5.12.07

Entrevista: a ocupação da USP, o movimento estudantil e a situação brasileira


Entrevista: a ocupação da USP, o movimento estudantil e a situação brasileira


(Entrevista concedida a Mauricio Gomes Angelo, do site "Crimidéia- http://crimideia.wordpress.com/)

- Quais os antecedentes históricos da ocupação da USP realizada este ano?

Os antecedentes mais gerais do movimento que teve seu foco na ocupação da reitoria da USP estão na política geral de sucateamento do ensino público em curso no Brasil. As Universidades públicas estão sendo asfixiadas por cortes de verbas que impossibilitam a contratação de professores e servidores, submetem esses profissionais ao arrocho salarial, precarizam as condições de moradia e assistência estudantil, rebaixam as próprias condições de ensino, pesquisa e extensão da universidade, seus laboratórios, bibliotecas, etc. Ao mesmo tempo, os empresários da educação estão sendo premiados com a compra de vagas ociosas na rede privada com dinheiro público por meio de programas de “inclusão social” como o PROUNI. Esse conjunto de medidas configura uma concepção de educação e de serviços públicos em geral em que o “mercado” deve ser a instância capaz de atender às necessidades da sociedade, ao passo em que o Estado se omite de sua tarefa de, através das Universidades, projetar estrategicamente o futuro da sociedade, sua infra-estrutura científica e tecnológica, sua formação cultural, a capacidade crítica de seus cidadãos, etc.
Esse processo geral de sucateamento da educação pública está em curso no Brasil há mais de uma década e as universidades estaduais paulistas não são exceção a ele. O movimento estudantil já estava atento a essas medidas e tentava combatê-lo. A última grande greve na USP aconteceu em 2002 reivindicando justamente a contratação de professores para repor as vagas daqueles que se aposentavam.
O antecedente imediato que detonou o movimento em 2007 foram os decretos do governador José Serra, que retiravam a autonomia administrativa das universidades estaduais paulistas (USP, UNICAMP, UNESP, FATECs), subordinando-as a uma secretaria recém-criada destinada a apertar ainda mais seu orçamento. A movimentação dos estudantes contra a implantação desses decretos foi o que gerou a greve dos três setores (estudantes, funcionários e professores) e a ocupação da reitoria.

- Na visão de alguém que esteve envolvido diretamente no ocorrido, como os estudantes se organizaram para fazer suas reinvidicações? A direção da universidade foi flexível e aberta para a negociação?

O processo de organização tradicional são as assembléias por curso, por unidade e a assembléia geral dos estudantes. As assembléias votam uma pauta de reivindicações e elegem uma comissão de negociação encarregada de discutir com as autoridades. A reitora da USP, entretanto, se recusou a receber a comissão eleita pelos estudantes.
Uma vez que a direção máxima da USP se recusou a defender a universidade contra os ataques do governo, os estudantes legitimamente tomaram essa defesa nas próprias mãos e ocuparam a reitoria. A reitora “fugiu” da USP e um número significativo de estudantes permaneceu acampado no prédio da administração por 51 dias. A partir da ocupação, desencadeou-se a greve dos estudantes, professores e funcionários. O governo ameaçou usar a tropa de choque para desocupar a reitoria pela força, mas os estudantes decidiram ficar. A tropa de choque permaneceu fora do campus, e a partir daí o movimento se fortaleceu. A reitora foi forçada a negociar a pauta dos estudantes para encontrar uma saída para o impasse.

- O que ocorria nas assembléias? Foi algo organizado e uno no sentido de uma direção comum das diversas partes envolvidas ou houveram focos de discordância, pelegos e interesses escusos reunidos?

No auge do movimento as assembléias eram massivas e representativas. Havia sempre algo em torno de 2 ou 3 mil estudantes, sendo que o segmento mais numeroso era composto pelos estudantes de ciências humanas. A direção “oficial” das atividades caberia ao DCE (Diretório Central dos Estudantes), entidade hierarquicamente superior aos Centros Acadêmicos de cada curso. Entretanto, os partidos políticos que dirigem o DCE (PT, PCdoB e MR8-PMDB) estavam contra a luta e tentavam encaminhar propostas contrárias à greve e à ocupação. Acabaram portanto sendo desconhecidos pelo conjunto dos estudantes, que deu continuidade ao movimento à revelia de sua direção oficial. Os “dirigentes” foram praticamente expulsos das assembéias.
O movimento dos estudantes da USP se estruturou de forma “clandestina”. Na ausência do DCE e dos CAs, os estudantes na ocupação se organizaram em comissões encarregadas de tarefas específicas (segurança, limpeza, alimentação, comunicação, etc), descentralizadas, horizontais, autônomas e auto-geridas. A ausência de uma liderança oficial dificultou o trabalho da repressão. Por outro lado, esse modelo de organização foi resultado de uma improvisação e se manteve sempre funcionando de maneira problemática.
Ao longo do processo, identificaram-se diversas divergências táticas e estratégicas entre os representantes de diferentes linhas políticas nele envolvidos. Havia as linhas particulares dos diferentes agrupamentos políticos engajados na ocupação e na greve, como PSOL, PSTU, PCO, LER, etc., e a linha dos estudantes “independentes”, não ligados a nenhum partido, os anarquistas, etc. Esse segmento independente teve bastante peso nas atividades do movimento e da ocupação em particular, mas muitas vezes desconhecia resoluções de assembléia, descumpria tarefas, descuidava das atividades, esvaziava as comissões, etc. A continuidade da greve e da ocupação em cada assembléia era a resultante do debate entre essas correntes. E o debate nem sempre era cordial, mas pelo contrário, expunha disputas que iam além da divergência política e resvalavam na rivalidade física entre as diversas correntes (vício recorrente da esquerda brasileira). No final do movimento, cada organização acusava a outra de haver errado na condução da luta, de haver feito reivindicações irreais, de haver recuado quando ainda não era a hora, de haver traído, etc.

- O que você identifica como os principais problemas encontrados durante o episódio e quais frutos ele gerou? Foi válido, num todo?

O principal problema do movimento é a despolitização geral e a falta de participação do conjunto dos estudantes. Nem todos os cursos da USP aderiram à greve e nem todos apoiavam a ocupação. O setor engajado no movimento foi sempre minoritário. A diferença em relação aos anos anteriores é que essa minoria constituía uma massa suficientemente grande para dar vida ao movimento. Faltou porém capacidade de articulação política das lideranças estudantis entre si e de maior integração com o conjunto dos estudantes.
Apesar de todas essas debilidades, o movimento teve força suficiente para fazer o governador recuar. Os decretos foram “reinterpretados” e acabaram não sendo plenamente implantados. Nesse sentido, o movimento obteve uma vitória extraordinária. A pauta de reivindicações não foi atendida no seu conjunto e ficaram várias questões pendentes, mas no geral os estudantes saíram fortalecidos.
O saldo mais importante do movimento foi o exemplo organizativo legado aos estudantes de outras universidades. A “moda” da ocupação de reitorias se espalhou pelas universidades do país naquele período e desencadeou uma série de processos de luta direta como há muito tempo não se via. Esse processo teve reflexos tardios que se prolongaram até recentemente, com episódios semelhantes na Fundação Santo André (entre setembro e outubro) e na PUC (agora em novembro). O movimento estudantil saiu nacionalmente fortalecido e rompeu a estagnação em que a UNE o havia deixado. Nesse sentido, o saldo foi extremamente positivo.

- Como você analisa a cobertura da mídia sobre o processo? Ela foi isenta?

A mídia exercitou uma aparência de imparcialidade, pois chegou a mostrar a justeza de algumas das reivindicações dos estudantes e criticar a ameaça de Serra de usar a tropa de choque no campus, coisa que aconteceu pela última vez na época da ditadura militar (1968). Essa tentativa de parecer imparcial se justifica também pelo fato de que a maioria dos estudantes da USP (e especificamente os que permaneciam na ocupação) ser de extração social pequeno-burguesa e burguesa, camadas que constituem também o público consumidor dos grandes jornais e revistas (os trabalhadores que freqüentam a USP, no geral uma minoria e geralmente em cursos noturnos, por mais que desejassem apoiar e participar do movimento, evidentemente não podiam ficar acampados na reitoria, nem infelizmente participar de assembléias prolixas que se arrastavam meia-noite adentro).
Em função dessa extração social, os estudantes não podiam ser atacados diretamente. Tinham que ser desgastados indiretamente. Foram expostos como “rebeldes sem causa”, nostálgicos de uma época que não viveram, “revolucionários de araque”, pálidos reflexos de 1968, etc. As debilidades, incoerências, inexperiência, das organizações de esquerda foram fartamente ridicularizadas pelos articulistas de direita.
O que a mídia jamais aceitou porém foi o método de luta. A via da luta direta (ocupação) era tratada como atividade criminosa, na mesma linha com a qual se condenam as ações dos sem-terra ou sem-teto. O respeito à propriedade é o valor fundamental que pauta a mídia. Toda ação com conteúdo de transgressão, invasão, ocupação, expropriação, precisa ser devidamente demonizada, descaracterizada e combatida. Mesmo que esse método tenha sido o único que restou.

- Você considera que o movimento estudantil no Brasil ainda é forte e atuante? Se sim, quais as principais frentes de luta hoje em dia? E, se não, o que ele perdeu ao longo do tempo e quais seriam alguns dos caminhos para se reestruturar?

