20.11.08

1968, o ano vermelho - parte 3 de 3


4.6 Brasil

O Brasil vivia uma ditadura desde 1964. A fração mais pró-imperialista da burguesia derrubou o governo nacional-desenvolvimentista através dos militares. Parlamentares e políticos de esquerda foram cassados e partidos de oposição foram postos na ilegalidade. As principais organizações de massa foram reprimidas: as ligas camponesas foram dissolvidas e os sindicatos sofreram intervenção. A imprensa passou a ser vigiada. A única organização popular que permaneceu ativa foi a União Nacional dos Estudantes (UNE), que passou a ser o foco da resistência contra a ditadura.

Os estudantes se tornaram também o principal alvo da repressão. Em 28 de março de 1968 o estudante Edson Luís, que não era militante, foi morto pela polícia num restaurante no Rio. A morte do estudante precipitou uma onda de manifestações de protesto. Durante o mês de junho os universitários do Rio entram em greve e tomam as ruas da cidade em confronto com a polícia. Os confrontos provocam a mobilização de artistas, intelectuais, sindicalistas e os setores médios mais politizados, que passam a marchar em apoio aos estudantes. O auge dessas mobilizações seria a “Passeata dos Cem Mil”, no próprio Rio de Janeiro, em 26 de junho, que reivindicava explicitamente a volta da democracia.

Antes disso, o movimento operário já havia demonstrado sinais de iniciativa. Na comemoração do 1º de Maio, na Praça da Sé, em São Paulo, os operários derrubaram o palanque e puseram em fuga o governador indicado pelos militares, que tentara discursar. Nesse mesmo ano aconteceriam ainda as greves dos metalúrgicos de Osasco/SP e de Contagem/MG, as últimas durante a ditadura antes da retomada do movimento grevista em 1978. O clima de rejeição à ditadura crescia em todos os setores, a ponto de deixar os militares na defensiva.

A resistência cultural ao regime era praticada pelo Cinema Novo de Glauber Rocha, pelo teatro de Augusto Boal e José Celso Martinez, e pelas canções de protesto da MPB. Os Festivais da Canção eram a principal atração da televisão na época e mobilizavam torcidas apaixonadas. A vitória de determinada composição ou intérprete era motivo de intensa disputa, a qual se tornou crescentemente politizada. Em 1968, parte do público não aceitou a vitória de “Sabiá” de Chico Buarque e Tom Jobim, sobre “Caminhando”, de Geraldo Vandré, e praticamente exigiu um empate. Caetano Veloso, líder do tropicalismo, espécie de versão brasileira da contra-cultura, discursou debaixo de vaias dos estudantes politizados, dizendo que “não estavam entendendo nada” das transformações e lutas em curso.

Em outubro aconteceu também em São Paulo a “batalha da rua Maria Antônia”, quando estudantes direitistas da faculdade Mackenzie, organizados no CCC (Comando de Caça aos Comunistas), atacaram os estudantes de esquerda da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Os confrontos duraram dois dias, entre 2 e 3 de outubro, levando à morte um estudante secundarista alvejado pelo CCC. Depois da tragédia a polícia interveio e levou dezenas de estudantes presos.

Em 12 de outubro o Congresso da UNE, que transcorria clandestinamente em Ibiúna/SP, foi fechado pela polícia, com a prisão dos quase mil delegados presentes. A última organização de massa é desmantelada e a resistência popular é desarticulada. A ditadura se preparava para entrar em seu período mais duro.

Em 13 de dezembro é decretado o Ato Institucional número 5 (AI-5), que fechou o Congresso, revogou as liberdades civis e instaurou a censura. Os órgãos da repressão ganhavam poderes ilimitados para prender, interrogar, perseguir qualquer pessoa “suspeita” de participação na “subversão”. Tendo sido derrotada a via da luta de massas, a esquerda opta então pelo caminho da luta armada contra a ditadura. As ações de guerrilha urbana começam nesse mesmo ano, com a execução do agente da CIA Charles Chandler pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) em outubro. Começara a noite do “combate nas trevas”.

4.7 Outros Cenários

1968 não foi apenas internacional, mas também internacionalista. A guerra do Vietnã era a causa que unificava a esquerda no mundo inteiro, como foi dito acima. Toda a esquerda sabia que a derrota do imperialismo no Vietnã abriria uma nova etapa na luta de classes, colocando a burguesia na defensiva, com a possibilidade de avanços para os trabalhadores, como de certa forma acabaria acontecendo. Em nome dessa possibilidade, as organizações de vanguarda em todo o mundo jogavam suas forças nas manifestações contra a guerra. A partir dessas manifestações, com as massas estudantis e operárias mobilizadas, as lutas tomavam formas determinadas pelas características específicas de cada sociedade local.

Manifestações estudantis importantes contra a guerra aconteciam desde 1966 no Japão. Também neste ano, na Holanda, começam as ações de desobediência civil do movimento contra-cultural Provos (espécie de dissidência do situacionismo). Na Espanha e na Polônia os estudantes também protestam, enfrentando a ditadura fascista e o stalinismo, respectivamente. Na Itália, desde fins de 1967, estudantes e operários promovem greves, ocupações e manifestações massivas. No início de 1968, na Inglaterra, a London School of Economics, bastião do conservadorismo, também é ocupada pelos estudantes. Em fevereiro, em Berlim ocidental, sob a liderança de Rudi Dutschke, também acontecem grandes protestos contra a guerra. Os jovens dessa época também queriam derrubar o muro, mas para experimentar o socialismo, não o capitalismo. Em Hong Kong, território chinês ocupado pela Inglaterra, os jovens também se agitam, querendo aderir à Revolução Cultural maoísta.

Diante de todo este contexto, pois, a França foi o país em que o movimento começou mais tarde, somente em maio, apesar de acabar se tornando o palco dos acontecimentos mais extraordinários. No que se refere à continuidade, porém, a primazia cabe à Itália. Mais pobre e politicamente mais instável que a França, a Itália também abrigava um poderoso Partido Comunista, que não hostilizou totalmente as mobilizações estudantis (como fizera o PCF) e não se negou a dirigir o proletariado. O resultado foi o “outono quente” de 1969, com milhões de trabalhadores em greve e ocupações das fábricas da Fiat em Turim e da Pirelli em Milão. Estudantes e trabalhadores lutavam unidos e a extrema esquerda disputava a liderança do movimento com o PCI. A década de 1970 foi de intensas lutas e trouxe grandes conquistas ao proletariado industrial italiano.

Outro destaque fora da Europa foi o México, onde a greve geral da UNAM, maior universidade da América Latina, durou dois meses e quase provocou o cancelamento das Olimpíadas, marcadas para outubro. Quando a universidade foi invadida pela polícia, os estudantes se concentraram na praça de Tlatelolco, tentando dar continuidade ao movimento. A repressão conduzida pelo exército, que invadiu a praça na noite de 2 de outubro, foi brutal: 48 mortes, segundo a contagem oficial; mais de 300 segundo os militantes. Entre 12 e 27 de outubro, como planejado, realizam-se os Jogos.

Os ecos de 1968 também atingiram outras partes do mundo, que experimentaram significavas guinadas à esquerda. No Peru, o general Velasco Alvarado realiza um governo nacionalista (1968-75), promovendo uma série de estatizações. Na Argentina, que vivia a chamada ditadura “gorila”, um levante operário em Córdoba (2ª maior cidade do país), provocou a queda do governo e a volta da democracia burguesa em 1969. Também neste ano, no Paquistão, o general Ayub Khan é derrubado por uma revolução civil liderada por Zulfikar Bhutto, fundador do Partido do Povo do Paquistão e iniciador da “dinastia” Bhutto. No Chile acontece a eleição de Allende em 1970 (seria derrubado em 1973), unindo os partidos socialista e comunista. Na Bolívia, que já experimentara a revolução de 1952, acontece a Assembléia Popular, experiência de duplo poder, entre 1º de maio e 21 de agosto de 1971, no breve intervalo entre duas ditaduras militares. Até mesmo a Revolução dos Cravos, em Portugal, em 1974, pondo fim a décadas de ditadura salazarista, pode ser considerada um eco de 1968, devido a alguns elementos de auto-organização popular.

Em junho de 1969, em Nova York, a polícia adentra um bar freqüentado por homossexuais para uma batida, mas sua truculência habitual não é mais tolerada. Na saída, os policiais são sitiados pelo público e obrigados a pedir reforços. O público local não se intimida e entra em confronto com a polícia, que consegue se afastar a duras penas. Depois desse incidente, a polícia deixa de perseguir ostensivamente os homossexuais. O nome do bar, Stonewall, se tornaria símbolo da resistência dos homossexuais, e a data, 28 de junho, passaria a ser celebrada como dia do orgulho gay.

