
posicionaram contra o “golpe” em 2015 e 2016, e boa parte vai
defender o “voto crítico” em Lula em 2018. E na prática,
já estão se somando à campanha petista.
Muitas
organizações, mesmo aquelas mais combativas e que lutam
pelo socialismo, e que adotam um discurso de oposição
ao PT, na hora H, acabam reproduzindo a mesma estratégia
petista em escala microscópica, a mesma ideia de disputar
espaço no Estado, eleger representantes, um vereador aqui, um
deputado ali, talvez um prefeito, etc., para talvez algum dia ser
maioria, para talvez algum dia implantar políticas públicas
favoráveis, etc. Esse dia hipotético nunca mais vai
chegar! Não há mais espaço para políticas
públicas progressistas, reformas, melhorias, etc., no contexto
de um capitalismo em crise estrutural. Ou então, mesmo quando
sabem que não vão eleger ninguém, essas
organizações legitimam o jogo eleitoral, nem sequer o
denunciam, e retardam o desenvolvimento da consciência
necessária de que o Estado é o inimigo. As alternativas
estão cada vez mais estreitas. Cada mínima conquista
social obtida no passado vai ter que ser defendida com uma luta de
vida ou morte, porque é a vida ou a morte do capital ou dos
trabalhadores que está em jogo. Não há mais
margem de manobra, não há mais meio termo possível.
Qualquer
participação na disputa eleitoral reforça a
crença de que o Estado pode ser o instrumento dos interesses
dos trabalhadores, coisa que ele não pode. Ao invés de
fazer avançar a consciência e organização
da classe, leva ao retrocesso. Ao invés de fazer o trabalhador
acreditar que ele não tem outra escolha, a não ser se
organizar, no sindicato, na associação de moradores, no
grêmio da faculdade, num coletivo feminista, etc., perpetua a
crença de que é possível obter alguma melhoria
mediante a escolha correta de um representante. Leva à
passividade, ao invés da atividade. Atrasa o desenvolvimento
das conclusões necessárias, reproduzindo a postura
conformista, de que “eu não preciso levantar do sofá
e fazer alguma coisa, alguém está fazendo por mim”.
Essa concepção também precisa ser derrotada e
soterrada.
Mais
valem dois pássaros voando do que um na mão
O título
do texto em forma de oração, pedindo que “não
nos deixes cair na tentação do petismo”, na
realidade, já está expondo uma situação
de derrota, porque reconhece que a tentação do petismo
é real e está ganhando cada vez mais adeptos.
Reconhecemos, derrotados, que essa tentação é
real, porque não concordamos com a abordagem simplista que diz
que PT, PSDB e PMDB são iguais. Se fosse assim tudo seria
muito fácil. O PT é um partido burguês composto
de burocratas, mas ele tem a característica especial de ter
usurpado a herança dos processos de luta da virada dos anos
1970 para os 80, e é assim que ele aparece no imaginário
de várias gerações. Fazendo marketing com essa
herança, o PT reproduz um discurso de ser favorável aos
mais pobres, enquanto governa para a burguesia, e é
precisamente essa a sua utilidade para o sistema. Só o PT pode
fazer um programa de desvio de dinheiro público para
empreiteiras (Minha Casa Minha Vida) e dizer que é um programa
de habitação; fazer desvio de dinheiro público
para corporações de ensino privado (Prouni/Fies) e
dizer que faz programas de acesso ao ensino superior; dizer que não
privatizou o Banco do Brasil, mas tirar qualquer vestígio de
função pública que o tornasse diferente de um
banco comercial (para não falar da sua gestão interna);
etc. Só o PT pode fazer esse marketing, por isso tome Lula com
chapéu de couro.
Boa parte
dos leitores desse texto (que tiverem a paciência de chegar até
aqui) podem estar pensando “tudo bem, concordo com várias
coisas, acho que precisa mesmo discutir o socialismo, defender uma
ruptura do capitalismo, precisa participar de alguma coisa, etc., mas
em 2018, como não tem outro jeito, quando estiver na frente da
urna, contra um Bolsonaro, ou Dória, qualquer um desse tipo,
eu vou ter que votar no Lula (ou Ciro Gomes, Fernando Haddad, etc.,
como também já está sendo especulado), ou em
qualquer candidato do PT”.
Para
quem pensa dessa forma, a eleição de um candidato mais
favorável ou menos pior representa um pássaro na mão,
e essa tal de "luta contra o sistema" são dois
voando. E no entanto, os pássaros da revolução
são mais reais do que a ilusão de medidas favoráveis
(para não falar de reformas, pois tudo o que temos visto no
mundo são contrarreformas, e o PT não foi exceção
a isso). O fato de que as pessoas não enxerguem outra
alternativa é o verdadeiro problema com o qual estamos
defrontados. E esse problema é grave por um motivo muito
profundo. Não é apenas porque as alternativas
supostamente existam realmente e estejamos diante de uma imensa
miopia coletiva. Não é que bastaria às pessoas
com concepções democráticas, progressistas,
anticapitalistas, etc., que usassem os “óculos” corretos e
enxergassem as “verdadeiras” alternativas, por exemplo, em
partidos à “esquerda” do PT, como PSOL, PSTU, PCB e PCO,
para ficar entre os eleitoralmente legalizados. Se o problema fosse
apenas fazer o convencimento de que essas organizações
(apesar dos seus muitos problemas) se mantiveram em maior ou menor
grau vinculadas à classe, ao contrário do PT, que
passou para o outro lado da trincheira, isso seria muito fácil.
Bastaria se engajar numa dessas organizações e fazer
propaganda eleitoral delas.
Mas o
problema não é apenas esse, ele está num nível
mais profundo. As alternativas ainda são buscadas no terreno
eleitoral, no terreno da gestão do Estado. Um verdadeiro
avanço só vai acontecer quando as pessoas enxergarem
que não é nesse nível que está a
alternativa, mas no nível da superação da sua
atual forma de vida cotidiana, rumo a uma participação
real em espaços reais de sociabilidade e decisão
coletiva, que estejam em ruptura com a lógica do capital, da
mercadoria, do dinheiro, do direito, do Estado, da simulação
virtual, resgatando o potencial humano existente em cada um de ser
sujeito dos processos históricos. Quando se depositarem as
esperanças menos num gestor supostamente mais favorável
no Estado do capital, e mais na ação coletiva real, em
qualquer de suas infinitas frentes (sindical, feminista,
anti-racista, ambiental, etc.), a ponto de não se preocuparem
em quem será eleito, aí sim estaremos começando
a ver uma luz no fim do túnel. Por enquanto, quando ainda se
tem as esperanças de que é preciso votar no menos pior,
a luz é um trem na direção contrária.
Publicado originalmente no site Passa Palavra: http://passapalavra.info/2017/10/115253