O movimento estudantil foi fortíssimo nos anos 1960 (até ser reprimido pela ditadura) e 1980 (colaborando para o fim da ditadura) e atualmente vive uma fase embrionária de retomada, cujo principal marco foram os acontecimentos da USP em 2007. A ocupação da reitoria durou 51 dias e acabou se constituindo no principal foco de atenção; mas no geral o movimento era muito mais amplo e mais rico do que o fato de que um grupo de estudantes permaneceu acampado na reitoria. Esse movimento se constituiu de assembléias massivas, de piquetes diários para garantir a greve e a paralisação das aulas, de atividades de greve, como palestras, debates, apresentações culturais; e de atividades exteriores à universidade, como as passeatas. Tudo isso consumiu o esforço de uma ampla camada de ativistas, cada um com maior ou menor grau de engajamento.
Esses ativistas, muitos dos quais recém-despertaram para a luta política, estão defrontados com a duríssima tarefa de enfrentar os ataques à educação superior, que prosseguem. Depois do PROUNI, é a vez do REUNI, que generaliza para o conjunto das universidades federais uma série de medidas de arrocho financeiro e perda de autonomia semelhantes àquelas que desabaram sobre a USP. Para fazer frente a esse processo de sucateamento o movimento carece de uma urgente reestruturação, que passa pela superação das direções tradicionais (como a UNE, que repete no plano nacional a postura fatídica do malfadado DCE da USP).
A superação dessa direção é uma tarefa para a qual será decisiva a atuação da vanguarda organizada. No interior da camada mais ampla de ativistas localizam-se os militantes das correntes políticas, que são geralmente os dirigentes dos CAs de cada curso. Caberia a esse núcleo militante a tarefa de integrar o conjunto dos estudantes ao movimento. Essa tarefa deveria ser uma prática cotidiana dos militantes e das entidades estudantis, mas já não é realizada há muito tempo. Desse modo, as entidades e as correntes políticas que nelas atuam acabam aparecendo apenas na época das greves (nas universidades públicas a greve praticamente faz parte do currículo) e das eleições dos dirigentes.
A quase inoperância prática das entidades estudantis é um reflexo das debilidades acumuladas das organizações da esquerda. De modo geral, as organizações se perdem em discussões bizantinas nos conventículos “revolucionários” e não desenvolvem trabalho de base, não dialogam com a massa dos estudantes na sala de aula, expressam-se numa linguagem à parte, desconhecem as questões cotidianas dos cursos. As mediações pelas quais as questões imediatas poderiam ser relacionadas às questões gerais das universidades e da sociedade são ignoradas e com isso se perde a possibilidade de mobilizar um número maior de estudantes. As entidades estudantis aparecem já com uma pauta pronta, que parece estranha à massa dos estudantes, que por não se setirem representados por aquele discurso, afastam-se do movimento.
De modo geral, é saudável que existam diversas posições diferentes contribuindo na construção do movimento. O problema é que boa parte das organizações da esquerda está mais preocupada em impor sua própria linha política do que em fortalecer o movimento no seu conjunto. As propostas das diferentes organizações são apresentadas e defendidas pelos respectivos militantes como se sua aprovação fosse questão de vida ou morte, mesmo quando tais propostas nem sequer manifestam diferenças substanciais, como acontece muitas vezes. O que importa para cada organização é aparecer mais que a outra e fazer uso do microfone mais vezes nas assembléias. Consolidou-se assim no senso comum da maioria dos estudantes uma certa consciência “anti-partido”, hostil às organizações políticas, materializada no segmento dos estudantes “independentes”. De acordo com essa forma de consciência, toda e qualquer organização política ou partido somente se forma em função de interesses escusos e como tal precisa ser combatida.
A reestruturação do movimento estudantil exigirá portanto uma revolução metodológica na atuação dos militantes e dirigentes das entidades, de modo a readquirir a confiança das bases, superar o pensamento anti-partido e incorporar a massa mais ampla dos estudantes ao movimento.

- Numa abertura mais ampla, enxerga a sociedade brasileira cônscia de seus problemas, empenhada no debate político e preparada para efetuar uma mudança no processo histórico? O que se anuncia no horizonte e, neste momento ímpar da história nacional - onde as forças políticas se aglutinam praticamente numa única via - como a luta de classes atua e qual o nosso papel nisto tudo?

Numa visão mais ampla a sociedade está num compasso de espera, mas com sombras de inquietação. Cada classe e setor de classe vê as coisas de uma maneira e reage de modo particular. A burguesia segue faturando alto no governo Lula, especialmente os segmentos dos banqueiros e do agronegócio. Entretanto, os partidos tradicionais da direita procedem uma tentativa de “despetização” do Estado, tentando arrancar os neopelegos do PT das sinecuras onde foram alojados por Lula, através dos escândalos de corrupção sistematicamente jogados ao ventilador. Enquanto isso, no dia a dia das lutas sociais, a repressão se abate sobre os ativistas da classe trabalhadora, com mortes, criminalização, prisões, perseguição, demissões. Os diversos segmentos da classe trabalhadora mostram-se ainda incapazes de uma ação coordenada contra essa ofensiva da burguesia.
Parte dos setores organizados da classe trabalhadora, como servidores públicos, professores, metalúrgicos, bancários, que (junto com a pequena-burguesia e a intelectualidade) constituíam a sustentação eleitoral e política do PT, desmobilizaram-se ao longo do governo Lula, seja por decepção com os rumos que foram tomados e desencanto com a luta; seja por adesão ao projeto de administração “em fogo brando” do capitalismo periférico brasileiro e suas misérias. Um dos métodos de administração consiste justamente na cooptação dos setores desorganizados da classe, os pobres da cidade e do campo, que via bolsa-esmola, tornam-se materialmente dependentes e ideologicamente anestesiados pelo assistencialismo, portanto incapazes de reagir e lutar contra a miséria em que estacionaram.
Por outro lado, parte dos setores organizados partiu para a luta. E na luta, defrontaram-se exatamente com o PT como seu maior obstáculo. As entidades “oficiais” do movimento sindical e popular (CUT, UNE, MST, pastorais sociais da Igreja) são dirigidas por integrantes do PT e estão mais preocupadas em defender o governo Lula do que em encaminhar de fato lutas de interesse da classe trabalhadora (pois essas lutas necessariamente teriam que se chocar contra Lula). Nesse caso, as lutas (das quais o movimento dos estudantes da USP é um reflexo) tiveram que ser encaminhadas por entidades paralelas, improvisadas, “clandestinas” ou ainda embrionárias, como a Conlutas (Coordenação Nacional de Lutas).
Essa reorganização embrionária da classe trabalhadora é ainda incipiente diante da imensa tarefa de enfrentar aquele projeto de gestão do capitalismo periférico, sustentado por um amplo e coeso bloco de forças sociais (bloco que além da burguesia, seus partidos, seus gerentes de plantão no governo Lula e no PT, conta com o apoio maciço da grande mídia). Entretanto dada a própria natureza desse capitalismo periférico, a sua gestão tende a se tornar extremamente problemática, tão logo se esgote o atual ciclo periódico de expansão da economia capitalista mundial (ciclo cujo início coincide com o do próprio governo Lula) e tenha início o próximo ciclo de recessão. Nesse momento, os ataques da burguesia e do governo deixarão de ser levados “em fogo brando” e serão desencadeados celeremente com toda sua virulência.
A tarefa que se coloca para enfrentar esses ataques é fortalecer as novas instâncias paralelas, improvisadas e embrionárias de articulação da classe trabalhadora, agregar a elas os setores ainda dispersos e confusos da classe, furar o bloqueio da mídia, do senso comum, das direções neopelegas e difundir o mais amplamente possível a consciência da necessidade de se organizar e lutar.


Daniel M. Delfino
Dezembro 2007







22.11.07

O Bope e a (in)“consciência social”

(Comentário sobre o filme “Tropa de elite”)



Nome Original: Tropa de elite
Produção: Brasil
Ano: 2007
Idiomas: Português
Diretor: José Padilha
Roteiro: Bráulio Mantovani e José Padilha
Elenco: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro, Fábio Lago, Milhem Cortaz, Fernanda Machado
Gênero: ação, crime, drama
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

1. O “efeito escândalo”

“O Rio de Janeiro tem mais de 700 favelas, quase todas dominadas por bandidos armados até os dentes. No resto do mundo essas armas são usadas para fazer guerra; no Rio são armas do crime.”

“A verdade é que a paz depende de um equilíbrio delicado entre a munição dos bandidos e a corrupção dos policiais. Honestidade não faz parte do jogo. É um equilíbrio instável que pode ser abalado pela menor das brisas.”

Existem filmes que se transformam em acontecimentos, pois transcendem o universo particular dos freqüentadores de cinema e se tornam assunto obrigatório em todas as rodas de conversa. Impõem-se como um tema geral do qual simplesmente é impossível fugir. “Tropa de elite” se encaixa nessa categoria. O filme foi em parte baseado no livro “Elite da tropa”, de André Batista, Rodrigo Pimentel (ambos com patente de capitão e ex-membros do Batalhão de Operações Especiais – BOPE – da PM-RJ, formados em direito e sociologia respectivamente) e Luis Eduardo Soares (antropólogo e ex-subsecretário de segurança do Rio entre 1999 e 2000 e consultor de segurança nacional em 2003). Sobre a base do livro, o diretor José Padilha (“Ônibus 174”) e o roteirista Bráulio Mantovani (“Cidade de Deus”) construíram uma história fictícia em que se entrelaçam as vidas de três policiais do BOPE.

A princípio, “Tropa de elite” se tornou assunto obrigatório pelo fato de ter sido assistido por quase meio milhão de pessoas antes mesmo de ter estreado no cinema, circulando na forma de cópias de DVD vendidas por camelôs. Com o nome de “BOPE”, o filme foi vendido com o valor agregado de “fruto proibido”, ou seja, com um sabor adicional de transgressão que lhe deu um apelo irresistível aos compradores. O alvoroço provocado pelo filme, guardadas as devidas proporções, é da mesma natureza daquele que cercou o vídeo do YouTube que mostra Daniela Cicarelli fazendo sexo na praia. Algo que podemos denominar de “fator escândalo”, que nunca fez mal para o marketing de nenhuma novidade. Não apenas se tratava de um filme vendido em banca antes mesmo de estrear nas telas (fato já tornado corriqueiro pela audácia dos camelôs), mas de um filme que já vinha precedido de uma certa reputação (devidamente distorcida e amplificada pela propaganda boca a boca) de conter cenas fortes, pesadas, “secretas”, como se estivesse expondo sem autorização cenas reais da ação do BOPE ou coisa parecida.

Tudo o que é proibido se torna ainda mais atraente. Especialmente se a proibição se aplica ao objeto em questão por conter cenas de violência extrema, tortura, morte, etc. Nesse caso, a morbidez latente no público se satisfaz voluptuosamente com o produto, sem se importar que lhe seja oferecido pela via da pirataria. Na terra de ninguém do mercado negro, a propaganda enganosa dos camelôs chegou ao ponto de vender com o nome de “BOPE” o documentário “Notícias de uma guerra particular” (de Katia Lund e João Moreira Salles, 1999), obra que trata excepcionalmente bem do mesmo tema, mas não tem parentesco com a produção em questão. Chegaram a circular até mesmo cópias do “BOPE II”, e outras invencionices, com sabe-se lá qual conteúdo, tirando partido da consagrada prática das continuações, tão ao gosto da indústria cultural.

2. Pirataria e mercado capitalista

“Com base nas estatísticas das ocorrências, era só o comandante botar as viaturas nos lugares certos e os cidadãos iriam ficar protegidos. Mas não é assim que a polícia funciona. A polícia depende do sistema e o sistema não trabalha para resolver os problemas da sociedade, o sistema trabalha prá resolver os problemas do sistema.”