O saldo final de todas essas lutas parece decepcionante. Apesar da coragem e da criatividade dos militantes e das massas, nem o capitalismo nem a burocracia stalinista foram derrubados. Muitas organizações tentaram compensar a frustração com a impotência da luta de massas por meio do voluntarismo da luta armada (como foi dito acima a respeito da esquerda brasileira). O exemplo de Cuba e de Che Guevara estava mais vivo e sedutor do que nunca em 1968. A experiência cubana havia sido transformada em teoria pelo jovem pensador francês Régis Debray (é típico dos franceses criar teorias e rótulos para tudo), sob o nome de “foquismo”. A idéia de que um pequeno foco de militantes determinados seria capaz de derrubar o Estado por meio de uma longa luta de desgaste contra suas forças armadas regulares inspirou várias guerrilhas pelo mundo.

O movimento guerrilheiro Tupamaro, originado no Uruguai, já era ativo desde 1963. A esquerda peronista originou a guerrilha dos Montoneros na Argentina. Também optaram pela luta armada o IRA na Irlanda, o ETA na Espanha, a Fração do Exército Vermelho (Baader-Meinhoff) na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, e até a OLP palestina pode ser enquadrada nesse contexto.

5. Inconclusão

1968 representa a intersecção de movimentos que se situavam em três temporalidades históricas distintas. Houve um movimento que, na falta de adjetivo melhor, denominamos “prematuro”, o qual coincidiu com outro “retardatário”. Os dois, por sua vez, se localizam no contexto determinado pela vigência de uma revolução “interrompida”.

O movimento prematuro foi o que ocorreu nos países imperialistas, nos quais o proletariado já havia alcançado a possibilidade de desfrutar da abundância material e da vida confortável da “sociedade de consumo”. As novas gerações formadas nos “anos dourados” do capitalismo recusaram a perspectiva desse modo de vida dominado pelo tédio e pela artificialidade e puseram em pauta a reivindicação de uma emancipação espiritual, e não apenas material. A cultura de massas impedia o desenvolvimento de uma subjetividade autêntica, sufocando a interioridade e a expressão individual. A contra-cultura tentou dar vazão a essa individualidade reprimida.

Esse movimento pode ser considerado “prematuro” não por ter acontecido antes do tempo, mas pelo fato de que a abundância material não era uma realidade para a humanidade no seu conjunto e sim para uma restrita minoria. Logo, o proletariado dos países avançados se deparou com problemas que não estavam colocados para seus irmãos na periferia mundial. Se nos países imperialistas o que estava em pauta era o que fazer com o tempo livre conquistado (o que fazer para torná-lo efetivamente livre e não submetido ao consumo do lixo da indústria cultural e do lazer capitalistas), na maior parte do mundo ainda se lutava para conquistar algum tempo livre.

É por isso que o movimento nos países periféricos pode ser considerado “retardatário”. A luta desses países ainda consistia em obter melhorias básicas nas condições materiais de vida. O problema é que o modo de produção capitalista necessariamente pressupõe o desenvolvimento desigual e combinado. Ou seja, a desigualdade da situação material entre centro e periferia é uma condição sine qua non para a continuidade do funcionamento do sistema. É preciso que haja uma corrida constante pela renovação tecnológica e pelo aumento de produtividade, de modo que o centro sempre possa produzir mais e consumir mais. Os limites do supérfluo e da abundância são sempre empurrados para frente, ao passo que as necessidades dos miseráveis são gradativamente deixadas para trás.

Ao reivindicar melhorias materiais, os movimentos da periferia estavam reivindicando aquilo que os do centro já estavam lutando para superar. Ao recusar a abundância capitalista, os movimentos do centro estavam antecipadamente rejeitando aquilo que a periferia ainda nem sequer havia obtido. Os dois movimentos eram verdadeiros e legítimos em sua parcialidade e ao mesmo tempo falsos e contraditórios em sua falta de sincronia na relação com a totalidade. A “astúcia da razão capitalista” neste caso consistiu em impedir que esse movimentos se comunicassem e realizassem a unidade dialética das suas demandas: a abolição do sistema produtor de mercadorias como um todo.

Muito dessa vitória do capitalismo se deveu à colaboração dos dirigentes das sociedades pós-capitalistas, nas quais a revolução foi interrompida. As sociedades que romperam com o capitalismo, mas não construíram de fato o socialismo, impediram a unidade entre as tendências radicais no centro e na periferia, atuando como falso exemplo do objetivo a ser atingido. As sociedades pós-capitalistas se limitaram a rivalizar com o capitalismo no plano dos avanços da produção material (corrida espacial, corrida armamentista, o objetivo de produzir mais ferro e carvão que os Estados Unidos, etc.), sem construir novas relações sociais que dessem aos produtores associados o controle efetivo de suas vidas.

A tragédia das “revoluções interrompidas” não estava no ato da revolução, que continuava sendo necessário e desejado, mas no fato da revolução ter sido interrompida antes de poder gestar um modo de vida efetivamente novo. Em 1968 muito se falava em revolução, socialismo e comunismo, mas isso pouco tinha a ver com uma grande simpatia pelo “socialismo real” da URSS e seus satélites. Ao contrário, boa parte dos pensadores, militantes e ativistas de 1968 já sabia que aquele não poderia ser o caminho.

A idéia de socialismo estava teoricamente mais próxima do marxismo original, não pervertido pela vulgarização stalinista. A prática dos que militavam por esse socialismo, por sua vez, era marcada por um certo anarquismo “difuso”, anti-autoritário, espontaneísta e “basista”. A tentativa de resgate do marxismo e revitalização do socialismo por meio de práticas libertárias acabou também sendo derrotada. O melancólico resultado que se seguiu foi o oposto: a negação do socialismo. Parte da esquerda de 1968, sua “ala vanguardista”, optou pela luta armada, como vimos na seção anterior. Outra parte, a “ala acadêmica”, desenvolveu uma “ontologização da derrota” do movimento, saindo-se com a conclusão de que a classe operária não era mais o centro da luta emancipatória e de que o foco tinha se deslocado para as relações interpessoais e as lutas culturais.

O socialismo passou a ser rejeitado não mais por ter se burocratizado (o que abria as portas para a possibilidade da sua regeneração), mas passou a ser considerado uma continuidade direta da ideologia burguesa positivista do progresso e da racionalidade, que eram o alvo da “grande recusa”. Essa corrente daria origem ao que foi chamado de pós-modernismo.

5.1 Quarenta anos depois

As lutas sociais prosseguiram nas décadas de 1970 e 80 em torno de conquistas democráticas, mudanças comportamentais, transformações culturais e questões ambientais, que deram algum alento ao ativismo. A questão do poder de Estado e da lógica do capital em sua totalidade foi de certo modo secundarizada, pois não se sabia como superar o problema da efetiva transição ao socialismo. Essa dificuldade foi dramatizada pela estagnação das sociedades em que a revolução havia sido interrompida. A inviabilidade do modelo pós-capitalista burocratizado resultou na queda desse sistema entre os anos de 1989-91.

A queda do muro de Berlim e da URSS abriu caminho para uma série de ataques políticos, econômicos e sociais contra a classe trabalhadora no mundo inteiro por meio das chamadas políticas neoliberais. Ofereceu-se também à burguesia a oportunidade de uma violenta ofensiva ideológica estruturada em torno da idéia de “fim da história”, ou seja, derrota do socialismo e vitória do capitalismo. Essa ofensiva ideológica utilizou parte do arsenal teórico do pós-modernismo, que havia desenvolvido a negação da centralidade do trabalho, da razão, do sujeito e do humanismo. A luta dos jovens de 1968 pela expressão autêntica da individualidade se transformou melancolicamente em luta individualista pelo sucesso material. Nos Estados Unidos, ex-hippies se transformaram em empresários de sucesso, ou seja, personificações do capital.

A permanência da lógica do capital e sua mundialização deslocaram a base material em que se desenvolveu a intersecção das distintas temporalidades de 1968. O distanciamento entre centro e periferia aumentou ainda mais, com um contraste cada vez mais radical entre a insultuosa abundância dos super-ricos e a degradante miséria dos muito pobres.

A revolução tecnológica em curso desde os anos 1970 (robótica, computação, informática, microeletrônica, telecomunicações, internet, biotecnologia) expulsou a força de trabalho da produção industrial, centro da geração de mais-valia, o que introduziu um novo elemento de crise. A taxa de exploração aumenta em números relativos, já que cada trabalhador individualmente produz mais, mas o volume total de lucro diminui em números absolutos, já que há um número cada vez menor de trabalhadores produzindo. A reprodução do capital tenta fugir artificialmente para a esfera financeira, o que impõe em nível mundial a ofensiva pelas políticas neoliberais.

