26.3.09

150 anos do darwinismo: a evolução entre o mito e a ciência




Mitos e Logos

Na Grécia antiga havia duas palavras, ambas sem tradução exata para as línguas posteriores, que davam nome às narrativas justificadoras que explicavam o funcionamento do mundo e o sentido da vida, o que somos, de onde viemos e para onde vamos: “mitos” e “logos”.

A diferença entre ambas era que o “mitos” explicava o mundo a partir de elementos situados fora do próprio mundo: deuses e criaturas fantásticas; enquanto que o “logos” era a explicação do mundo por elementos presentes nele mesmo. O “mitos” era transcendente, o “logos” imanente. O “mitos” dá origem à religião e ao senso comum. O “logos” dá origem à filosofia, à ciência e à arte.

Ao longo da história do pensamento, “mitos” e “logos” travam uma disputa épica pela consciência dos homens. O “mitos” tem um aliado poderoso, a ideologia, ou falsa consciência socialmente determinada. A descrição mitológica do mundo, religiosa e irracional, favorece a ignorância, o preconceito, a superstição e o obscurantismo, elementos que colaboram para manter o poder das classes dominantes sobre as massas.

O “logos” por sua vez tem um aliado ainda mais poderoso, a verdade objetiva, a própria realidade dos fatos, a qual ele se esforça para trazer à tona, num trabalho metódico que constitui a sua essência enquanto modo de pensar oposto ao “mitos”.

Nas épocas históricas de grandes mudanças sociais as classes revolucionárias se apóiam na força da razão para o combate ideológico contra os mitos que constituem o arcabouço do pensamento das classes dominantes, parte do combate político geral. Assim fez a burguesia na sua multissecular luta revolucionária e humanista contra a nobreza e o clero.


A história da evolução


Ao longo dessa luta, alguns marcos se destacam. O primeiro é a descoberta de homens como Copérnico, Bruno, Kepler, Galileu e Newton de que a Terra não é o centro do universo, mas apenas mais um planeta gravitando em torno do sol num universo infinito. O segundo marco foi a descoberta por Darwin de que as espécies animais evoluem pela seleção natural dos mais aptos, de modo que a origem do homem pode ser remontada até seus ancestrais primatas (e no limite, até as bactérias que foram a primeira forma de toda a vida no planeta). Um terceiro marco seria a descoberta do inconsciente por Freud, mas em circunstâncias históricas e ideológicas já alteradas.

A descoberta de Darwin foi publicada no livro “A origem das espécies”, cujo lançamento está completando 150 anos (em 12/02/2009 comemoraram-se os 200 anos de nascimento do próprio Darwin). A teoria da evolução já havia sido elaborada pelo naturalista inglês em 1839, no retorno de uma viagem marítima que se iniciara em 1835, e que teve entre outros destinos o Brasil e as ilhas Galápagos, no litoral do Equador. Mas a teoria permaneceu inédita, pelo receio do próprio autor de chocar a sociedade com uma novidade tão radical.

Em 1858, Darwin recebe uma correspondência de outro cientista inglês, Alfred Russel Wallace, em que este apresenta uma teoria idêntica à sua a respeito da seleção natural. Escrupulosamente, Darwin apresenta as duas teorias à comunidade científica, reconhecendo o papel de Wallace. E somente no ano seguinte publica seu livro, que teve estrondosa repercussão. Assim, Darwin passaria à história como pai do evolucionismo em biologia.

“A origem das espécies” dizia basicamente que a natureza seleciona os organismos mais adaptados a sobreviver em determinado ambiente, de modo que estes organismos transmitem suas características aos seus descendentes, terminando por constituir uma espécie em separado. O mecanismo pelo qual os organismos desenvolvem adaptações (mutação) e transmitem suas características (DNA), somente seria descoberto no século XX, com o avanço da genética, e veio confirmar a intuição genial de Darwin.


A mitologia social burguesa


O destino da teoria de Darwin seria mais um exemplo do fenômeno pelo qual “a ciência destrói mitos e coloca outros em seu lugar”. O evolucionismo destruiu os mitos de que as formas de vida foram criadas por Deus tais como existem hoje e de que o homem foi criado “à imagem e semelhança” do próprio Deus. Entretanto, o conceito de evolução acabou sendo parte do arsenal ideológico que justifica a posição de classe dominante da burguesia.