“Tem policial que sobe o morro para buscar o arrego (grana que cobra para aliviar o tráfico de drogas). Os traficantes vivem em guerra, mas também querem sobreviver. Para que trocar tiro com a polícia, se dá para negociar?”

Controverso desde o início, “Tropa de elite” dividiu os comentários entre os favoráveis e os contrários à prática da “pirataria”. O editorial da revista SET (edição 244, outubro de 2007), especializada em cinema, diz que “é bizarro acompanhar os mais afobados defenderem o 'direito' de camelôs de vender as cópias ilegais, em uma absurda 'democratização cultural'”, pois “A pirataria não é 'democratização', não é uma conseqüência das novas tecnologias, não é a desculpa dos espertos. É crime. Simples assim”.

De fato a idéia de “democratização cultural” é absurda, mas por outros motivos. Esse conceito é uma contradição nos termos, pois confunde democracia (um valor político) com o acesso a bens de consumo (uma realidade econômica). O capitalismo é capaz de massificar bens de consumo, e o faz abundantemente (embora desigualmente, pois uma pequena quantidade de consumidores tem acesso a uma grande quantidade de mercadorias), sem que isso proporcione enriquecimento humano para os indivíduos, pois sob a forma de mercadoria, qualquer produto do trabalho humano perde sua característica de valor de uso em favor do mero valor de troca. Em se tratando de um produto cultural, isso significa que a sua mensagem essencial não pode ser apreendida, pois o que prevalece na sua recepção é a embalagem, o invólucro comercial, o marketing, em detrimento do conteúdo. Se o produto cultural esvaziado não acrescenta nenhum conteúdo ao indivíduo, não contribui em nada para sua emancipação política (democrática) e humana.

A democratização cultural real jamais será obtida por meio do mercado capitalista. E nem por meio da pirataria, que é parte desse mercado. O equívoco fundamental do argumento do editorial está em separar crime de mercado, como se as atividades criminosas (e aqui inclui-se obviamente não só o comércio ilegal de cópias de filmes piratas, mas todo tipo de negócio ilegal, como o próprio tráfico de drogas) não fossem parte orgânica do mercado capitalista, ou o mercado capitalista como um todo não fosse essencialmente criminoso. Seria porém esperar demais da crítica de cinema contemporânea a capacidade de situar corretamente o sentido histórico e social do capitalismo como modo de produção estabelecido com base na morte, na violência, na fraude, no roubo, na mentira; enfim, sob a base do crime praticado em escala cataclísmica e genocida. Toda e qualquer relação econômica capitalista é essencialmente criminosa, já que se desenvolve sob o pressuposto da mais-valia, ou seja, de trabalho não pago (roubado).

Além disso, o argumento não explica porque a pirataria “não é uma conseqüência das novas tecnologias”, porque na verdade não argumenta, simplesmente decreta que se trata de um crime. Como porta-voz dos interesses corporativos da indústria cinematográfica, SET evidentemente jamais poderia concordar com a pirataria. A revista simplesmente não pode se colocar a questão de por que as pessoas se arriscam a comprar DVDs de procedência e qualidade duvidosa e nem a hipótese de que essa disposição possa ter alguma relação com a impossibilidade material de grande parte desse público de freqüentar o cinema. Essa impossibilidade jamais será sanada pelas vias “normais” do mercado capitalista, pois a lógica global desse sistema produz cada vez mais seres humanos “supérfluos” que não tem acesso sequer aos bens necessários à sobrevivência, que dirá aos “supérfluos” bens culturais.

Qualquer discussão sobre o mercado capitalista pautada no horizonte da legalidade está fadada ao fracasso, pois a ilegalidade é inerente ao sistema. A pirataria é somente um braço auxiliar do mercado. No caso em questão, a propaganda boca a boca originada pelos camelôs ajudou a promover o filme melhor do que qualquer técnica de publicidade. Aliás, na mesma edição de SET, o diretor se defendeu da acusação de que o vazamento das cópias piratas tenha sido premeditado como estratégia de marketing. A descoberta e a prisão do suposto responsável pelo vazamento, segundo José Padilha, “joga por terra a babaquice de que tudo isso era jogada de marketing”.

Jogada de marketing ou não, o vazamento das cópias piratas modificou completamente o enfoque da recepção do filme pelo público. Nunca saberemos qual teria sido a recepção de “Tropa de elite” caso o seu lançamento tivesse se dado pelas vias “normais”. Dando mais uma prova de seu compromisso com a indústria cultural, e expondo o ângulo fundamental pelo qual, na sua opinião, o sucesso do filme deve ser medido, o diretor lamenta a possível perda de bilheteria: “Nunca saberemos se teria um público maior”. Nem mesmo os autores das obras mais arrojadas, como “Tropa de Elite”, estão livres das contingências implicadas no ato de vender seu produto no mercado.

3. Intenção artística e repercussão social

“Quando acontece um crime na área de um batalhão, o responsável tem que correr atrás, só que correr atrás dá muito trabalho. É mais fácil mudar o local do crime do que localizar os criminosos!”

“Quando um cidadão consegue uma viatura para um local, ele tem que pagar! O sistema não tem limite, não tem fronteira, ele já faz parte da cultura da polícia. Até escala de férias depende de propina. O sistema leva os policiais à loucura. Na polícia, quem trabalha direito sempre se @#$%&, de um jeito ou de outro!”

A preocupação aqui é outra, pois o que se trata é de avaliar o filme como objeto estético e acontecimento cultural e a partir daí extrair o significado político da sua repercussão. Pelo que foi adiantado até aqui, houve uma distorção na divulgação do filme-produto, que por conta do “vazamento” para a pirataria, ganhou um ar de curiosidade mórbida clandestina. Como se se tratasse de um “snuff movie” brasileiro. A insistência nesse aspecto, mesmo correndo o risco de algum exagero, se propõe a remarcar o fato de que uma obra de arte pode ganhar vida própria e significado distinto daquele que explicitamente desejou lhe imprimir o artista. Um autor pode fazer um filme desejando dizer uma coisa, e ser desmentido ou não pelos críticos, mas os espectadores em geral podem acabar ouvindo outra coisa completamente diferente, em função do momento social e político do cenário em que esse filme foi lançado.

Se esse é o caso de “Tropa de Elite”, qual teria sido a intenção do autor, a qual se supõe aqui ter sido frustrada? Qual a originalidade deste “Tropa de Elite”?

Trata-se de um filme construído do ponto de vista da polícia, e não do criminoso, como é usual no cinema brasileiro. “Tropa de Elite” faz uma radiografia da polícia e a apresenta como uma instituição falida, inerentemente corrompida, organicamente integrada ao mercado de grandes e pequenas ilegalidades que vão desde as multas de trânsito, o jogo do bicho e a prostituição até os conchavos com políticos, passando pelo tráfico de drogas, carro chefe do sistema. A polícia convive com o tráfico e com os crimes a ele associados, e não os reprime. A repressão de fato é feita pelo BOPE.

O qual, por sua vez, age completamente por fora das normas do Estado de direito, julgando e executando as sentenças no ato em que o crime é cometido: "senta o dedo nessa @#$%%!”. Depois, é só “jogar na conta do Papa”. Os indivíduos que executam essas ordens passam por um processo de treinamento que mais se parece com uma sessão de tortura. E a pressão psicológica que sofrem no exercício de sua função é tão intensa que acaba por destruir sua vida pessoal, matrimonial e familiar.

Dessa maneira, “Tropa de Elite” pode ser visto como uma denúncia global da polícia, tanto de sua “banda podre” como daquela “virtuosa”. Entretanto, a repercussão acabou tomando outra direção. O público o recebeu como uma apologia dos métodos extremos do BOPE.

4. A retórica da guerra

“Para acabar com essa guerra, só desarmando os traficantes. É por isso que o principal objetivo do BOPE não é prender traficantes, mas capturar armas. A polícia tinha 30 mil homens despreparados, mal remunerados e com arma na mão, o BOPE apenas 100. Para cada arma que o BOPE apreende, aparecem outras 3 no lugar!”

Festejam-se as ações dos homens de preto contra os “bandidos”, como se torce para qualquer “herói” hollywoodiano. O público cinéfilo e o telespectador em geral foram educados pelo cinema estadunidense a consumir filmes policiais ou de guerra em que os “heróis” matam “bandidos” às dezenas ou centenas. A colonização da periferia pelo cinema estadunidense difundiu o esquema de narrativa maniqueísta do tipo “mocinho x bandido” e forjou uma “cultura videogame”, em que os “Rambos” não atiram contra seres humanos e sim contra “bonequinhos”, que podem morrer às pencas, porque não são de fato humanos.

A negação da humanidade do inimigo é um dos expedientes fundamentais da legitimação ideológica das intervenções imperialistas (como a guerra para levar a “democracia” ao Iraque, por sobre os cadáveres dos irrelevantes iraquianos) e das operações fascistas de reestruturação social (como o extermínio dos palestinos por Israel). Os “Rambos” e James Bonds torturam, matam, destróem tudo ao seu redor para salvaguardar os sagrados interesses econômicos do imperialismo, e ainda por cima se tornam ídolos de um espetáculo para a periferia. Agora, o espetáculo fica por conta dos “Rambos” da periferia dando cabo dos nossos próprios “bandidos”. Nos shopping centers os cinéfilos festejam a morte dos pobres, pretos e favelados pelos impolutos “heróis” do BOPE. Nas sessões domésticas com cópias piratas a grande massa proletária também comemora a morte dos “bandidos” e não percebe que aquela repressão se voltará contra ela mesma.

De denúncia da polícia, o filme converteu-se assim em apologia dos policiais “heróis”. O público quer uma polícia que atira primeiro e pergunta depois. Como ilustrou a revista Veja, quer uma polícia que “trata bandido como bandido”(Edição 2030, 17 out. 2007). Na linguagem proto-fascista do semanário de direita, a sociedade se divide entre os “cidadãos de bem” da “elite”, a massa confusa, covarde, omissa, no meio e os “bandidos” na outra ponta. Do ponto de vista dessa “elite”, não há outra maneira de lidar com os “bandidos” a não ser a guerra. E na guerra, não se pode ter escrúpulos. Vale tudo. Os fins justificam os meios. Torturar os moradores, matar os que estiverem pelo caminho, tudo o que for necessário deve ser feito para chegar ao alvo.