O que está em andamento não é o “fim da centralidade do trabalho”, mas uma reafirmação dessa mesma centralidade na forma de uma crise estrutural que corrói o capital por dentro na mesma medida em que este tenta fugir das conseqüências do desenvolvimento de sua própria lógica. A tentativa de fuga para a esfera financeira mascara o processo real de mundialização do mercado de trabalho, que atravessa as diversas sociedades nacionais. A base material para as greves do maio francês e do outono quente italiano de 1968-69 era uma situação de relativa escassez da força de trabalho, que permitia aos trabalhadores exigir um preço maior pela venda desta mercadoria. A situação atual é estruturalmente oposta, pois há excesso de força de trabalho disponível no mercado mundial e queda do seu preço para o capital.

Este excesso de força de trabalho é bastante funcional para o capital, já que propicia a formação de um exército industrial de reserva mundial que pressiona para baixo o preço da força de trabalho, no interesse das corporações transnacionais. Entretanto, essa situação torna também necessário “drenar” parte do “excesso de população” através da guerra de extermínio dos miseráveis, sob formas diversas como a “guerra ao terror” contra os povos do Oriente Médio, a perseguição aos imigrantes na Europa, o genocídio dos negros nas favelas do Brasil, etc. Certamente não é também coincidência o fato de que o principal mentor da “guerra ao terror” tenha sido o mesmo presidente estadunidense que tem como sua principal política educacional a pregação da abstinência sexual dos jovens e a volta do ensino do criacionismo bíblico.

A tentativa de fazer o relógio da história retroceder para uma situação pré-1968 atesta o quanto seu legado ideológico é perigoso para o capital. A lógica da reprodução capitalista se torna também esquizofrênica no plano microssocial. De um lado, é necessário reforçar o individualismo, o consumismo e o hedonismo, para manter a roda da produção destrutiva de abundância em movimento. De outro lado, é também necessário reforçar a coesão e a obediência, por meio do retorno à religião, aos valores da família tradicional, abstinência sexual, etc. A mediação entre essas duas tendências contraditórias na consciência dos indivíduos é feita por meio da comercialização de subprodutos pasteurizados da contra-cultura. A música “rebelde”, as tribos e modismos comportamentais, a pornografia, as drogas, os esportes radicais, etc., proporcionam uma ilusão de alternativa escapista aos jovens, que podem depois transformar-se em trabalhadores disciplinados, cidadãos ordeiros e repeitáveis pais de família.

O capitalismo demonstra assim sua capacidade para assimilar todos os obstáculos que se contrapõem a algum aspecto parcial da sua processualidade, desde os partidos revolucionários (que se transformaram em PCs stalinizados e reformistas) no plano da política até as iniciativas contra-culturais no plano da subjetividade. Isso demonstra também a necessidade dos revolucionários serem capazes de formular alternativas não apenas contra os aspectos parciais do capitalismo, sua lógica econômica ou sua cultura industrializada, mas contra a totalidade do modo de vida.

Daniel M. Delfino
Novembro 2008


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- Uma visão abrangente e rica em dados sobre o período em que se situa 1968 pode ser encontrada nos capítulos 9 a 12 do livro “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawm (Cia das Letras, 1998), já referido no texto.

- Uma descrição (de um ponto de vista não-marxista) das interpretações de 1968 e das polêmicas teóricas correlatas está em “Pensamento 68”, de Luc Ferry e Alain Renaut (Ed. Ensaio, 1988).

- A revista “História Viva” publicou na sua edição nº 54 um dossiê e uma didática linha do tempo contendo os fatos dos principais cenários de 1968.

- Para uma abordagem mais opinativa, a revista CULT (nº126) publicou uma série de artigos com aprofundamentos bastante pertinentes.

- Na internet, a revista “Espaço Acadêmico” (http://www.espacoacademico.com.br) publicou também um rico dossiê na edição nº 84.

19.11.08

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4. Visão panorâmica

Foi esse mundo em processo de rápidas transformações que chegou ao fim da década de 1960 apresentando vários sintomas de saturação e de ruptura iminente. 1968 foi o momento em que essas rupturas finalmente eclodiram. Passemos pois a um rápido exame dos principais fatos e seus cenários.

4.1 China

A China realizou sua revolução socialista à revelia de Moscou. Desde os anos 1930, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, o PC chinês desenvolveu uma linha de atuação autônoma, organizou um exército de base camponesa, combateu a invasão japonesa (1931-45) contando praticamente apenas com suas próprias forças, e finalmente expulsou do país a própria burguesia chinesa (1949). A burocracia soviética teve que admitir a contragosto um parceiro incômodo na liderança do bloco pós-capitalista (a China se tornou também uma potência nuclear nos anos 1950) cujo prestígio e popularidade crescia na mesma proporção em que declinava o encanto mundial com a URSS (em especial depois que o XX Congresso do Partido em 1956 expôs os crimes de Stalin).

Enquanto os intelectuais e militantes socialistas mais atentos se decepcionavam com a URSS e se afastavam dos PCs, Mao acumulava sua própria cota de crimes e arbítrios burocráticos, que permaneciam em larga medida ignorados. Mao lançou a política do Grande Salto Para Frente (1958), uma desastrada tentativa de industrializar rapidamente a China, que resultou em desorganização da economia agrícola e numa fome que matou milhões de pessoas (quando se trata da China, todo acontecimento envolve milhões). Em resposta, a burocracia do PC chinês tentou afastar Mao do poder.

Mas o Grande Timoneiro recusou-se a sair de cena e lançou sua “Revolução Cultural” em 1965, uma tentativa de recuperar o controle do Estado. O mote da Revolução Cultural maoísta era a “continuidade da luta de classes após o socialismo”, ou seja, a necessidade de eliminar os resquícios capitalistas e burgueses da sociedade socialista, que estariam convenientemente corporificados justamente nos setores adversários de Mao no próprio partido. Seu programa era a coletivização total da economia e da sociedade através de comunas, e sua base social de apoio inicial estava na juventude. Os estudantes formaram milícias de “Guardas Vermelhos” e, brandindo o “Livro Vermelho” de Mao, puseram-se a lutar contra a burocracia do partido. Sob esse pretexto, os intelectuais foram perseguidos em massa e enviados para campos de trabalhos forçados. Qualquer pessoa que usasse óculos era um alvo em potencial, e a própria cultura milenar tradicional chinesa foi reprimida e tornada clandestina.

A Revolução Cultural degenerou em guerra civil aberta, com enfrentamentos armados em várias regiões do país entre facções rivais do partido. A disputa interburocrática escapou ao controle dos burocratas e ensejou a auto-organização das bases. Esse fenômeno se manifestou com o aparecimento da “Comuna de Xangai” (1966-67). A forma característica de organização do duplo poder operário, o conselho de trabalhadores (nascido na Comuna de Paris e renascido nos soviets), ressurgiu na China, ameaçando os burocratas com a arma da auto-gestão e auto-organização. O discurso esquerdista que Mao adotou de modo oportunista materializou-se inesperadamente pelas mãos dos operários de Xangai. A Comuna transformou-se em exemplo para a China e o mundo e converteu-se num perigo para o próprio dirigente. Para controlar a situação, Mao apelou para o exército, proibiu os contatos entre as fábricas, substituiu as comunas surgidas espontaneamente por “comitês revolucionários” (órgãos do partido) e entrou em acordo com os demais burocratas para uma partilha do poder.

A Revolução Cultural durou oficialmente até a morte de Mao (1976). Apesar de todas as suas degenerações (a maioria das quais não era conhecida no ocidente), ela serviu de exemplo e pano de fundo para as mobilizações de 1968. O maoísmo internacionalizado (mais como inspiração indireta do que como corrente controlada diretamente por Mao) transformou-se numa das mais influentes forças da esquerda ocidental, ao lado dos trotskistas, guevaristas, situacionistas, anarquistas, etc., que estimulavam as massas a romperem com os PCs stalinistas e tomarem as ruas.

4.2 Vietnã

O Vietnã, parte do que era a colônia francesa da Indochina, contava com um movimento comunista organizado desde a década de 1930, com um PC estruturado e liderado por Ho Chi Mihn. Durante a II Guerra, os comunistas vietnamitas foram a vanguarda na luta para expulsar o invasor japonês. Na seqüência, teve curso a chamada “Guerra da Indochina”, para expulsar o imperialismo francês, o que foi concretizado em 1954. Como resultado, o Vietnã foi dividido, tal como a Coréia, numa metade comunista (Norte) e outra capitalista (Sul).