A ascensão da burguesia como classe é indissociável da ascensão do modo de produção capitalista. O capitalismo tem um papel histórico progressivo (reconhecido por Marx no “Manifesto”) de romper a estreiteza das relações sociais feudais e arcaicas, lançando as bases materiais para a luta da moderna classe trabalhadora por sua emancipação. Por outro lado, o capitalismo aprisiona o homem em relações sociais tais que a sua condição de sujeito se reverte em mero objeto do processo de reprodução ampliada do valor econômico.

As relações sociais capitalistas requerem um arsenal ideológico de justificação, uma mitologia social que se baseia no individualismo. Os pensadores burgueses, de Hobbes e Locke a Adam Smith, tomaram a condição do burguês inglês dos séculos XVII e XVIII e generalizaram essa condição como sendo a “natureza humana” em geral, em todos os lugares e em todas as épocas. Inventaram a lenda da “guerra de todos contra todos” no “estado de natureza” e a necessidade da invenção de um Estado dotado do monopólio da força para proteger a propriedade privada “adquirida pelo trabalho” (na verdade, trabalho alheio), que culmina na estapafúrdia afirmação de que a busca de cada um pelos seus interesses individuais resulta “automaticamente” no bem coletivo, por obra da “mão invisível”.


Competição na natureza e na sociedade


Tais mitos são a base do direito burguês e do Estado moderno, a lógica com a qual os indivíduos explicam a si mesmos a vigência das relações capitalistas, da concorrência, do “livre mercado”, etc. Essas idéias já eram comuns no tempo de Darwin. Na verdade, Darwin se inspirou em Malthus, epígono vulgar dos economistas clássicos, para encontrar na natureza o fenômeno da luta pela sobrevivência. Malthus foi o autor da idéia de que a população cresce mais do que os recursos necessários para sua sobrevivência, de modo que a humanidade estaria condenada a uma luta permanente contra a escassez.

A competição, idéia motriz da sociedade burguesa, serviu de inspiração para que Darwin identificasse a luta pela sobrevivência no mundo natural. A descoberta de Darwin é verdadeira, mas a inspiração de onde ele partiu é falsa. A luta pela sobrevivência existe na natureza como um fato dado, um ponto de partida. Mas a competição na sociedade humana tem causas humanas, sociais e históricas, não naturais. A competição entre os homens não tem a ver com uma suposta “natureza humana egoísta”, mas com a divisão da sociedade em classes, um fenômeno histórico e transitório.

A teoria malthusiana se provou objetivamente falsa, pois tanto a escassez com que se depara a maior parte da humanidade, os trabalhadores, quanto a abundância de que desfruta a minoria, a burguesia, não são dados fixos absolutos e a-históricos, mas relativos, artificiais. Não existe escassez de recursos ou subcapacidade produtiva na sociedade. Ao contrário, existe a irracionalidade das relações sociais capitalistas, que condenam a humanidade a crises econômicas periódicas nos momentos em que as forças produtivas não podem ser colocadas em movimento de modo lucrativo. A miséria caminha lado a lado com a superprodução, pois a atividade produtiva não está colocada a serviço das necessidades humanas e sim do lucro. O problema está, portanto, na lógica capitalista de apropriação privada da produção coletiva.


O mito do progresso e a evolução


Sob pretexto da luta contra a escassez, mas na verdade tendo como objetivo a multiplicação do lucro e a reprodução ampliada do capital, a burguesia está permanentemente obrigada a desenvolver as forças produtivas. O aumento quantitativo da produção é o motor secreto de toda a vida social capitalista, que se alimenta da incorporação de inovações tecnológicas, que por sua vez exigem um avanço constante do conhecimento científico.

Em nome desse mecanismo, o aumento da produção passou a ser sinônimo de progresso. E o progresso passou a ser o objetivo de todas as sociedades. A ideologia burguesa do progresso desconsidera completamente a capacidade da natureza de suportar as intervenções humanas, com as catastróficas conseqüências ambientais com as quais nos defrontamos hoje.