É por isso que a “elite” que lê Veja festeja “Tropa de Elite”, porque vê nele a consagração do método que gostaria de ver estendido à toda a segurança pública. É ao desejo de sangue, ao que chamamos acima de “morbidez latente” dessa “elite”, que o filme veio responder. “Tropa de elite”, ainda segundo SET, “é o verdadeiro movimento 'Cansei'”, ou seja, o desabafo e o manifesto mais bem acabado do que a direita brasileira pensa atualmente sobre os problemas sociais.

5. Sentimento de culpa

“Enquanto traficante tiver dinheiro prá se armar, a guerra continua.”

A caracterização do filme feita por SET é precisa, o que mostra que mesmo a abordagem superficial é capaz de identificar facilmente a qual discurso ideológico “Tropa de Elite” acaba por servir de reforço. Na vertente oposta do “Cansei”, um certo setor da crítica e do público mais esclarecido reagiu negativamente ao filme. Impingiram aos realizadores a responsabilidade por ter feito uma apologia explícita e sem nuances do BOPE, ao invés de uma denúncia. Destacaram acertadamente a falsidade do discurso de que o BOPE é incorruptível e de que a corrupção é exclusiva da PM convencional, mito de fato reforçado pelo filme. Incomodaram-se também por ver o filme acusar diretamente os usuários de drogas pela violência. Em função desses incômodos e vários outros, chegaram a dizer que o filme em si é fascista.

Esse tipo de reação parte de um certo tipo de consciência “politicamente correta”, certamente bem intencionada, mas não muito bem preparada para digerir a realidade. Tradicionalmente, no cinema brasileiro, a polícia é o bandido e o “bandido” é o “herói” (os exemplos são abundantes, de “Pixote” a “Cidade de Deus”). Essa é a forma como a camada social que consome o cinema brasileiro se acostumou a ver a questão do “crime” e da violência retratados nas telas. Essa camada social, basicamente composta pela pequena-burguesia intelectual ou intelectualizada, encontrou nessa forma de inversão estética da realidade a demonstração da sua “consciência social”, de seu compromisso com os pobres e a justificativa psicológica para a sua omissão política e social com relação a ações realmente capazes de modificar as condições sociais que geram o crime e a violência.

A origem do tratamento “politicamente correto” da miséria que predomina no cinema nacional está no sentimento de culpa da parcela da população que consome esse cinema. Quem expôs com propriedade esse viés foi o psicanalista Contardo Calligaris: “o embate entre a polícia e os cidadãos que ela defende revela, no filme de Padilha, uma especificidade nacional: nas classes privilegiadas e supostamente 'ordeiras', a simpatia pelo crime e a antipatia pela polícia não são efeito, como de costume, de rebeldia e sede de aventuras. Elas nascem de um forte e difuso sentimento de culpa social ou, no mínimo, justificam-se por ele.” Denunciar a miséria nas telas do cinema nacional “engajado” alivia a consciência culpada pequeno-burguesa e encobre com um véu “meritório” a sua omissão política: “somos autorizados a fazer pouco ou nada para que a situação mude porque o sofrimento de nossa consciência nos absolve.”(Folha de São Paulo, 11/10/2007).

É por isso que a novidade de “Tropa de Elite” incomoda tanto. Expor o ponto de vista do policial desvenda a omissão social e política dessa parcela da elite dotada de “consciência social” em suas conseqüências mais graves. De um lado, a omissão produz uma polícia corrupta, e de outro, uma polícia fascista. O policial do BOPE, herói do filme, enxerga a realidade como um campo de guerra, a polícia comum como aliada do inimigo, e os consumidores de drogas como financiadores desse inimigo. Para esses policiais o mundo é assim em branco e preto. Quem pode culpá-los por pensar assim? Já que não se pode, culpa-se os realizadores do filme por terem-no produzido. Como se o problema fosse do filme e não da realidade.

6. Liberdade estética e escolha ideológica

“Se o Rio de Janeiro dependesse só da polícia convencional, os traficantes já tinham tomado a cidade, por isso é que existe o BOPE. Na teoria, o BOPE faz parte da Polícia Militar, na prática, é uma policia completamente diferente. Foi criado para intervir quando a policia convencional não consegue dar jeito, e, no Rio de Janeiro, isso acontece o tempo todo!”

Com certa razão, os realizadores de “Tropa de Elite” acusaram a crítica e a parcela da comunidade cinematográfica que se pôs contra o filme de praticar o bom e velho “patrulhamento ideológico” contra a arte. De fato, no Brasil, é corriqueiro que os artistas de diversos campos, de compositores da MPB a cineastas, sejam cobrados pela “obrigação” de praticar uma “arte engajada”, ou seja, voltada para a denúncia das mazelas sociais do país. Sem entrar no mérito de como os artistas podem contribuir através de seu trabalho para a construção de uma autêntica consciência social emancipadora, é preciso atentar para o fato de que o patrulhamento revela algo de bastante perturbador sobre a miséria das atividades intelectuais no Brasil.

O patrulhamento ideológico sobre obras de arte é um sintoma do caráter subdesenvolvido da inserção da atividade intelectual na opinião pública e na cultura brasileira em geral. Os filósofos, sociólogos, cientistas políticos, etc., não são ouvidos por quase ninguém fora dos seus círculos imediatos de atividade, ou seja, fora da academia. Os intelectuais brasileiros não intervém e não pautam o debate público. Não ocupam o foco da mídia e não atacam as grandes questões. Logo, quem o faz são os artistas, que acabam carregando indevidamente a responsabilidade de debater as questões sociais e sendo injustamente cobrados por isso.

A atuação reativa da intelectualidade é suficiente apenas para forjar uma consciência “politicamente correta” razoavelmente disseminada, materializada no discurso da “cidadania”, dos direitos humanos, da “democracia”, etc. É essa consciência “politicamente correta” que reage negativamente a um filme como “Tropa de Elite”. Pelo que foi exposto acima em relação ao sentimento de culpa pequeno-burguês, não há como levar muito a sério o compromisso ideológico dos patrulhadores “politicamente corretos”. A sua “consciência social” é justamente um dos alvos mais duramente atingidos por “Tropa de Elite”, o que será desdobrado adiante.

Por enquanto o que cabe ressaltar é a legitimidade da escolha estética dos autores de “Tropa de Elite”. Ao artista cabe escolher o objeto que lhe aprouver e retratá-lo com a maior profundidade possível. É por aí que deve ser medido o seu mérito. A escolha do ponto de vista do policial também é perfeitamente legítima. O policial também é um ser humano, afirmação que não deveria ser escandalosa ou surpreendente a quem se acostumou a absolver os “bandidos” e ressaltar o seu lado humano e sua condição de vítimas do sistema (até o capitão do BOPE reconheceu que o traficante “deve ter tido uma infância @#$%%). O policial também é uma vítima.

Os patrulhadores que criticam “Tropa de Elite” como fascista se consideram os portadores da “consciência social”. Consideram-se os donos de uma visão “de esquerda” e por isso criticam um filme que rotulam como “de direita”. Mas do ponto de vista de uma verdadeira consciência social, não se pode criar obstáculos para a arte. Tudo o que existe deve ser filmado, tudo que é filmado deve ser exibido e tudo que é exibido deve ser debatido. Esses pressupostos libertários deveriam ser assumidos por qualquer consciência de fato comprometida com a transformação social.

Se “Tropa de Elite” foi visto não como denúncia e sim como apologia dos métodos da polícia, é porque alguma coisa fugiu do “script”. Não foi apenas a “elite” leitora de Veja que viu o filme, mas a classe trabalhadora que não freqüenta o cinema. E esses consumidores de DVDs piratas compraram a mesma visão da “elite” sobre o BOPE: torcem para os “heróis” contra os “bandidos”. E não foi apenas a colaboração dos camelôs e da pirataria, mas o clima político do país que favoreceu a leitura prevalecente. Nesse caso, a repercussão de “Tropa de Elite” não é uma causa, mas sintoma de uma direitização da sociedade. E é sobre essas questões que o debate precisa se aprofundar.

7. A “consciência social” como alvo

“Quem ajuda traficante a se armar é cúmplice! A guerra sempre cobra o seu preço! Quantas crianças teremos que perder para o tráfico, só para um playboy enrolar um baseado? Viciado financia o tráfico!”

Quer o objetivo dos realizadores tenha sido o lucro oportunista com base num filme polêmico e sensacionalista, quer o vazamento das cópias piratas tenha sido estratégia de marketing, quer tenha dado margem a todos os tipos de exploração (como os bonequinhos do cap. Nascimento e camisetas do BOPE também vendidos por camelôs), quer tudo isso que pode ser dito contra o filme seja verdade ou não, o seu alvo ideológico foi extraordinariamente preciso: a “consciência social” da pequena-burguesia intelectualizada e universitária brasileira.

De acordo com “Tropa de Elite”, ter “consciência social” equivale a ter aulinhas de Foucault na faculdade, “simpatizar” com os pobres, engajar-se nas ONGs, fazer passeatas pela paz, indignar-se com a repressão policial, ser leniente com os “bandidos” e fumar maconha. Essa caricatura de “consciência social” é um retrato real de uma determinada camada social. Um retrato cirúrgico, devastador e incontestável. Tanto assim que a patrulha “politicamente correta” vestiu a carapuça e atacou o filme.

A pequena-burguesia foi posta contra a parede. Ou adere aos métodos fascistas do BOPE, como quer a Veja, ou parte para uma compreensão real dos problemas sociais. O cinema “engajado” e a consciência “politicamente correta” não estavam levando a lugar nenhum, pois como disse ainda o psicanalista Contardo Calligaris, “somos desculpados de nossa inércia pela culpa que sentimos (...) a culpa não produz ação, mas descarrego.”

A hegemonia dessa concepção frouxa de “consciência social” é o resultado da omissão desastrosa de uma intelectualidade puramente acadêmica, que como foi apontado acima, não comparece aos debates públicos. A grande mídia se apropria dos temas mais candentes e faz deles o que quer. Como fez Veja, transformando o capitão do BOPE em operário padrão do seu projeto fascista de reengenharia social.

Se a repercussão de “Tropa de Elite” é um sintoma da direitização da sociedade, ela sinaliza uma derrota da intelectualidade de esquerda, que não soube colocar o debate nos seus termos corretos. Se na sociedade do espetáculo o produto cultural “perde sua característica de valor de uso” e “sua mensagem essencial não pode ser apreendida”, é tarefa dos críticos de esquerda desvendar essa mensagem. É sua tarefa educar a sensibilidade do público para enxergar além das imposturas maniqueístas hollywoodianas.