Imediatamente, começam as atividades da guerrilha comunista (vietcong) na metade sul, visando reunificar o país. Temendo que a queda do Vietnã do Sul capitalista precipitasse a revolução socialista no restante da Ásia (a “teoria do dominó”), os Estados Unidos intervém na região, ampliando gradativamente o seu número de “conselheiros militares” até chegar ao engajamento de mais de 500 mil soldados, no auge da guerra. Sem nenhum objetivo econômico, nem mesmo remoto, a intervenção estadunidense visava unicamente isolar o comunismo no sudeste da Ásia. A intervenção se desenvolveu ilegalmente, pois não houve uma declaração formal de guerra por parte do Congresso estadunidense. O complexo industrial-militar arriscou o prestígio do país numa aventura que acabou resultando em desastre e obteve uma derrota humilhante.

O imperialismo foi derrotado em seu objetivo político, embora o Vietnã perdesse mais de um milhão de vidas, sem contar feridos e desabrigados entre a população civil (foi despejada sobre o Vietnã uma quantidade de bombas maior do que a que foi lançada sobre a Europa inteira na II Guerra, além de armas químicas, etc.), contra pouco mais de 50 mil soldados estadunidenses mortos. A intervenção estadunidense durou de 1962 a 72 e o Vietnã do Sul finalmente caiu sob o domínio vietcong em 1975. O momento em que se tornou óbvio que os Estados Unidos não venceriam a guerra foi justamente em 1968.

Em 31 de janeiro deste ano, o vietcong lançou a “ofensiva do Tet” (ano novo do calendário lunar chinês adotado em todo o extremo oriente) sobre o Vietnã do Sul, atacando alvos estratégicos em todo o país, com direito a um ataque suicida à própria embaixada estadunidense em Saigon. A batalha pela capital estendeu-se até meados do ano. Os objetivos militares da ofensiva não foram imediatamente alcançados, mas a ousadia do ataque e a vitória moral incontestável consolidaram a virada decisiva na guerra.

A opinião pública mundial estava majoritariamente a favor do lado mais fraco (o vietcong contou também com discreto apoio material de URSS e China). A luta contra a invasão estadunidense era uma das causas que unificava mundialmente a esquerda. Em todo o mundo aconteciam manifestações contra a guerra. A Guerra do Vietnã (ou “guerra dos Estados Unidos”, do ponto de vista dos vietnamitas) foi a primeira a ser transmitida pela TV (um guerrilheiro vietcong rendido e algemado no ataque à embaixada foi executado em frente às câmeras por um general com um tiro na cabeça). As imagens brutais da guerra, do sofrimento do povo vietnamita, da desagregação do exército estadunidense (cerca de um terço dos soldados voltou viciado em drogas pesadas como cocaína, ópio e heroína) apareciam diariamente nos telejornais. Um dos momentos mais chocantes da guerra (e do século) foi o massacre da aldeia de My Lai (16 de março), em que a imagem de crianças fugindo de um bombardeio de napalm horrorizou o mundo.

Isso ajudou a criar uma forte oposição à guerra no interior mesmo dos Estados Unidos. O país ficou mais dividido do que na própria Guerra de Secessão, com protestos se multiplicando por toda parte, o que acabaria por tornar politicamente inviável a continuidade da intervenção.

4.3 França

Quando se fala de 1968, é muito comum reduzir todos os acontecimentos desse ano ao “Maio de 68” francês. Essa exclusividade é um erro, como tem se tentado demonstrar ao longo desta seção: 1968 ecoou também muito além da França. Entretanto, o privilégio dos franceses é inquestionável. Desde a época em que Paris era chamada de “a capital revolucionária do século XIX”, a França tem sido o país em que a luta de classe se manifesta da maneira mais aguda, mais transparente e mais “clássica”, servindo de parâmetro para o restante do mundo.

A Europa como um todo havia perdido peso geopolítico depois da II Guerra, em face da primazia dos Estados Unidos, erigidos em líderes incontestáveis do imperialismo no confronto com o “Império do Mal” da URSS. Mas a França continuava sendo um país rico, com instituições burguesas sólidas, orgulhosa de seu passado e de sua cultura. As concessões à classe trabalhadora haviam tornado a economia estável, embalada por um grande crescimento do consumo. O número de aparelhos de TV aumentou de 1 para 10 milhões entre 1959 e 1969. A população universitária também explodiu, passando de 100 mil para 651 mil entre 1945 e 1970 (A Era dos Extremos, p. 283 e 295).

Em meio a essa estabilidade, o PC francês, o maior do ocidente, dirigia tranqüilamente a CGT, principal confederação sindical francesa, pondo em prática uma política de acomodação e colaboração com a patronal. Juntamente com o Partido Socialista, o PCF formava a esquerda “oficial” parlamentar comprometida com a estabilidade do Estado burguês francês, então dirigido pelo general Charles De Gaulle.

Desde o fim da guerra da Argélia (1962), que suscitou mobilizações da esquerda, pouca coisa parecia indicar que o país estivesse à beira de um terremoto social. Entretanto, os movimentos tectônicos se desenvolviam em silêncio na consciência coletiva. A prosperidade burguesa e o consumismo haviam aparentemente anestesiado o proletariado, mas a apatia dos trabalhadores era falsa, como se verá. Por outro lado, o tédio e a insatisfação com o conservadorismo geral da sociedade e o autoritarismo das instituições estavam adquirindo proporções explosivas num setor social muito peculiar: a juventude. Sem ser propriamente uma classe social, a juventude constitui o período em que os indivíduos se definem politicamente e aderem à ideologia de alguma classe. Em 1968, isso significava definir-se contra a totalidade da realidade existente, ou seja, contra o capitalismo e também o socialismo “oficial” burocratizado da URSS e do PCF.

O descontentamento passou às vias de fato pela primeira vez já em fevereiro de 1968. A demissão de Henri Langlois, fundador e diretor da Cinemateca Francesa (instituição que foi o berço da revista “Cahiers du Cinema”, onde por sua vez se formaram os cineastas da “nouvelle vague”, movimento inspirador e contemporâneo de diversos “cinemas novos” pelo mundo, como o do Brasil), pelo ministro da cultura André Malraux, provocou a primeira e muito surpreendente onda de rebeliões e confrontos de rua, opondo a polícia à normalmente cordata tribo dos cinéfilos.

Nos meses de março e abril, crescem as manifestações contra a guerra do Vietnã, especialmente nas universidades. As manifestações culminam na ocupação da reitoria do campus de Nanterre (subúrbio de Paris) em 22 de março. O campus é fechado pela polícia em 2 de maio. No dia 3, é a vez da Sorbonne rebelar-se, sendo também fechada pela tropa de choque (fato inédito nos 700 anos de história da legendária universidade). As manifestações passam para as ruas do Quartier Latin, onde se erguem barricadas contra a polícia. Os manifestantes passam de centenas para milhares, depois para dezenas de milhares. Os estudantes usam os paralelepípedos do calçamento e coquetéis Molotov; a polícia cassetetes e gás lacrimogêneo. Até 10 de maio, auge dos conflitos, centenas são presos e feridos.

Os estudantes ganham o apoio de vários setores operários, de professores, servidores públicos, comerciários, bancários. Algumas centrais sindicais convocam uma greve geral de solidariedade, em 13 de maio. Nesse mesmo dia, a Sorbonne é desocupada pela polícia e imediatamente ocupada pelos estudantes. A greve geral escapa ao controle dos dirigentes sindicais, e se alastra por meio das ocupações de fábricas. Um proletariado que se julgava domesticado irrompe no primeiro plano da cena com desconcertante vitalidade.

Surge o fenômeno das “greves selvagens”, desencadeadas à revelia das instituições sindicais, às vezes expressamente contra a orientação dos dirigentes e conduzidas pelos próprios operários, pondo em pauta reivindicações radicais como a auto-gestão e lançando mão de métodos de ação direta, como as ocupações. A fábrica da Renault na cidade de Billancourt, principal distrito industrial da França, também é ocupada. Barricadas e confrontos se instalam em várias outras cidades do país. Produtos e serviços diversos começam a faltar e generalizam-se as filas e racionamentos. A TV estatal é tomada pelos jornalistas e até o festival de cinema de Cannes é interrompido.