O impulso para o progresso é outro mito social burguês que contamina a compreensão da realidade, a tal ponto de ter sido incorporado pelas próprias ciências naturais. A evolução passou a ser compreendida como um valor moral, sinônimo de melhoria. O processo de evolução, um mecanismo cego e aleatório, que consiste simplesmente no fato de que as espécies animais se adaptam ao seu ambiente, passou a ser tratado como evidência de progresso no sentido burguês, como se houvesse um objetivo previamente traçado para a transformação das espécies animais em seres superiores.


Darwinismo social e imperialismo


Repõe-se assim disfarçadamente o mito da divindade do homem, como se a evolução natural tivesse como objetivo produzir o homem. E dentre os homens, há também os vencedores e os vencidos. A burguesia seria a classe social dominante porque está composta dos indivíduos mais aptos. Da mesma forma os povos europeus teriam o direito de conquistar as raças bárbaras da África, Ásia e América por serem superiores. As diferenças históricas entre as classes e os povos, os processos de dominação pela força, etc., foram grosseiramente apagados da história por essa grotesca teoria do “darwinismo social”.

As conseqüências mais trágicas do darwinismo social foram vivenciadas no século XX, quando, em nome do triunfo da “raça ariana”, os nazistas perpetraram o extermínio de milhões de judeus. O projeto de eugenia, ou melhoramento da raça, realizado pelos nazistas é o mais dantesco corolário do darwinismo social. Desde então os adeptos desse pensamento foram forçados a disfarçar um pouco as conexões abusivas que fazem entre teorias da natureza e da sociedade.

Entretanto, tais teorias continuam despontando, como aquela que foi formulada na década de 1970 segundo a qual o único objetivo dos seres vivos é transmitir seus genes. Todo o comportamento animal (e humano) seria explicado por um instinto que o obriga a difundir seus genes. A teoria do “gene egoísta” transforma um mero instrumento, os genes, em causa de todo o processo da vida, justamente porque ignora a perspectiva da totalidade do fenômeno da vida, que contempla uma esfera natural e uma humana, social e histórica.


História natural e emancipação humana


As diferenças e semelhanças entre a história natural e a história social só podem ser compreendidas na moldura de uma lógica dialética, que explica a continuidade na descontinuidade e a descontinuidade na continuidade. O homem rompeu com a natureza e ao mesmo tempo continuou sendo parte dela. As duas esferas preservam sua ligação e ao mesmo tempo sua especificidade, sua lógica própria, que não pode ser transposta de uma esfera à outra.
A luta pela sobrevivência na natureza não é feita apenas de competição entre os organismos, mas de cooperação e mutualismo, tão abundantes quanto a sobrevivência do mais apto. É falso transpor o individualismo liberal burguês para a história natural, assim como é falso explicar as diferenças sociais por causas naturais. Na história humana, a cooperação e o coletivismo são fenômenos presentes durante milênios, muito mais disseminados que a competição, a qual é típica apenas da época capitalista.

A burguesia enquanto classe é incapaz de desenvolver essa compreensão abrangente da história natural e social. Ao mesmo tempo em que necessita da ciência, a burguesia precisa distorcê-la, fragmentá-la, transformá-la em conhecimento altamente especializado de partes limitadas do real, impedindo uma visão da totalidade. Por negar a compreensão da realidade como um todo, a burguesia acaba repondo a necessidade do mito. Nos Estados Unidos há uma intensa luta de setores religiosos para impor o ensino do criacionismo nas escolas, negando a evolução e defendendo a existência de um “desenho inteligente” na natureza, que só poderia ser obra de um criador.

A sociedade que desenvolve ao máximo a ciência é a mesma que reproduz o obscurantismo religioso. A causa dessa contradição está na divisão social do trabalho e na existência de uma classe dominante que vive às custas do trabalho alheio. O homem somente será livre dessa dominação quando se tornar senhor do seu trabalho, do qual atualmente é escravo. Foi a partir do trabalho que os primatas evoluíram para humanos, quando gradualmente seu corpo, suas mãos, seu cérebro, sua mente, se converteram em instrumentos altamente sofisticados. A evolução dos primatas até se tornarem humanos é explicável no quadro da teoria da evolução descoberta por Darwin. A transformação do homem em efetivamente humano só é realizável por meio de uma prática baseada na teoria marxista da emancipação do trabalho.