Essa tarefa não está sendo cumprida. A cultura, o comportamento, a vida concreta, o estado psicológico, moral e sexual dos indivíduos reais não é abordado pela esquerda. A esquerda não assume o debate cultural como sua prioridade política, permitindo que seja conduzido pelas Vejas e SETs da vida. Quando a esquerda intervém, é sob a forma histérica e mesquinha do patrulhamento sobre os autores.

No meio da indigência cultural prevalecente, os diversos sentidos humanos presentes em cada obra, a riqueza de detalhes e nuances, a multiplicidade e a complexidade do real, se diluem na estreiteza das fórmulas prontas, julgamentos peremptórios e alternativas unilaterais: ou o capitão é um herói ou o filme é fascista. É preciso ir além deste método e tratar a realidade (e as obras de arte) como ela é, ou seja, como “síntese de múltiplas determinações” (Marx).

8. A consciência social como alternativa

“PM no morro é inimigo. Para os moradores, quem garante a paz no morro é o 'comando' (do crime)!”

As questões apresentadas por “Tropa de Elite” só podem ser corretamente enquadradas por meio de uma discussão ampliada. A “guerra particular” entre o BOPE e os traficantes e a corrupção da polícia só existem porque o tráfico de drogas é proibido. Se o tráfico não fosse crime, os traficantes não precisariam se armar, não precisariam corromper a polícia e não precisariam enfrentar uma unidade de elite. A proibição é o fato elementar que está na base de todas as questões. É o fato que mais precisaria ser discutido e justamente o que é menos debatido. Certamente as drogas não são proibidas porque o Estado burguês se preocupa com o bem-estar de seus cidadãos, pois do contrário as bebidas alcoólicas e o cigarro, que provocam de doenças a acidentes de trânsito e brigas domésticas e matam milhões de pessoas, também deveriam ser proibidos.

As drogas legalizadas (bebida, cigarro, fármacos) têm uma série de utilidades do ponto de vista do sistema. As massas submetidas a um cotidiano brutal de exploração embriagam-se para não refletir sobre sua condição e não darem ouvidos a questionamentos mais profundos sobre a ordem social estabelecida. As drogas legalizadas anestesiam a sensibilidade, neutralizam a revolta, lubrificam as relações interpessoais empobrecidas, tornam suportável para muitos a miséria humana da sociedade capitalista. Permitem por exemplo que o capitão do BOPE alivie com comprimidos o stress gerado por seu trabalho insano.

Por outro lado, a proibição de um outro grupo de drogas (maconha, ecstasy, cocaína, heroína, LSD) oferece o pretexto para que as populações da periferia vivam em permanente estado de terror sob a mira das armas de policiais e traficantes O população pobre obedece os traficantes por medo, pois é forçada a conviver com eles diariamente na mesma vizinhança, mas não necessariamente gosta desse regime. Ao mesmo tempo, essa população odeia a polícia, pois essa intervém nas comunidades de modo não menos arbitrário e descontrolado que o dos traficantes. A proibição mantém a imensa massa pauperizada permanentemente paralisada pelo fogo cruzado de uma falsa guerra e a impede de entrar ela própria em guerra contra o sistema que perpetua sua miséria.

Além disso, o morro e a periferia não produzem drogas, nem armas, nem lavam dinheiro. Tudo isso é trazido de fora, por meio dos mesmos canais de contrabando que alimentam qualquer outra esfera do mercado. A proibição fornece altas rendas para policiais, magistrados, políticos e banqueiros associados ao tráfico. O tráfico é um negócio rendoso como outro qualquer, parte integrante do mercado capitalista. É um exemplo perfeito da livre concorrência. Pela lei da oferta e da procura, qualquer negócio de alto risco proporciona altos lucros. Para os empreendedores capitalistas que participam do negócio das drogas, a única preocupação é administrar o risco, o que significa subornar as autoridades, que assim se associam ao tráfico. O Estado burguês, associado ao tráfico e comprometido com a repressão, é o exemplo mais bem acabado de crime organizado. Na guerra do tráfico em si, policiais e traficantes, usuários e moradores são apenas peões.

O discurso de que os usuários de drogas ilegais financiam o tráfico está correto, pois isso é uma realidade material indiscutível. Limitar-se a essa constatação porém é um procedimento muito simplista. O que vem primeiro, a violência da guerra contra o tráfico ou a proibição do uso de drogas? O que é causa e o que é conseqüência? Qual é o fundamento da proibição? Por que esse fato fundamental permanece oculto, embora seja o óbvio ululante da questão?

A incriminação dos usuários pela violência vem acompanhada de uma mal-disfarçada recriminação moralista por conta do hábito em si de consumirem drogas. O moralismo não pode admitir que um grande número de pessoas encontre prazer no uso de substâncias que alteram o estado de consciência (assim como não admite o prazer em relações homossexuais, ou mesmo em relações heterossexuais, como a Igreja católica). A repressão ao prazer dos usuários é da mesma natureza da repressão ao prazer sexual e ao prazer em geral. Um assunto privado se torna público por conta da vã pretensão do Estado burguês de legislar sobre a “moral” do indivíduo. Com base numa noção particular de moralidade de origem puramente religiosa, o Estado se arroga o direito de determinar o que os indivíduos podem fazer ou não com seus corpos!

A intervenção do Estado na vida privada dos indivíduos e na forma como experimentam prazer é não apenas uma aberração medieval, mas uma necessidade funcional do ponto de vista da preservação da ordem estabelecida. Indivíduos que dedicam suas vidas à busca do prazer não produzem nem consomem o lixo capitalista. Tornam-se portanto “inúteis” e sua conduta precisa ser reprimida o mais violentamente possível, para que seu exemplo não se dissemine. Daí a importância crucial da criminalização das diversas formas de prazer, que permite ao sistema a repressão brutal contra a autonomia individual. O complemento da criminalização do prazer é a comercialização altamente rentável de falsas alternativas para a miséria humana, como as drogas.

É preciso que fique aqui bem clara também essa questão: as drogas são fonte de prazer para alguns, mas são também falsos alívios para a desumanidade estrutural inerente ao modo de vida vigente. Defender o direito dos indivíduos fazerem o que quiserem com seus corpos, inclusive destruí-los pelo consumo de drogas, não é a mesma coisa que propor a liberação pura e simples das drogas. Proibir o consumo de drogas é absurdo, mas liberá-las é ainda uma pseudo-solução. Mesmo parecendo bastante radical e contando inclusive com excelentes argumentos a seu favor, a liberação ainda é uma solução que fica pela metade do caminho.

O principal argumento a favor da liberação parte da constatação de que a proibição das drogas causa mais mortes do que o consumo das substâncias hoje proibidas. A liberação causaria inegavelmente um aumento drástico da quantidade de usuários. Mesmo considerando-se que nem todo usuário se transforma em dependente (isso comprovadamente acontece apenas com uma minoria) socialmente desajustado e auto-destrutivo, o número de viciados crônicos também aumentaria muito. Mas nem isso provocaria tantas mortes quanto a guerra ao tráfico em curso e suas conseqüências paralelas (corrupção da polícia, tráfico de armas, assaltos à mão armada, seqüestros, etc.) atualmente provocam. Num cálculo frio, o consumo livre de drogas teria menor letalidade social do que tem a proibição hoje em vigor.

Mesmo assim, a liberação pura e simples do consumo de drogas também não soluciona o problema, pois apenas aumenta a oferta de alternativas escapistas para os dramas da existência. Tal como as bebidas alcoólicas, as drogas somente impedem a consciência de se chocar frontalmente com o absurdo da existência humana aprisionada na barbárie capitalista. Sua liberação seria a generalização de mais uma forma de anestesia da consciência. Por mais justa e libertária que seja a luta pela autonomia dos indivíduos em relação às suas formas de prazer, essa luta perde o sentido, torna-se puramente hedonista, egoísta, individualista, se não se coloca no plano da luta mais geral por um outro modelo de sociedade. É preciso construir uma sociedade na qual o prazer e a realização do indivíduo sejam não apenas tolerados, mas colocados como necessidade fundamental a ser atingida, na qual haja recursos infinitamente mais ricos e diversificados do que as ilusórias drogas. É por isso que apenas a consciência socialista é a alternativa real para a emancipação dos indivíduos.

9. Ficção e realidade

“Há comandantes concorrendo entre si nos esquemas de corrupção. PM não sobe ao morro para pegar tiro de bandido por causa de R$ 500,00. Há comandantes que pegam arrego de R$ 6 mil por semana. Na polícia, o sistema protege os corruptos!”

“Tem muito comandante safado que reduz (os números d)a criminalidade jogando defuntos na área de outro batalhão. Tem que refazer relatório, o verdadeiro 'não existiu'.”

A guerra contra as drogas é um falso problema, assim como a liberação pura e simples é uma falsa solução. Enquanto o debate é travado em torno de falsas alternativas, a sociedade prossegue ladeira abaixo na via da barbarização. O sistema capitalista é uma máquina de produzir miseráveis. Para cada “Baiano” morto, outros tantos tomam seu lugar. Tanto os métodos assassinos do BOPE quanto as ONGs movidas por “consciência social” estão enxugando gelo. Ambos perpetuam o modelo social capitalista, inerentemente conflituoso e insustentável.

A ficção de “Tropa de Elite” é capaz de provocar todo o alvoroço que causou porque apresenta de maneira verossímil a violência social no Brasil. Traficantes matam policiais e matam uns aos outros, policiais matam traficantes, policiais e traficantes matam moradores, criminosos matam indiscriminadamente em assaltos, etc. Nesse contexto, a alternativa de uma unidade de elite supostamente incorruptível que se coloca acima da lei para pôr fim à violência generalizada aparece como uma novidade extremamente sedutora.

O problema está em que a legitimação dessa estratégia de repressão do “crime” termina por legitimar toda e qualquer solução autoritária. Uma polícia bem treinada e bem equipada como o BOPE é tudo que a burguesia precisa para conter a luta de classes. A polícia e os braços armados da burguesia (jagunços e assassinos de aluguel) matam ativistas dos movimentos sociais, sindicalistas, lideranças de sem-terra, religiosos, etc. Esses assassinos permanecem impunes, enquanto os ativistas são sistematicamente condenados pela justiça burguesa.

Tudo isso já é uma realidade histórica estabelecida. A política do Estado brasileiro sempre foi de violência sistemática para com as classes subalternas. Negros, índios, mestiços, nordestinos, pobres em geral são vítimas seculares de táticas de extermínio, seja pela força militar, seja por fome, doenças, etc. Desde Palmares a Canudos, chegando a Carandiru, Candelária e Carajás, a tática empregada é o massacre e a deslegitimação. Os opressores “civilizados” matam os oprimidos “bárbaros”. O tráfico de drogas é uma forma moderna de barbárie, uma esfera particular do mercado capitalista, cuja administração proporciona uma excelente desculpa para o prosseguimento do massacre. A morte dos pobres se reveste da devida legitimação moral como parte da cruzada contra o “crime”.