Até o final de maio 10 milhões de trabalhadores entram em greve (de uma população de pouco mais de 40 milhões de habitantes) e o país é virtualmente paralisado. Essa foi a maior greve geral da história da França, uma das maiores em um país imperialista e serviu como demonstração de que o capitalismo não é de modo algum invencível. A esquerda oficial, stalinista e pró-patronal, estava sem ação e as massas seguiam os pequenos grupos, como os anarquistas do alemão Daniel Cohn-Bendit (líder estudantil de Nanterre), os situacionistas e as organizações trotskistas e maoístas. Os cartazes e pixações exprimiam a realidade de uma revolução em marcha: “é proibido proibir”, “a imaginação no poder”, “sejamos realistas: peçamos o impossível” e “abaixo o trabalho alienado”.

A questão da tomada do poder esteve de fato na ordem do dia. O problema é que os comunistas (o PCF) “temiam a revolução”, como denunciou Sartre. A esquerda oficial fez de tudo para impedir a união entre operários e estudantes e colaborou com o governo para por fim à greve e às ocupações. O governo e a patronal convocaram negociações com os sindicatos e fizeram concessões (o salário mínimo aumenta de 2,22 para 3 francos por hora de trabalho, a jornada de trabalho é reduzida e também a idade mínima para aposentadoria). O acordo é assinado em 27 de maio e o governo age para contornar a crise. De Gaulle demite os ministros da educação e do interior, dissolve o Parlamento, convoca eleições para o final de junho e reúne-se secretamente com generais fora de Paris para planejar uma possível invasão da cidade.

Os dirigentes sindicais ligados ao PCF defendem a aceitação dos acordos nas assembléias das fábricas, mas o movimento não reflui de imediato. As greves e ocupações prosseguem durante o mês de junho e acontecem inclusive mortes nos confrontos com a polícia. O problema é que, sem conseguir avançar na derrubada da ordem, o movimento naturalmente retrocede. As divisões, o despreparo e a falta de um projeto definido facilitam a ação da burguesia. As manifestações são proibidas durante a campanha eleitoral e Paris volta aos poucos à “normalidade”. As pequenas organizações de esquerda são dissolvidas e dezenas de estrangeiros são banidos do país, entre eles Daniel Cohn-Bendit.

As eleições parlamentares completam a vitória da direita: os menores de 21 anos (maioria dos que estiveram nas barricadas) não votavam e os operários abandonam “seus” partidos tradicionais (PCF e socialistas, que haviam abandonado e traído os trabalhadores na greve). Os setores médios, assustados por semanas de agitação e violência, temendo a “ameaça comunista”, reforçam o poder da direita. As votações terminam em 30 de junho e os partidos gaullistas obtém uma esmagadora maioria de quase 80% das cadeiras. O velho general sobreviveu ao movimento por um triz, mas renunciaria em abril de 1969.

4.4 Tchecoslováquia

A Tchecoslováquia era um dos países mais industrializados e cultos dentre aqueles que compuseram a chamada “cortina de ferro”, o conjunto de Estados tornados satélites da União Soviética ao fim da II Guerra. O regime das “democracias populares”, governos de partido único em que os PCs controlados por Moscou exerciam o poder de forma ditatorial, representava uma aberração para uma sociedade medianamente desenvolvida como a de alguns países do leste europeu. Já na Hungria em 1956 houvera um levante operário contra o stalinismo postiço que fora imposto ao país, duramente reprimido pela URSS.

Pouco mais de uma década depois, a Tchecoslováquia também faz sua tentativa de desestalinização, com a subida ao poder de Alexander Dubček, em 5 de janeiro de 1968, representando um setor do Partido Comunista disposto a fazer mudanças democratizantes no regime. A chamada “Primavera de Praga” começou como um movimento de cima para baixo, a partir da proposta de Dubček de reformar a Constituição para permitir a organização de outros partidos e reconhecer os direitos civis, a liberdade de expressão, um poder judiciário independente, etc., sem modificar o controle estatal da economia.

As propostas foram acolhidas entusiasticamente pela sociedade e pelos intelectuais, que debatiam publicamente os rumos do “socialismo com rosto humano” e pediam maior celeridade nas reformas. A esquerda internacional passou a observar com muito interesse a experiência em curso na Tchecoslováquia, pois ela parecia trazer consigo a tão esperada demonstração de que o socialismo podia e devia ser algo completamente diferente da burocracia de tipo soviético.

Entretanto, a URSS não estava disposta a permitir que experiências desse tipo se generalizassem, pois isso poderia abrir as portas para a contestação ao domínio da burocracia no seu próprio interior. Em 20 de agosto, tropas do Pacto de Varsóvia invadem a Tchecoslováquia e levam Dubček preso. O dirigente é forçado a renunciar e suas medidas são revogadas.

Mas a população tchecoslovaca não aceita passivamente a intervenção soviética. Desenvolve-se um movimento de desobediência civil, organizado a partir de uma rede improvisada de rádios clandestinas. Publica-se um “decálogo da desobediência” como resposta da população ao invasor soviético: não sei, não conheço, não direi, não tenho, não sei fazer, não darei, não posso, não irei, não ensinarei, não farei. Logo em seguida à prisão de Dubček, decreta-se uma greve geral, com iniciativas de ocupação de fábrica e auto-gestão operária que se prolongarão até o ano seguinte. Depois de enquadrado por Moscou, o PC retoma aos poucos o controle e restabelece a “normalidade” do regime burocrático.

A repressão à “Primavera de Praga” serviu para aumentar o descrédito da URSS e dos PCs que lhe seguiam, pois mostrou que a burocracia é intrinsecamente irreformável e inerentemente hostil à democracia operária e à auto-organização popular. A imagem brutal dos tanques soviéticos em Praga afastou boa parte dos jovens esquerdistas do modelo da URSS, que se mostrara afinal tão cruel e liberticida quanto o imperialismo estadunidense no Vietnã.

4.5 Estados Unidos

O macartismo dos anos 1950 havia exterminado a esquerda estadunidense, perseguindo, prendendo e banindo intelectuais e militantes. Nos anos 1960, uma nova esquerda começa a nascer ligada não mais aos sindicatos e partidos políticos, mas aos movimentos sociais. As transformações sociais do pós-guerra atingiram intensamente os Estados Unidos, elevado definitivamente à condição de principal potência econômica e militar imperialista. O “american way of life” que dava aos trabalhadores casas, carros e eletrodomésticos era vendido como modelo civilizatório para o mundo, mas deixava para trás seus descontentes no próprio país.

Entre esses descontentes, estava a metade feminina da população. O feminismo ressurgiu renovado e abalou o conservadorismo da família estadunidense tradicional. As mulheres lutavam não apenas para exercer as mesmas profissões e ocupar os mesmos espaços institucionais que os homens, mas para serem vistas como iguais em todos os aspectos, inclusive no direito ao prazer sexual. A demanda por liberdade sexual unificava os jovens de ambos os sexos nas experiências da contra-cultura (já referida na seção 3.2).

A capital mundial da contra-cultura era São Francisco, na Califórnia, que já tinha sido a sede do movimento literário “beatnik” nos anos 1950. Os escritores beatniks foram os primeiros a rejeitar o “american way of life”, pôr o pé na estrada, buscar experiências e praticar uma poesia próxima da vida concreta (ou uma vida próxima da poesia). Muitos beatniks ainda estavam ativos no surgimento do movimento hippie, que também recusava a sociedade estabelecida. Mas os hippies iam muito além da recusa, buscando uma visão positiva da vida, baseada na afirmação da sexualidade, do amor, da paz, da natureza, da consciência, da espiritualidade (pagã, cristã, budista, taoísta, hare-krishna, etc.) e da arte.

Os hippies protagonizaram o chamado “Verão do Amor”, no bairro de Haight-Ashbury, em meados de 1967. Milhares de jovens com roupas coloridas e cabelos compridos enfeitados por flores passavam o tempo em recitais de poesia e concertos de rock psicodélico, embalados por LSD e amor livre. Entre 16 e 18 de junho aconteceu o Monterey Pop Festival, o primeiro grande festival de rock, que projetou mundialmente os astros da cena hippie (Jimmy Hendrix, Janis Joplin, The Doors, Jefferson Airplane, Gratefull Dead, etc.).

Os hippies acabaram atraindo uma atenção incômoda sobre si. Eram vistos como uma espécie de circo ou atração turística, o que os levou a sair de São Francisco e espalhar-se por comunidades rurais em todo o país. As experiências dos socialistas utópicos do século XIX, que tentaram criar um novo modo de vida em comunidades isoladas, foram reeditadas em pleno século XX pelos hippies. Além dessa “vanguarda” mais radical que se engajava na experiência das comunidades alternativas, o movimento hippie se transformou também numa inspiração difusa para o comportamento e o visual de milhões de jovens. O auge e ao mesmo tempo a queda da contra-cultura seria o festival de Woodstock, entre 15 e 17 de agosto de 1969, quando quase meio milhão de jovens celebraram a paz, o amor, a música e as drogas, num momento em que o rock já havia se tornado um negócio milionário.