Daniel M. Delfino


26/03/2009


15.3.09

A miséria, o espetáculo e suas perversidades - Comentário sobre o filme “Quem quer ser um milionário”







O grande vencedor do Oscar 2009 tem como principal mérito o fato de ter escolhido um favelado como protagonista. Afinal, mais de um bilhão de pessoas são favelados hoje no mundo. Vivemos no “Planeta favela”, título de um livro de Mike Davis que descreve a estarrecedora realidade dessa porção nada desprezível da população humana. A favela é o retrato acabado do fracasso da civilização capitalista. Desemprego, subemprego, trabalho informal, biscates, mendicância, prostituição, doenças, fome, violência, crime; são a realidade social dessa população. Esgoto a céu aberto, lixo, fezes, cadáveres em decomposição, ratos e moscas são a realidade material. Um bilhão de pessoas vive literalmente na merda (há uma cena em que o protagonista do filme em questão ilustra graficamente o que quer dizer “viver na merda”).

Pouco acima dessa camada de favelados, temos as também numerosas camadas dos pobres, dos remediados, dos trabalhadores explorados formalmente, que compõem a imensa maioria da humanidade, para quem a simples sobrevivência é um desafio cotidiano. Isso é um grotesco absurdo em face da abundância de recursos e de capacidade produtiva disponível no planeta. O sistema funciona de fato apenas para uma restrita minoria. Nada pode ser mais eloqüente do que essa realidade para demonstrar o fracasso estrepitoso do capitalismo, do livre mercado, da globalização, do progresso, do desenvolvimento, do crescimento, etc. Pedir a cada um desses 1 bilhão de pessoas que continue suportando a vida no inferno por mais um dia sequer, apenas para que a minúscula elite internacional dos banqueiros, executivos, especuladores, aventureiros e rapinantes de toda espécie que controlam a economia mundial possam seguir desfrutando do luxo obsceno em que se refestelam; é dar mostras de um sadismo verdadeiramente hediondo.

Entretanto, é exatamente isso que fazem os gestores do sistema, os tecnocratas e ideólogos mercenários encarregados de reciclar cotidianamente as promessas furadas da viabilidade do capitalismo e propagá-las maciçamente por todos os canais e meios de comunicação que intoxicam diariamente a consciência coletiva. Por esse motivo, os méritos de um filme que tem a coragem de expor as entranhas de uma sociedade periférica como a da Índia devem ser sempre destacados. Trata-se de uma abordagem diametralmente oposta à do “Caminho das Índias” da rede Globo, que optou por mostrar a Índia dos nababos e marajás.

Por falar em Globo e em Brasil, “Planeta Favela” registra o fato de que nosso país tem 51,7 milhões de favelados, e a Índia 158,4 milhões, o que corresponde a 36,6 e 55,5 por cento da população urbana dos dois países respectivamente. Mas nem tudo na nossa indústria cultural é pura mistificação. Por vezes a realidade também aparece. “Quem quer ser um milionário” tem um predecessor importante no seu gênero, o brasileiro “Cidade de Deus”, do qual recebe nítidas influências. Além do cenário de miséria, semelhante em Bombaim (cidade que os inventores de modismos resolveram rebatizar com o insosso nome de “Mumbai”) e no Rio de Janeiro, temos um protagonista que tenta fazer seu caminho sem se envolver com o crime, embora esse tenha sido o meio em que cresceu. No que se refere à narrativa, temos também o recurso à linhas temporais intercaladas que compõem o quebra-cabeças da vida dos personagens. Finalmente, no aspecto puramente estético, temos o estilo de edição, o ritmo acelerado, as cores fortes.

Ao escolher um favelado como protagonista, “Quem quer ser um milionário” tem a oportunidade de retratar as diversas formas de opressão de que essa população é vítima. A opressão se manifesta não apenas na condição material, mas também nas diversas formas de preconceito, discriminação e violência, não apenas física, mas também psicológica.