O mecanismo do genocídio compreende não só o aniquilamento físico dos membros do grupo indesejável, como também a negação de sua condição de seres humanos. Um negro, nordestino ou pobre que morre é uma estatística (a ser colocada “na conta do Papa”, ou do Panamericano, ou da Copa do Mundo) insignificante, rotineira e esquecível. Somente o membro das classes dominantes que morre é um ser humano. Um ser que tem nome, tem imagem, tem subjetividade, tem família, tem história. Ele pertence à assim chamada “sociedade”, é um “cidadão” a quem é assegurado o direito “democrático” de “participar”. A sua morte provoca reação indignada da mídia e a cobrança de respostas das autoridades. É por isso que toda passeata pela paz é no fundo hipócrita, pois a guerra social capitalista continua matando cotidianamente os pobres, sem que a “sociedade” se escandalize.

A hipocrisia passa despercebida, pois no discurso da mídia não são pobres que morrem e sim “bandidos”. A construção ideológica da categoria do “criminoso” e do “bandido” retira todo o contexto histórico e social do processo de bestialização dos indivíduos envolvidos no tráfico e desloca o seu enquadramento para o falso plano da individualidade moralmente degenerada. Não se pode admitir a criação da figura inumana do “bandido”, pois o que desumaniza os pobres é o processo social de reprodução do capital. E os verdadeiros bandidos são os beneficiários do processo social capitalista, ou seja, banqueiros, latifundiáros, políticos, etc. Esses sim são bandidos sem aspas.

Denunciar a assimetria no tratamento dado a bandidos de uma classe social e de outra não significa desconhecer que os traficantes são violentos, cruéis, arbitrários, desumanos, etc. Ter consciência social (sem aspas) não significa ser amigo ou complacente com traficantes e criminosos em geral. Significa conhecer a totalidade do processo social que dá origem a tais indivíduos.

10. “O BOPE tem guerreiros que acreditam no Brasil!”

“Se a psiquiatria da PM tivesse que reportar tudo a seus superiores, não teria mais polícia no Rio de Janeiro!”

“É burrice pensar que policiais vão subir favela só prá fazer valer a lei, policial tem família e também tem medo de morrer. Todo policial tem que escolher: ou se corrompe ou se omite ou vai para a guerra!”

A novidade de “Tropa de Elite” é a apresentação sem retoques do processo social que dá origem a policiais corruptos e policiais proto-fascistas. Compreender a repressão em todos os seus mecanismos, a mentalidade militar, a sua formação, é uma tarefa também negligenciada pela consciência social de esquerda.

As Forças Armadas são a instituição fundamental do Estado capitalista. Um Estado nacional qualquer é basicamente o território sob jurisdição de um determinado Exército. Em países periféricos, como o Brasil, a instituição militar não serve à defesa da soberania nacional, pois essa é cotidianamente aviltada pela subordinação aos interesses econômicos do imperialismo sem que nada aconteça. A função do Exército é defender a propriedade privada. A instituição militar se destina a combater o inimigo interno: no passado, os comunistas; hoje, os sem-terra, sem-teto, ativistas sociais, etc. No Brasil há uma aberração única no mundo, a polícia militar, sob jurisdição dos governos estaduais, concebida na insuficiência do Exército precisamente para desencadear a guerra de classes contra as camadas subalternas.

No interior da PM se situa o BOPE. Num dos cânticos de guerra os soldados em treinamento entoam o seguinte: “o BOPE tem guerreiros que matam guerrilheiros!” Um regime político autoritário eventualmente instalado no Brasil só precisa apertar o botão seletor para mudar o alvo das tropas de elite. Ao invés de “bandidos” e traficantes, o BOPE passará a perseguir “subversivos” e “comunistas” com a mesma eficiência. É da natureza da instituição militar obedecer sem questionar.

A defesa dos nazistas em Nuremberg era de que estavam “apenas cumprindo ordens”. A condição de obedecer ordens sem questionar forneceu um falso álibi que só pôde ser desmontado quando os nazistas foram derrotados. Sob certo aspecto, os soldados da Wehrmacht alemã não eram diferentes dos de qualquer outro exército. A condição do soldado (do Exército, da PM ou do BOPE) é a do indivíduo que opta por não questionar. Moralmente, essa posição parece ser extremamente confortável, pois do ponto de vista do soldado tudo já foi pensado antes por outrém. O inimigo pode ser identificado claramente: basta mirar naqueles a quem o comandante ordena que sejam mortos. O soldado não precisa fazer escolhas e lidar com a complexidade: a instituição militar o absorve e absolve. O soldado pode questionar uma missão particular (como o capitão faz em relação à missão do Papa), mas jamais questiona a própria guerra.

Além do enganador conforto moral, a adesão a uma corporação militar fechada, especialmente uma unidade de elite, também proporciona uma sensação de superioridade. No treinamento para o BOPE, a primeira fase não acrescenta nada útil aos indivíduos, apenas seleciona os “fortes” e exclui os “fracos” (na premissa equivocada do filme, os corruptos jamais serão selecionados). Os indivíduos que superam uma seqüência de provações grotescas como as do “treinamento” para o BOPE saem de lá considerando-se superiores aos simples mortais. Como num rito de passagem tribal, a flagelação do corpo resulta em reconstrução do espírito. Na segunda fase, os selecionados recebem reforço positivo: usam roupa preta e daí em diante são chamados de “caveira”. Passam a ter orgulho e confiança. Saem “acelerados”. Até que, depois de alguns anos, a irracionalidade da guerra em que estão metidos se torne insuportável, como se tornou para o capitão.

Quando o capitão disse que o policial honesto “ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra”, essa guerra, para ser conseqüente, deveria ser a guerra contra o sistema capitalista. Esse foi o caso de homens como Marighella e Lamarca, que optaram pela trincheira oposta à da instituição na qual foram formados. Esses casos, porém, são a exceção e não a regra. Num processo revolucionário agudo, essa relação precisa ser invertida. Ou seja, os soldados precisam ser ganhos para a causa do povo a quem foram armados para reprimir.

Trata-se, para variar, de uma mais uma tarefa da esquerda, também negligenciada.

“Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
de viver pela pátria e morrer sem razão”
Geraldo Vandré
“Para não dizer que não falei das flores”

Daniel M. Delfino

18/11/2007

14.11.07

Governo Lula ano 5 e os desafios da esquerda








A eleição de Lula em 2002 serviu para evitar que a insatisfação popular generalizada com os 8 anos de descalabro neoliberal da era FHC resultasse num ascenso popular. Como vinha acontecendo em outros países da América Latina naquele período, havia a expectativa de que o Brasil vivenciasse uma onda de greves, manifestações, ocupações de terra, ações diretas; capazes de ameaçar a ordem estabelecida. A única maneira encontrada pela burguesia e o imperialismo para contornar essa “ameaça” foi ceder o poder a Lula e ao PT. O controle petista sobre os organismos da classe trabalhadora e suas principais articulações nacionais, como CUT, MST, UNE, pastorais sociais da Igreja, etc., serviu para evitar que aquele cenário “assustador” de ascenso se materializasse. Todas as formas de luta que pudessem fazer avançar as reivindicações populares foram bloqueadas pelo controle burocrático do PT sobre os instrumentos de luta.

Além de desempenhar esse papel de contenção das lutas sociais, o governo Lula evidentemente deveria dar prosseguimento à agenda neoliberal, encaminhando as “reformas” exigidas pelo imperialismo, aprofundando o controle do capital financeiro nacional e internacional sobre a economia brasileira, de modo a assegurar a continuidade das periclitantes taxas de lucro nas restritivas condições da crise estrutural em andamento. Apesar de haver desempenhado com louvor essa tarefa, sendo amiúde elogiado pelos porta-vozes do mercado na mídia em função de sua “gestão responsável” da economia e da manutenção da “estabilidade”, a aceitação de Lula sempre foi concebida como um expediente temporário, ao término do qual o controle do Estado deveria passar de volta a seus “legítimos” donos.

Ciente disso, Lula tratou de deslocar sua sustentação eleitoral para uma nova base social. Os setores sociais que forneceram o esteio para a construção do próprio PT e da CUT, e que constituíram o núcleo histórico do eleitorado lulista nas 4 campanhas presidenciais de 1989 a 2002, os segmentos mais organizados da classe trabalhadora, tais como os servidores públicos, os funcionários das estatais (como Petrobrás, Correios, BB, CEF), os professores, metalúrgicos, químicos, bancários, etc., bem como parte importante da intelectualidade e da pequena-burguesia; foram colocados para escanteio. No jargão sindical, foram “rifados” em favor de uma nova base de apoio eleitoral: os setores desorganizados da classe, cooptados por meio das diversas formas de bolsa-esmola.

Como o orçamento público é um cobertor muito curto, que quando cobre a cabeça descobre os pés, o financiamento do bolsa-esmola teve que ser tirado de algum lugar. Naturalmente, jamais se cogitaria em sustar a sangria de recursos do país destinada a cevar a especulação financeira internacional, sob o pomposo nome de “serviço da dívida” pública interna e externa. Para cumprir o pagamento da dívida, os recursos são desviados dos fundos públicos destinados à previdência, seguridade social, saúde, educação, infra-estrutura, folha de pagamento dos servidores, etc. Enquanto esses fundos minguam à morte e os serviços públicos são sucateados, as migalhas que sobram são aplicadas na bolsa-esmola.

A relação da população com o Estado passa a ser assistencialista, clientelista, personalista e despolitizada. Os setores mais pauperizados da classe trabalhadora, as populações da periferia das grandes cidades, a população rural pobre, são cooptados via bolsa-esmola. Os setores intermediários da classe trabalhadora, por sua vez, convivem com uma recessão econômica permanente, que resulta em arrocho salarial, desrespeito sistemático aos direitos trabalhistas, desemprego crônico permanente, subemprego, terceirização, trabalho precário, temporário, mal remunerado, sem proteção social, informal, degradante e insalubre. Prisioneiro dessa permanente situação de insegurança, esse amplo setor social não se organiza, não se mobiliza, não faz greve, não constrói sindicatos, não desenvolve consciência de classe, vivendo à mercê da sorte.