A recusa da sociedade pelos hippies era mútua, ou seja, o movimento também era perseguido e cercado por preconceito. Uma parcela do movimento estava consciente da posição de desafio em que se encontrava em relação à sociedade e se colocava ao lado de outros movimentos de oposição. A postura hippie não se limitava à busca individual por prazeres imediatos, pois muitos se engajaram nas marchas contra a guerra do Vietnã, nas ocupações de reitoria, etc.

Outra importante luta em curso era a dos negros pelos direitos civis, já que na maioria dos estados vigoravam leis segregacionistas idênticas às do Apartheid sul-africano. Um dos marcos dessa luta foi a marcha sobre Washington liderada pelo pastor protestante Martin Luther King em 1963, que levou 1 milhão de negros à capital do país. As leis segregacionaistas começam a cair em vários estados, fruto das mobilizações. Os negros adquirem na prática o direito ao voto, sendo nisso ajudados por militantes que se deslocam para os bairros negros e regiões pobres para registrá-los como eleitores.

O despertar da população negra, que compunha o setor mais marginalizado e precarizado do proletariado, ensejou o aparecimento de líderes mais radicais, como Malcolm X, que chegou a afirmar que “não há capitalismo sem racismo”. Malcolm X acaba assassinado em 1965. A repressão policial contra os negros recrudesce. Em resposta à repressão, forma-se a organização dos Panteras Negras, que estimula os negros a exercerem o direito constitucional de portar armas para se defender da polícia. Ao lado do “Flower power” dos hippies, os Panteras Negras inspiram o “Black power”, a afirmação da negritude como valor positivo e fonte de auto-estima.

A mobilização contra a guerra do Vietnã acaba sendo o movimento para onde convergem todas as forças sociais contestatórias. Ecoando o que acontecia na Europa, os estudantes, principalmente universitários, organizam protestos contra a guerra e ocupam as reitorias. Ao todo, três milhões de jovens estadunidenses serviram no Vietnã ao longo dos 10 anos de invasão. Muitos dos veteranos, mutilados e traumatizados, aderem aos protestos contra a guerra. Organiza-se um movimento contra o alistamento militar. O campeão mundial de boxe, Mohamed Ali, que se recusou a lutar no Vietnã, foi punido e teve seu título cassado, pois afirmou publicamente que “não fazia sentido os pobres (negros) estadunidenses matarem os pobres em outros países”. Estabelece-se a explosiva conexão entre a luta racial e a luta de classe. Nas Olimpíadas do México, em outubro de 1968, dois atletas negros estadunidenses fazem o gesto dos Panteras Negras no pódio e são banidos do esporte.

À medida em que se aproxima a campanha para as eleições presidenciais de 1968, a guerra se torna um dos principais temas. A ofensiva do Tet, em janeiro, expôs o desastre da intervenção estadunidense no Vietnã. A televisão, veículo tradicionalmente chapa-branca, ousou criticar a condução da guerra numa série de reportagens sobre a ofensiva, em fevereiro, o que “formalizou” a perda do apoio da opinião pública pelo governo. O movimento contra a guerra consegue a adesão do senador Eugene McCarthy, pré-candidato democrata às eleições presidenciais. O senador Robert Kennedy (irmão do presidente assassinado em 1963), até então vacilante, também entra na corrida presidencial e se posiciona contra a guerra. Desmoralizado, o presidente Lindon Johnson anuncia sua renúncia à tentativa de reeleição, em 31 de março, deixando para o vice-presidente Hubert. Humphrey a tarefa de continuar sua política.

A convenção do Partido Democrata para a escolha do candidato presidencial estava marcada para acontecer em agosto, em Chicago. As organizações estudantis, dentre elas a SDS (Students for a Democratic Society, espécie de “UNE estadunidense”), o movimento anti-guerra, os hippies, os panteras negras, a esquerda democrata, diversas correntes de militantes, intelectuais e artistas politicamente ativos planejam ações para convencer os delegados do partido a escolher uma chapa anti-guerra. Antes disso, porém, o país é abalado por uma série de acontecimentos dramáticos.

Em 4 de abril Martin Luther King é assassinado no Tennessee, depois de fazer um discurso em apoio aos lixeiros em greve. Imediatamente, os negros se revoltam em todo o país. Tumultos acontecem nos bairros negros em centenas de cidades. Somente em Chicago 20 quarteirões são incendiados. Sob o pretexto de reprimir o vandalismo, a polícia intervém pesadamente na repressão e dezenas de negros são mortos, centenas são feridos, milhares são presos.

Para conter a situação, o presidente assina em 11 de abril a Lei dos Direitos Civis, concedendo legalmente a igualdade aos negros. Ao mesmo tempo, a lei cria dispositivos repressivos que proíbem atravessar os estados para manifestações (com o objetivo de impedir uma nova marcha como a de 1963), dificultando os protestos. No comando da repressão estatal pontificava J. Edgar Hoover, chefe do FBI durante várias décadas, o qual organizou um programa de contra-inteligência (COINTELPRO) para enfrentar a juventude politicamente ativa. A instabilidade continua: em 5 de junho Robert Kennedy é também assassinado, baleado num hotel em Los Angeles.

A campanha eleitoral presidencial prosseguia e Richard Nixon, comprometido com a continuidade da guerra, foi indicado como candidato na convenção republicana, que aconteceu entre 5 e 8 de agosto em Miami. Também nesta cidade registraram-se confrontos entre os negros e a polícia, com mortos e presos. O clima político do país era bastante tenso. Apesar da repressão, alguns milhares de manifestantes conseguem chegar a Chicago para a convenção democrata. Sob pesado cerco policial, os manifestantes realizam comícios e protestos. Durante a semana da convenção, entre 26 e 30 de agosto, os confrontos entre manifestantes e policiais são violentos, com centenas de presos e feridos. O programa anti-guerra é derrotado e Humphrey indicado candidato.

Os enfrentamentos entre a polícia e os manifestantes anti-guerra em agosto, que ficariam conhecidos como “Chicago riots”, podem ser considerados o equivalente estadunidense ao maio parisiense. Como na França, a disputa se resolveu com a vitória eleitoral da direita: Nixon foi eleito presidente em 5 de novembro. Ao contrário da França, porém, o proletariado estadunidense praticamente não se moveu. Os estudantes, as feministas, os negros e os pacifistas foram deixados à própria sorte na luta contra os poderosos órgãos da repressão.

Nos Estados Unidos, 1968 não foi um ápice, mas o ponto de partida para um ascenso de lutas populares. As organizações de esquerda renasceram e impulsionaram mobilizações importantes durante os anos seguintes. O movimento contra a guerra prosseguiu, colaborando para obter a saída dos Estados Unidos do Vietnã em 1972. O governo concedeu cotas para os negros e mulheres nos órgãos públicos e no ensino, obtendo com isso uma relativa pacificação destes setores.

A década de 1970 seria pródiga em lutas sociais que obtiveram avanços democratizantes, como as leis votadas em vários estados para a suspensão da pena de morte, a legalização do aborto, e a descriminalização do uso de maconha.

Daniel M. Delfino
Novembro 2008

18.11.08

1968, o ano vermelho - Parte 1 de 3

1. Introdução

Quando recordamos o ano de 1968, o que mais se destaca é a impressionante diversidade dos acontecimentos e sua escala global de abrangência. Poucas vezes na história da humanidade os sistemas de dominação foram sacudidos por processos de luta de massa com tamanha riqueza e de forma tão simultânea e ubíqua. Desde os países imperialistas até as ditaduras do 3º Mundo, passando pelos satélites do bloco soviético, o sopro de contestação percorreu os mais variados contextos nacionais e desafiou a totalidade das formas de alienação.

1968 pode ser considerado um marco histórico, tal como a Primavera dos Povos de 1848 na Europa e o Outubro Vermelho de 1917, com a onda de entusiasmo que a ele se seguiu. Em relação a esses dois momentos tão especiais, 1968 revelou uma variedade ainda maior de possibilidades utópicas e radicais, de propostas teóricas, de experiências práticas, de perspectivas programáticas e de horizontes de emancipação, ainda que no curto prazo os seus resultados imediatos tenham parecido insignificantes.