O título do filme se refere a um programa de televisão do tipo de perguntas e respostas. No Brasil tivemos há alguns anos o “Show do Milhão”, apresentado pelo grotesco Silvio Santos (que aliás fez sua fortuna explorando a credulidade dos pobres), imitação de um modelo internacionalmente difundido, prova de que na indústria do espetáculo nada se cria, tudo se copia. No filme, o programa é inesperadamente vencido por um concorrente que vive na favela. Jamal Malik é um típico representante do emergente capitalismo indiano: trabalha servindo chá aos operadores de telemarketing. Ele é o subalterno entre os subalternos da classe trabalhadora, parte da gigantesca massa humana anônima triturada nas engrenagens implacáveis do superlucro globalizado.

Ninguém na televisão, dos produtores ao público, acredita que Jamal tem a mínima chance de acertar as perguntas do programa. Mas ele acerta uma após a outra, e seu prêmio em dinheiro vai aumentando rodada após rodada. Antes que ele chegue à pergunta final, os produtores do programa tentam descartar-se dele nos bastidores e o acusam de ser um fraudador. Um favelado jamais poderia ter acertado as perguntas sem algum tipo de expediente ilícito. Favelado não é gente, não pode vencer nunca. Está fora do script.

Os órgãos da repressão, por outro lado, cumprem fielmente o roteiro que deles se espera. O favelado é torturado para confessar o crime que não cometeu. Lá como aqui, a polícia bate primeiro e pergunta depois. Ninguém sequer cogita na possibilidade de o vencedor do concurso ter realmente acertado as perguntas, até que a tortura se prove ineficaz e o infeliz tenha a oportunidade de falar. Para explicar para a polícia como acertou as perguntas do programa, Jamal tem que narrar uma série de incidentes de sua vida, pois cada resposta tinha relação com algo que aprendeu por ter sofrido na pele. Desdobra-se então a narrativa de sua vida, desde a infância até o momento em que chega ao programa de TV.

Além do “crime” de ser favelado, Jamal deve pagar pela ousadia de tentar transgredir as normas e mudar sua realidade. O favelado só pode conseguir algo depois de apanhar muito e ganhar traumas e cicatrizes. Depois da tortura policial e de apresentar as justificativas para cada uma das respostas que acertou, ele terá a chance de voltar ao programa e arriscar a sorte na pergunta final. O detalhe é que a tortura e o interrogatório transcorrem longe dos olhares do público. O inferno vivido por Jamal não pode ser televisionado. O favelado não pode ser humanizado, seu sofrimento não pode ser partilhado pelo espectador. A televisão suprime a brutalidade do real e a dissolve na superficialidade do estereótipo. O público do programa inevitavelmente desenvolve uma empatia por Jamal e torce por ele, mas nem sequer desconfia dos horrores pelos quais ele passou para chegar até ali, desde sua infância distante até a tortura policial ali mesmo, às vésperas da pergunta final.

O mundo do espetáculo é um mundo asséptico, higienista, forjado, embalado para presente e emoldurado pelo sorriso artificial e monstruoso dos apresentadores de TV. Um mundo de fantasia que dissimula por meio da hipocrisia profissional a verdadeira realidade dos seres humanos. A demanda por “reality shows” expressa justamente isso, a necessidade do público de torcer por personagens com os quais possa se identificar. Os “reality shows” fornecem tais personagens, mas não modificam a dramaturgia básica do espetáculo, apenas substituem os atores profissionais que encenam o conto de fadas por amadores com os quais o público se considera mais parecido. Nenhum reality show mergulha na realidade de um ser humano com a mesma profundidade de que somente a verdadeira arte, a literatura, o teatro, e alguns raros filmes são capazes.

Um dos méritos de “Quem quer ser um milionário” é humanizar seus personagens, valorizando sua trajetória de vida. Jamal adquiriu uma diversificada (e terrível) experiência de vida na favela, nas ruas, na mendicância, no trabalho. Vivenciou a barbárie dos conflitos religiosos, o trauma da orfandade, a precariedade da mendicância, o horror da exploração do trabalho infantil, enquanto as pessoas mais próximas dele resvalavam para o crime e a prostituição. Conheceu a inveja, o autoritarismo e por fim a traição da parte do próprio irmão. Mas ele conheceu também a amizade e o companheirismo que unificam os miseráveis e as pessoas que atravessam situações extremas. Conheceu até mesmo o amor, que foi o fio de esperança que o manteve firme e vivo enquanto era massacrado pela vida e levado pela correnteza dos acontecimentos.