A culpa dessa situação de insegurança e das demais mazelas da economia é jogada sobre os ombros dos setores organizados da classe, que ainda desfrutam de direitos formais mínimos, como carteira assinada, previdência, sindicalização, etc. Esses setores são tratados como “privilegiados” que “oneram os cofres públicos”, de modo que o Estado “fica impedido de investir”. Desse modo, legitimam-se os ataques (como a reforma da previdência) e a retirada de direitos, o corte de investimentos nas universidades públicas em favor dos empresários da educação, etc.

O capital global em sua fase histórica de crise estrutural exige que as condições de vida da população trabalhadora mundial sejam gradativamente niveladas por baixo, em direção a uma situação de semi-escravidão à chinesa, e o Brasil não é exceção a esse cenário. As políticas de bolsa-esmola do PT não são uma originalidade brasileira derivada da piedade lulista para com os mais pobres, mas um instrumento de controle rigorosamente neoliberal indicado pelo próprio Banco Mundial para evitar explosões sociais nos países miseráveis. Esse instrumento aliena os mais pobres na forma da dependência material e do fanatismo eleitoral, ao invés de organizá-los para a luta, e portanto, ainda nesse aspecto, a gestão do PT mostra-se extremamente funcional em relação aos interesses da burguesia.

Tendo porém esgotado a sua utilidade conjuntural para a burguesia, ou seja, tendo cumprido o papel de conter preventivamente as lutas sociais, o PT podia já ser descartado e devidamente substituído no controle da gestão do Estado. Entretanto, isso não aconteceu nas eleições de 2006. A direita política tentou cumprir o que era esperado dela, ou seja, retomar o controle do Estado, mas não foi capaz disso em função da forte identificação de Lula com os mais pobres. Com a nova base de apoio eleitoral construída através da cooptação direta dos setores mais desorganizados da classe, Lula ganhou fácil a reeleição em 2006. O preço pago foi a desmoralização do ideário de esquerda, já que o PT, que era a principal referência da esquerda no Brasil, passou a ser visto como sinônimo de corrupção em virtude dos sucessivos escândalos nos quais teve sua cúpula partidária decapitada e praticamente banida da política.

O grande problema da burguesia é que não existe uma figura pública nacional com o peso e a representatividade equivalentes aos do próprio Lula. A sucessão presidencial em 2010 vai opor um candidato lulista a um anti-lulista, ambos sem a mesma capacidade de assegurar a governabilidade do Estado burguês demonstrada pelo presidente petista. Lula estaria disponível para voltar em 2014, desde que fosse aprovado o fim da reeleição. O sucessor eleito em 2010 cumpriria então uma espécie de “mandato-tampão” até que o salvador da pátria pudesse voltar. A perspectiva desse mandato-tampão não parece muito agradável a nenhum dos presidenciáveis do momento, mas nenhum deles conseguirá se eleger sem o apoio de Lula. Ao mesmo tempo, não está descartada a possibilidade de que Lula tente um terceiro mandato. Alguns balões de ensaio já foram lançados do Congresso, para avaliar a receptividade da idéia. Lula jura de pés juntos que não quer o terceiro mandato, mas se for possível...

Enquanto o cenário político não apresenta uma definição mais conclusiva, Lula permanece como árbitro supremo devido ao seu peso eleitoral. Desde os primeiros escândalos de corrupção, Lula vem gradativamente desassociando sua imagem do PT e seus “aloprados”, deixando o partido praticamente à deriva na disputa com as máfias rivais. Os rivais, por sua vez, não querem esperar até 2010 e procedem desde já a tentativa de “despetização” do Estado, conseguindo com isso indiretamente desgastar o que restava do lastro histórico do PT como referência da esquerda e ao mesmo tempo golpear os aliados de ocasião do governo.

Configurou-se desde o início do 2º mandato aquilo que alguns analistas chamaram de “3º turno” das eleições presidenciais, ou seja, a tentativa dos setores derrotados na eleição de 2006 de enfraquecer o governo Lula, oferecendo a oportunidade para que o PT por sua vez agitasse o fantasma do perigo do “golpe das elites” como forma de imunizar Lula contra as críticas de esquerda. O PT, assim como seus organismos colaterais (CUT, MST, UNE, Igreja), obteve assim uma sobrevida política artificial ao capitalizar de maneira patética a defesa do governo Lula contra “a volta da direita”. Dessa forma, conseguiu manter no centro do debate a falsa polarização de “Lula X elites” e silenciar as críticas de esquerda que tentam apresentar uma alternativa do ponto de vista da classe trabalhadora.

Debaixo dessa caricatural cobertura de “esquerda”, o PT prossegue aparelhando o Estado, encastelando-se em cargos públicos, nas estatais e nos governos locais. Nesse cenário, trava-se uma violenta disputa de bastidores entre o PT e as máfias políticas tradicionais, que não aceitam a concorrência dos neopelegos petistas sobre o butim da corrupção que sempre foi seu. Em razão dessa disputa, os escândalos de corrupção seguiram eclodindo pelo segundo mandato de Lula adentro. Depois de obter a cabeça dos cardeais do PT na bandeja dos escândalos, os partidos tradicionais da direita quiseram também a do Presidente do Senado, peça-chave para o esquema lulista na condução cotidiana das negociatas do Estado. Agora, fazem barganhas para aprovar a prorrogação da CPMF, fingindo que são contra o projeto para conseguir concessões do governo aos seus interesses paroquiais. É nessa toada que seguiremos pelo 2º manato adentro (quiçá pelo 3º).

Uma das variáveis capazes de alterar esse cenário seria a inversão do atual ciclo econômico mundial, que vive uma fase de crescimento, convertendo-se num ciclo de recessão. O primeiro mandato de Lula coincidiu com o início do ciclo de crescimento, de modo que durante todo o período não foram experimentadas turbulências capazes de ameaçar a “estabilidade” do atual padrão de acumulação brasileiro, baseado principalmente na devastação e desertificação do campo para exportação de “commodities”. Os primeiros sinais da inversão do ciclo econômico periódico despontaram em 2007, com a queda da bolsa de Shangai em março e a ameaça de estouro da bolha financeira do setor imobiliário dos Estados Unidos em setembro. Em se confirmando a inversão do ciclo econômico e irrompendo mais uma crise periódica, o final do segundo mandato de Lula pode apresentar uma configuração completamente diferente.

Apesar da relativa “estabilidade” que ainda permanece no cenário econômico, os gestores do sistema estão cientes do crescente estreitamento das margens de manobra. Apesar do estardalhaço feito quando do seu lançamento, a montanha de benesses para o capital e ataques aos trabalhadores contida no PAC pariu um índice de crescimento tão ínfimo e vexatório que teve de ser providencialmente maquiado pelo IBGE para se tornar apresentável ao mercado. A economia não está crescendo no ritmo desejado pelo capital (e muito menos, na direção que seria necessária para superar a miséria dos trabalhadores). Na ausência desse crescimento, em breve não haverá de onde tirar a bolsa-esmola que mantém os mais pobres em compasso de espera.

Esse estreitamento das margens de manobra obriga o governo a aprofundar os ataques contra os setores organizados da classe trabalhadora e mesmo contra os setores da pequena-burguesia e das camadas médias. Com a expertise de quem exerce há décadas o papel de desviar as lutas sociais para o pântano da colaboração de classes, Lula sabe porém que os ataques contra os trabalhadores precisam ser feitos de forma mediada, para que não haja a devida reação. Não se pode baixar todo o pacote de “reformas” de uma só vez, pois isso faria com que o perigo fosse percebido e a reação contrária se unificasse. É preciso “desmontar” o pacote e soltá-lo aos pedaços. É preciso “comer pelas beiradas”, ou seja, fazer as reformas aos poucos, para que os seus efeitos deletérios sobre as condições de vida não possam ser sentidos de imediato ou nem sequer imaginados.

Assim, as reformas da Previdência, sindical e trabalhista, etc., vão sendo feitas aos poucos, por meio de medidas provisórias e articulações negociadas nas cúpulas políticas, sem que a sua discussão se generalize para abranger as bases sociais diretamente afetadas. Desse modo, encaminha-se um projeto de lei que reconhece as centrais sindicais e tira aos sindicatos de base e suas assembléias o poder de decidir sobre as campanhas salariais. Os ataques contra a educação pública, como o PROUNI, que tira verbas das universidades federais e impede a universalização do ensino superior, cevando os empresários da educação privada, e o REUNI, que sucateia as universidades federais, são apresentados como políticas “progressistas” de “inclusão social” dos estudantes pobres, sob a égide de uma ótica de mercado.

Ao mesmo tempo, a mídia segue com seu bombardeio sobre a consciência dos trabalhadores, incutindo a mentira do “déficit” da previdência, da necessidade de cortar direitos para ajudar o “crescimento” e “gerar empregos”. Por força dessa persuasão ideológica sistemática, os direitos históricos da classes trabalhadora vão sendo gradualmente erodidos. A CLT vira letra morta no cotidiano da maior parte dos trabalhadores, antes que seja preciso decretar a sua abolição formal por meio da canetada legislativa final.

A economia continua crescendo, ou seja, os lucros das empresas aumentam, pois aumenta a produtividade do trabalho social devido à incorporação de tecnologia e aos ganhos de escala derivados da integração das operações produtivas mundiais. Como estamos num regime capitalista, o ganho de produtividade beneficia o capital, e não o trabalhador, que é demitido. O trabalhador demitido, por sua vez, passa a enfrentar a concorrência dos jovens que adentram o mercado de trabalho. Quando todos concorrem pelas mesmas e cada vez mais escassas vagas, o preço a ser pago pelo seu serviço diminui. Ou seja, vive-se uma situação de arrocho salarial. Os que não conseguem emprego permanente encontram empregos terceirizados ou temporários, que pagam salários ainda mais baixos e degradam ainda mais os direitos. Ou então vão para o “mercado informal”, trabalhar “por conta própria”. Ou ainda, conformam-se com o desemprego permanente e passam a viver da dependência de parentes.

Essa situação econômica de prostração da classe trabalhadora origina a sua prostração política. É aqui que se revela o caráter nefasto da política do PT, CUT, MST, UNE, Igreja, etc. de defender o governo Lula, pois ao fazer isso estão desarmando a única possibilidade de enfrentar os ataques do capital. Somente através da organização e da luta aquela situação de prostração poderá ser revertida. E para ir para a luta, é preciso romper com Lula e o PT. Não se trata de desconsiderar o perigo do “retorno da direita”, mas pelo contrário, de criar as condições para o enfrentamento com a direita. O governo Lula, o PT e suas correias de transmissão no movimento social (CUT, MST, UNE, Igreja) não são obstáculo para o “retorno da direita”; pelo contrário, pavimentam o seu caminho por meio da omissão criminosa em relação à tarefa absolutamente crucial de organizar a luta e a resistência.