No interior da narrativa histórica hoje predominante, estruturada a serviço da ideologia burguesa e constituída pelas idéias de “fim da história”, “morte do homem”, “derrota do socialismo”, “inviabilidade da revolução”, “inevitabilidade do capitalismo”, etc., os acontecimentos de 1968 são apresentados como uma mera onda febril de “agitações” localizadas principalmente no universo estudantil e da “juventude”, uma espécie de adolescência coletiva efervescente depois da qual as massas retornaram devidamente “amadurecidas” à “sensatez” e à “racionalidade”, ou seja, à obediência das formas fetichizadas e burocratizadas da reprodução social submetida à lógica do capital.

O que se propõe aqui é demonstrar o quanto essa leitura empobrecedora tem de equívoco. Resgatar o ano de 1968 significa evocar o velho espectro da luta de classes, que emergiu plenamente consciente de si no célebre Manifesto que inaugurou a Primavera de 1848; que lançou seu desafio no assalto direto ao poder em 1917; e que está sempre à espreita para perturbar o sono dos apologistas da ordem, renovando-se permanentemente para indicar à humanidade os caminhos para formas de vida verdadeiramente humanas, autênticas e livres.

O resgate de 1968 deve começar pelo exame do contexto da Guerra Fria, passar pela referência de fundo às transformações sociais das décadas do pós-guerra, para só então percorrer, numa breve visão panorâmica, o rico caudal revolucionário daquele ano vermelho, terminando por uma sistematização das implicações teóricas e lições que foram tiradas do movimento, à guisa de conclusão.

2. A Guerra Fria

A Guerra Fria foi um acordo entre o imperialismo e a burocracia soviética para evitar a eclosão de novas revoluções socialistas. O stalinismo passou da teoria do “socialismo em um só país”, consolidada já nos anos 1930 com o expurgo dos últimos revolucionários na URSS, para a prática da “coexistência pacífica” com o imperialismo no pós-guerra. Os acordos de Terã, Ialta e Potsdam, que dividiram o mundo em áreas de influência, consolidaram a renúncia da burocracia à tentativa de subverter a ordem capitalista mundial. Para que isso fosse aceito no interior do movimento socialista, a burocracia desenvolveu o discurso de que a superioridade do socialismo seria demonstrada “naturalmente” por meio da abundância material, quando a URSS produzisse mais ferro e carvão do que os Estados Unidos. Assim, o mundo inteiro seguiria Moscou, o farol dos povos, e se tornaria “gradativamente” socialista, sem a necessidade de novas revoluções e lutas pelo poder.

A conclusão prática desse discurso estava na política dos Partidos Comunistas (PCs) nos países imperialistas e na periferia. Os PCs stalinistas renunciaram à estratégia da revolução socialista e se adaptaram ao capitalismo, tal como os partidos socialistas da II Internacional haviam feito já desde antes da I Guerra. Tanto socialistas quanto comunistas adaptaram-se à democracia burguesa, passaram a disputar eleições, dedicaram-se a melhorias limitadas no interior do capitalismo e domesticaram os sindicatos para colaborar na administração do sistema, ao invés de organizar os trabalhadores para abolir a sociedade existente.

Na periferia, os PCs adotaram a estratégia de coligação com os “setores progressistas” das burguesias nacionais para realizar as tarefas democráticas pendentes da revolução burguesa nesses países, prometendo para um indefinido porvir (que na prática nunca vinha) a revolução socialista.

O problema desse acordo geral é que faltou combinar com o adversário: a revolução continuou sendo uma necessidade dos trabalhadores e dos povos oprimidos. A decomposição dos antigos impérios coloniais europeus na África e Ásia nas décadas de 1950 e 60, bem como os movimentos e governos nacionalistas na América Latina, que ensaiavam passos na direção de uma autonomia real perante o imperialismo, colocaram em cena grandes movimentos de massa, mobilizações operárias, camponesas e estudantis, vanguardas organizadas e guerrilhas que inevitavelmente se chocavam de forma aberta contra a ordem.

Tudo isso acontecia num cenário marcado por uma série de transformações sociais e culturais de proporções cataclísmicas, as quais serão discutidas logo a seguir, e que atingiram também os países imperialistas e os Estados da órbita soviética, o que dificultou sobremaneira a administração e o controle que os operadores do sistema esperavam conseguir sobre esses processos. Foi desse lapso de controle que nasceram os movimentos de 1968.

3. As transformações sociais

3.1 Fim da Idade Média

A dimensão das transformações sociais globais de meados do século XX pode ser aquilatada por meio de uma contundente afirmação do historiador Eric Hobsbawm: “Para 80% da humanidade, a Idade Média acabou de repente em meados da década de 1950; ou melhor, sentiu-se que ela acabou na década de 1960” (A Era dos Extremos, p. 283). A História mundial sempre transcorreu em ritmos desiguais (e combinados), com várias sociedades se desenvolvendo mais rápida e intensamente que as outras. No século XX, esses ritmos se aceleraram e se homogeneizaram.

A imensa maioria da humanidade, nos continentes da Ásia, da África e em certos rincões e sertões da América Latina, até então vegetava em modos de vida que remontavam praticamente aos tempos bíblicos. Subitamente, no espaço de tempo de uma ou duas gerações, esses povos descobriram-se arremessados no mundo da revolução industrial, da produção em massa, da economia global, das grandes metrópoles, da cultura letrada, dos motores de combustão, das armas de fogo, dos meios de comunicação eletro-eletrônicos, do Estado nacional e suas instituições burocráticas. Aquilo que a Europa e os Estados Unidos levaram dois séculos para construir e assimilar tornou-se realidade em poucas décadas para o restante do mundo.

A população mundial dobrou entre 1950 e 1990 (de 3 para 6 bilhões). Na Europa e Estados Unidos, a explosão demográfica do pós-guerra recebeu o nome de “baby boom”. A população global não apenas explodiu em números absolutos, mas concentrou-se nos meios urbanos com impressionante velocidade. O processo acaba de se completar neste início de século XXI, com a industrialização da China e da Índia, quando, pela primeira vez na História, a população urbana global tornou-se maior que a rural. Em meados do século XX, precisamente na década de 1960, a tendência irrefreável em direção a essa inversão histórica já se tornava nitidamente visível por meio da proliferação de dezenas de metrópoles com vários milhões de habitantes, que se multiplicaram por toda a periferia global (São Paulo, México, Xangai, Bombaim, Cairo, Jacarta, etc.) e se tornaram o padrão das sociedades modernas.

O século XX foi um dos mais belicosos e assassinos da história e registrou também seus surtos de epidemias, fomes, catástrofes naturais, etc. Mesmo assim, a expectativa de vida média aumentou exponencialmente, graças à generalização (mesmo que limitada) dos avanços da medicina e da higiene e ao aumento expressivo da produtividade agrícola. A queda da mortalidade, especialmente da mortalidade infantil, mais do que o aumento da natalidade, é o que explica a explosão demográfica do século XX.

Apesar da diminuição brutal e constante da população camponesa, a produção mundial de grãos quase duplicou entre 1950 e 1980, devido à generalização do uso de fertilizantes, pesticidas e maquinário. A população camponesa emigrou em massa para as metrópoles e lá encontrou uma economia industrial cuja produtividade aumentava também de modo vertiginoso e propiciava já a formação de um gigantesco setor de serviços. A classe operária industrial manteve aproximadamente a mesma proporção em relação à população total, mas a produção mundial de manufaturas quadruplicou entre o início da década de 1950 e o início da década de 1970.

De modo muitíssimo acelerado, o mundo se tornou portanto mais populoso, mais urbano e mais produtivo. A abundância material tornou-se uma realidade para parcelas nada desprezíveis da população, embora largos contingentes permanecessem atolados na miséria das favelas que cresciam incontrolavelmente no entorno das metrópoles. O mundo se tornou também mais interligado: o comércio mundial de manufaturados aumentou dez vezes.

Tornou-se ainda “mais feminino”: em 1980, mais da metade das mulheres trabalhava fora de casa nos Estados Unidos, contra 14% em 1940. A invenção da pílula anti-concepcional, que permitiu às mulheres controlar a reprodução, coincidiu com a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho, tanto na indústria como no setor de serviços, com diferentes proporções entre os países imperialistas e a periferia. A saída parcial das mulheres da escravidão doméstica ensejou a sua mobilização e organização política. O reaparecimento do feminismo interrompeu a predominância milenar do patriarcado e produziu a crise da família nuclear burguesa, embora a emancipação total das mulheres ainda esteja longe de ser uma realidade.

Finalmente, o mundo tornou-se mais alfabetizado e mais culto. A população universitária, antes uma elite minúscula, demograficamente insignificante, passou de 0,1 % antes da II Guerra para 2,5 % no final da década de 1980, um crescimento de 25 vezes! Também em 1980, metade dos estudantes universitários nos países mais avançados já eram mulheres (os dados apresentados nesta seção também são todos do livro “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawm).