Depois de passar por esse purgatório, Jamal faz jus ao prêmio milionário do programa de TV. Chegamos então ao ponto limite do filme. “Quem quer ser um milionário” nos mostra a realidade do favelado, humaniza sua trajetória, cria no espectador a empatia pelo personagem, nos faz torcer por ele e vibrar por sua vitória; tudo isso é bastante louvável e excepcional no cinema, mas é feito no bojo de uma solução narrativa também artificial, que termina por endossar o mecanismo básico do espetáculo e seus pressupostos ideológicos.

O problema começa na forma como Jamal vence o prêmio. Ele acerta a pergunta final no chute, sem realmente saber a resposta. Com isso fica referendada a concepção de que o conhecimento, no seu aspecto acadêmico, formal, livresco, é algo supérfluo, e se pode “vencer na vida” sem ele. A cultura nesse caso aparece como algo que não é de fato necessário, que não enriquece a vida, que não recompensa aquele que se esforça para adquirí-la; enfim, algo que não é preciso conquistar e se pode viver muito bem sem tê-la.

O segundo problema está no próprio conceito do que significa “vencer na vida”, ou seja, ficar milionário. Reforça-se um ideal de realização em que o indivíduo não pode simplesmente ser o que ele é, ele precisa ser como os “vencedores”. Ou o indivíduo é parte da massa miserável, ou é parte da elite privilegiada. O favelado é festejado, mas apenas pelo fato de que ele “vence” e deixa de ser favelado para se tornar milionário.

O terceiro problema, resultante do anterior, é que se acaba referendando assim o culto ao dinheiro e aos bens materiais. É evidente que a miséria material é um mal, mas isso não torna automaticamente um bem a abundância de bens materiais. Especialmente quando tal abundância é resultante das mesmas relações sociais que produzem a miséria, o modo de produção capitalista.

O quarto problema está na idealização do amor romântico. Como numa novela da Globo, em que o final feliz é sempre um casamento (ou pior, vários casamentos), o filme indiano termina numa festa em que o casal de protagonistas fica junto. Ao contrário do que a indústria do romantismo para consumo popular insiste em dizer, o casamento não é onde os problemas terminam, é onde eles começam.

O quinto problema está na frase que encerra o filme, quando aparece a alternativa que responde à pergunta colocada ao espectador logo no começo: “estava escrito”. Isso quer dizer que o destino dos personagens já estava traçado. Com isso, reforça-se a idéia nefasta de que não é o homem que faz sua história, é alguma força sobrenatural que determina o curso dos acontecimentos. Sendo assim, não é preciso se esforçar para modificar a vida, basta se deixar levar. Nesse ponto, “Quem quer ser um milionário” coincide um pouco com outro concorrente do Oscar, “O curioso caso de Benjamin Button”, em que o destino e o roteiro determinam a vida do personagem, sem que ele tenha muita interferência e aprenda algo significativo através da luta.

Por último, e também mais grave, está o fato de que a solução para o problema do favelado é puramente individual. Com toda a ruptura que representa por conta da escolha de seu tema e do retrato humano que faz do personagem, o filme permanece prisioneiro da lógica do espetáculo. As narrativas da indústria cultural reforçam a crença de que “qualquer um pode chegar lá” e impedem o indivíduo de pensar em sua própria vida ao contemplar a vida dos “vencedores” que protagonizam o espetáculo.

Jamal fica milionário, mas a favela continua lá, com o esgoto a céu aberto, lixo, fezes, cadáveres em decomposição, ratos e moscas. Os favelados assistem pela TV e comemoram em toda Índia a vitória de um dos seus, mas continuam favelados. Aceitam assim a permanência de um sistema em que um em 1 bilhão pode ficar milionário, mas os restantes permanecem miseráveis. Um sistema em que um afro-descendente pode chegar a presidente dos Estados Unidos, mas os africanos sucumbem na barbárie das guerras tribais legadas pelo saque do continente realizado pelo imperialismo.

É tudo uma questão de sorte, de destino, de acertar um palpite. Se você for um pré-destinado, parabéns, pois se tornará um milionário. Quanto a nós todos, continuaremos na merda.


Daniel M. Delfino


15/03/2009