3.2 Cultura e Contra-cultura

Não houve crise econômica em 1968. Pelo contrário, o capitalismo nos países imperialistas vivia naquele momento o período que os historiadores consideram os seus “anos dourados”. As guerras mundiais, a Grande Depressão que se seguiu à crise de 1929, e, principalmente, a Revolução Russa, haviam demonstrado cabalmente aos gestores do sistema a impossibilidade de se manter o capitalismo operando nos moldes do liberalismo típico do século XIX e a necessidade de reformas que aperfeiçoassem seu funcionamento. No pós-guerra, o Estado realizou reformas para salvar o sistema, assumindo o papel de regulador da economia e fazendo importantes concessões à classe trabalhadora (aumento de salário, redução da jornada, previdência, investimentos pesados em serviços públicos) para evitar a eclosão de novas revoluções. As reformas conseguiram estabilizar o sistema durante os anos 1950 e 60 (até que no início dos anos 1970 o efeito estabilizador se esgotou e as crises retornaram) usando toda a margem de manobras disponível num período de crescimento.

O aumento da produtividade (queda do valor unitário das mercadorias), combinado ao aumento dos salários, permitiram a milhões de trabalhadores estadunidenses e europeus adquirirem bens de consumo duráveis que nas décadas anteriores estariam restritos à burguesia. Casas, carros, eletrodomésticos, viagens turísticas e produtos culturais se tornaram ítens de consumo de massa nos países imperialistas (na periferia essa massificação foi um pouco posterior, mais lenta e limitada). Entre outras conquistas, os filhos do proletariado também tiveram acesso ao ensino superior. A geração nascida no “baby boom” do pós-guerra adentrou à universidade em meados da década de 1960. As ciências humanas estavam “na moda”. Filosofia, sociologia, história, psicologia, antropologia e ciência política eram cursos bastante procurados.

Autores antes “proibidos” podiam agora ser estudados na academia. Marx, Lukács, Gramsci e toda a Escola de Frankfurt foram descobertos (ou redescobertos, reinterpretados, reinventados, adaptados e enriquecidos) e alcançaram grande popularidade nos meios estudantis. Intelectuais idolatrados como Sartre realizaram aproximações fecundas com o marxismo e se engajaram nas causas políticas mais palpitantes da época. Autores malditos como Reich ressurgiram das cinzas. Os mais ousados e inovadores, como Debord, provaram ser os que estavam melhor sintonizados com o espírito do tempo. Revolucionários “marginais” como Trotsky e Rosa Luxemburgo voltaram a ter audiência, a ponto de seus seguidores poderem desafiar o monopólio do stalinismo na esquerda, ao lado de inspirações contemporâneas vindas do 3º Mundo (em especial, da China e de Cuba).

Parte da juventude que estava nas universidades sendo preparada para ocupar postos de direção nas corporações e na burocracia do Estado recusou-se a aceitar o papel que lhe estava destinado e passou a questionar o sistema. Os universitários insatisfeitos recusavam-se a ser gestores do capital, pois aspiravam a ser gestores de suas próprias vidas.

O despertar da juventude se dava por meio da descoberta de um marxismo reinventado e da experiência concreta do momento histórico: a descolonização da Ásia e da África, as guerrilhas da América Latina, o movimento de imensas e diversas populações da periferia global com suas culturas peculiares, a luta das mulheres contra o patriarcado, a luta de minorias como os negros nos Estados Unidos, a decepção com o socialismo burocratizado da URSS; todos esses fatores agiram como influências simultâneas que convergiram para o que foi chamado de “a grande recusa”. A sociedade burguesa, industrial, tecnocrática, ocidental, branca, cristã e patriarcal era recusada como um todo.

Assim como a autoridade do patrão sobre os trabalhadores é contestada pelo movimento socialista “tradicional”, os movimentos dos anos 1960 passaram a contestar também a autoridade dos civilizados sobre os primitivos, dos cristãos sobre os pagãos, dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, dos professores sobre os alunos, dos moralistas sobre os corpos. A família, a moral tradicional e “os bons costumes” foram questionados. A própria Igreja Católica tentou adaptar-se ao contexto do século XX realizando algumas reformas internas (por meio do Concílio Vaticano II, de 1962 a 65) que acabaram permitindo o surgimento de uma teologia da libertação.

Instaurou-se o conflito de gerações. Os cortes de cabelo e o vestuário dos jovens indicavam sua escolha por uma vida diferente daquela de seus pais. Os rebeldes se tornaram ídolos de massa. Os artistas mais populares, em especial os músicos de rock, passaram a refletir em suas letras e em suas atitudes as escolhas dessa geração. A cultura de massa, a televisão, o cinema, as histórias em quadrinhos, a ficção científica, a corrida espacial, haviam de certo modo preparado a ruptura com a cultura burguesa anterior. Essa ruptura seria completada pelos artistas da contra-cultura.

As drogas foram experimentadas em profusão. Difundiram-se o amor livre e os relacionamentos abertos. Buscava-se uma revolução na vida cotidiana, nas relações interpessoais, que em alguns casos se colocava também contra as estruturas da política e da economia. A biopolítica, a luta para libertar os indivíduos das coerções sexuais, comportamentais, psicológicas, etc., estava momentaneamente em sintonia com a “grande política” da luta pelo poder (ou contra o poder). A busca de um modo de vida autêntico engrossou uma série de movimentos contestatórios e atitudes inclusive opostas entre si, como a guerrilha e o pacifismo, passando pelo misticismo, comunalismo, ambientalismo, utopismo, anarquismo, espontaneísmo, hedonismo, psicodelismo.

A sede de experiências não era diretamente motivada por razões econômicas. A insatisfação era mais profunda e mais total. A sensação de que havia algo muito errado no mundo era ao mesmo tempo difusa e palpável, não mensurável, mas inescapável. A contra-cultura expressava a luta por uma intersubjetividade verdadeira e autêntica, numa sociedade que a abundância material havia aprisionado no tédio e na artificialidade do consumismo. A abundância e o consumismo eram as derradeiras armas do sistema para conter as massas, nas sociedades mais avançadas. Isso não significa que o sistema tivesse dispensado suas armas mais primitivas, ou seja, a violência e a guerra, que continuaram grassando.

3.3 As guerras quentes

A visão dos anos intermediários do século XX como um período de “Guerra Fria” entre URSS e Estados Unidos mistifica a ocorrência de uma série de “guerras quentes” na periferia do sistema. A decomposição dos impérios coloniais não foi um processo pacífico. A Argélia sustentou uma duríssima guerra contra o colonizador francês até obter sua independência em 1962. Angola e Moçambique também passaram por prolongadas lutas de guerrilha para se libertar do senil império português.

A burocracia soviética cumpriu sua parte no acordo, ou seja, sabotou por meio dos PCs o desenvolvimento da revolução socialista na periferia. Onde a revolução se tornou irrefreável, como em Cuba (1959), a repressão foi exercida diretamente pelo imperialismo. Os Estados Unidos, líderes do “mundo livre”, fomentaram golpes de Estado e ditaduras assassinas onde quer que os interesses de suas corporações estivessem ameaçados e onde os dirigentes locais se mostrassem demasiado débeis para conter as massas.

Intervenções desse tipo se verificaram no Irã em 1953, na Guatemala em 1954, em Cuba em 1961, no Brasil em 1964, na Indonésia em 1965 (algo em torno de 1 milhão de comunistas foram mortos), no Chile em 1973. Destas intervenções, apenas a de Cuba foi derrotada (sem mencionar as guerras da Coréia e do Vietnã). Logo em seguida, quando Cuba alinhou-se à esfera soviética, ocorreu a crise dos mísseis, ocasião em que os mais afoitos temeram que o mundo estivesse à beira de um holocausto nuclear. Os Estados Unidos concordaram em não invadir Cuba e a URSS reafirmou seu compromisso de não fomentar novas revoluções. Um dos líderes do movimento revolucionário cubano, o indômito Che Guevara, ignorou esse acordo e insistiu em levar a revolução para além de Cuba, primeiro no Congo e depois na Bolívia, onde morreu em 1967.

A moral inatacável de Che e sua dedicação à causa o tornaram um mártir da revolução, uma inspiração para seus contemporâneos e para gerações de militantes que se seguiram. Sua imagem é uma das mais marcantes do século e se tornou inclusive objeto de comércio. Em 1968, Che esteve presente em todas as barricadas, ao lado de Marx, Lênin, Mao e Ho Chi Mihn.

Daniel M. Delfino
Novembro 2008