Enquanto essa esquerda que ainda detém o peso majoritário nos sindicatos, grêmios estudantis, associações de bairro, etc., se omite da luta, a burguesia ganha a batalha cotidianamente. No plano ideológico, a ausência de lutas de resistência e de postulação de alternativas faz com que a maior parte da população raciocine como se de fato não houvesse alternativa ao modo de produção capitalista e trate de buscar saídas individuais para seus problemas. O individualismo campeia e disseminam-se o cinismo, a indiferença e a brutalidade.

A sociedade vive um processo acelerado de direitização. A repressão recrudesce aceleradamente. A burguesia sabe que Lula e o PT não serão mais obstáculos a seus planos. Sabe que não precisa esperar a derrota eleitoral definitiva e a decomposição final do PT para impor seus interesses pela força. Está em curso um endurecimento da burguesia: criminalização dos movimentos sociais, chacinas, grupos de extermínio, ocupação policial dos morros, demissão de grevistas e dirigentes sindicais, perseguição aos estudantes que ocupam reitorias, matérias difamatórias sendo publicadas em escala industrial na imprensa, etc. Estamos à beira de uma fascistização da opinião pública.

Um sintoma dessa fascistização da opinião pública está na recepção do filme “Tropa de Elite”. Aquilo que poderia ser visto como uma denúncia dos métodos de ação da polícia acaba sendo festejado como apologia desses mesmos métodos. A burguesia e cada vez mais a pequena-burguesia e até mesmo a classe trabalhadora querem uma polícia que atira primeiro e pergunta depois, faz justiça com as próprias mãos, atua como juiz, júri e carrasco, “trata bandido como bandido” e “faz o que é preciso” para “vencer a guerra”. Enquanto o BOPE barbariza os morros, no campo as milícias paramilitares ilegais a serviço das multinacionais transgênicas matam trabalhadores sem terra.

O endurecimento da burguesia provoca uma tentativa incipiente de recomposição organizativa da facção petista/governista nos movimentos sociais, a partir dos setores sociais organizados da classe trabalhadora. A Articulção, braço sindical do petismo, precisa se recompor na base das categorias profissionais, comandando alguns processos de luta (greve nos Correios e na CEF). Mas a política econômica do governo arrochou esses setores sociais organizados para extrair os recursos para o bolsa-esmola dos mais pobres (com o qual comprou a reeleição de Lula). Devido ao arrocho econômico, a base social tradicional dos aparelhos petista/governista está politicamente desgastada e desmoralizada, mas também em boa parte enraivecida. O problema do ponto de vista da Articulação é que, de um lado, existe o risco dos processos de luta fugirem ao seu controle, pela relativa radicalização de alguns setores dessa base. E de outro, essa tentativa de recomposição não pode ser mais do que um ensaio farsesco, pois do contrário seria preciso se enfrentar de fato com a patronal, o que para a corrente lulista é inaceitável.

A burocracia precisa asfixiar o movimento de qualquer forma, pois do contrário pode ser deslocada do controle dos aparatos. Precisa chamar greves, mas impedir que sejam vitoriosas, para não se desgastar com a patronal. Precisa fazer com que a base recue desmoralizada, deixando livre o controle dos aparatos. Nos últimos anos a Articulação tem sido bem sucedida nessa tarefa. Mas até quando?

O desgaste dos setores organizados da classe trabalhadora com o governo Lula não originou apenas decepção, frustração, prostração, mas também reação e luta. No plano político-partidário, o sintoma mais significativo dessa reação foi a formação do PSOL. No plano sindical, houve a formação da Conlutas, comandada pelo PSTU, buscando retomar os sindicatos para a luta e aglutinar outros movimentos sociais. Mas essas iniciativas ainda são minoritárias, sem peso de massas. Apesar da ruptura formal com Lula e o PT, tanto PSOL (e sua colateral Intersindical) quanto PSTU/Conlutas ainda não romperam metodologicamente com o PT/CUT, preservando seja o eleitoralismo, seja o burocratismo nas formas de relação com o movimento social.

A reorganização da esquerda corre contra o tempo. A burguesia tem absoluta clareza do seu projeto: fascistização, repressão, criminalização dos movimentos sociais, perseguição aos ativistas e à vanguarda dos trabalhadores, demissão, arrocho, sucateamento dos serviços públicos, privatização, saque aos fundos públicos do Estado, etc. A esquerda ainda não apresentou o seu projeto estratégico. O projeto do PSOL é eleger Heloísa Helena, a candidata “ética”. O projeto do PSTU/Conlutas é ganhar o maior número possível de sindicatos que hoje são da CUT. Isso ainda é muito pouco para enfrentar um ataque do calibre daquele que está sendo gestado pela burguesia e o imperialismo.

Para enfrentar esse ataque, algumas lacunas cruciais precisam ser superadas:

- Organizar o movimento pela base das categorias, construindo frentes nos sindicatos, grêmios, associações para enfrentar as “reformas” e demais ataques, enraizando comitês de luta, massificando e capilarizando o debate.

- Apresentar uma alternativa socialista contra a barbárie do capital, desenvolvendo a disputa ideológica acerca da necessidade vital de superar o capitalismo, através de um programa mínimo transicional que contenha medidas como:

- Não pagamento da dívida pública, interna e externa, e investimento desse dinheiro num programa de obras e serviços públicos sob controle dos trabalhadores, para gerar empregos e melhorar as condições imediatas de saúde, educação, moradia, transporte, cultura e lazer.
- Redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais, sem redução do salário.
- Carteira de trabalho e direitos trabalhistas para todos, em todos os ramos da economia, da cidade e do campo; fim das terceirizações e do trabalho precário.
- Salário mínimo do DIEESE para toda a classe trabalhadora
- Reestatização das empresas privatizadas, sob controle dos trabalhadores, com reintegração dos demitidos.
- Estatização do sistema financeiro sob controle dos trabalhadores.
- Reforma agrária sob controle dos trabalhadores, fim do latifúndio, por uma agricultura coletiva, orgânica e ecológica voltada para as necessidades da classe trabalhadora.
- Por um governo socialista dos trabalhadores baseado em suas organizações de luta.
- Por uma sociedade socialista.

Daniel M. Delfino


04/11/2007


26.10.07

Em defesa da Revolução Russa: algumas conclusões teórico-políticas

Apresentação

No mundo em que vivemos o estudo da História está interditado por uma proibição de tipo absoluto. Uma vez que a ideologia dominante decretou o “Fim da História”, tanto o futuro quanto o passado tornaram-se opacos, inacessíveis, incompreensíveis. E simultaneamente, o presente está eternizado. Se “a História acabou”, todo o passado não serviu senão para nos trazer ao mundo tal qual ele é hoje no presente. E se o mundo já é hoje “exatamente como deveria ser”, todo o futuro não será mais do que uma repetição “ad eternum” desse mesmo mundo presente. De modo que, para recusar o mundo atual, e lutar por sua transformação, é preciso romper com essa lógica que nos condena a um tempo presente eternizado. É preciso resgatar o tempo histórico, restituindo-lhe as dimensões concretas do passado, do presente e do futuro.

Desenvolver uma narrativa histórica concreta, que respeite a especificidade do tempo histórico em suas três dimensões, pressupõe uma síntese totalizadora que articule o passado ao presente e ao futuro, o que exige o emprego da racionalidade dialética. O estudo do passado abre as portas para a crítica do presente e a transformação do futuro. O passado guarda a memória da luta de classes, das experiências em que a humanidade lutou contra a condição desumana do trabalho alienado e a divisão social do trabalho. A ideologia dominante, naturalmente, precisa varrer essas experiências de luta para debaixo do tapete, fazendo com que sejam esquecidas e mistificadas, de modo que não se pense jamais em repetí-las. Para aqueles que lutam pela transformação do presente, ao contrário, o passado da luta de classes é um rico tesouro repleto de ensinamentos sobre os acertos a serem repetidos e os erros a serem contornados.

Há exatamente 90 anos a humanidade viveu uma dessas experiências de transformação social radical, cujas vicissitudes, apesar de tudo o que diz a ideologia dominante, ainda marcam o nosso presente. A Revolução Russa de outubro de 1917 inaugurou uma época histórica caracterizada pela luta para destruir o capitalismo, a última das sociedades de classe, e construir o socialismo. A tentativa de transição ao socialismo aberta pela Revolução Russa dominou todo o século XX. O melancólico final dessa experiência nos anos de 1989-91 foi justamente o que serviu de pretexto para que a ideologia burguesa decretasse o “Fim da História”. Seu alvo explícito era declarar o fim do socialismo e a perenidade do capitalismo, em conformidade com os ditames eternos da “natureza humana”.

O início do século XXI mostrou porém que a roda da História continua girando, que o capitalismo não se livrou de suas crises, que suas catástrofes sociais e ambientais continuam ameaçando a própria sobrevivência da humanidade e que a sua substituição por uma ordem socialista é uma questão da mais dramática urgência. É mais do que oportuno portanto aproveitar os 90 anos da Revolução Russa para aprender sobre os percalços da transformação social a partir da mais importante experiência realizada até hoje na tentativa de uma transição ao socialismo.

A Revolução e a formação da URSS

De saída, o primeiro ensinamento a ser tirado desse estudo diz respeito à relação entre o projeto dos revolucionários de 1917 e a entidade que veio a se constituir de fato como resultado da luta revolucionária: a URSS. A União Soviética foi durante todo o século XX o “modelo” de socialismo em relação ao qual todos os socialistas tiveram que se posicionar, com maior ou menor margem de distanciamento crítico, sendo que na verdade os revolucionários que a construíram não tinham como projeto servir de modelo para ninguém. Os revolucionários russos, ou seja, o partido bolchevique, eram uma das alas da esquerda socialista internacional, cuja luta objetivava a realização da revolução socialista nos países mais avançados, como Alemanha, França e Inglaterra. A partir das condições econômicas, técnicas e culturais superiores desses países, o socialismo teria condições de se construir como alternativa sociometabólica em escala mundial.

Os revolucionários do início do século XX pensavam o socialismo como um projeto internacionalista e mundial, a ser impulsionado pelos países mais avançados. Jamais a partir da devastada e atrasada Rússia. E no entanto, foi justamente na Rússia que a revolução foi vitoriosa. Esse fato determinou as características da luta pelo socialismo durante todo o século. O retrocesso da revolução européia provocou o isolamento da Rússia revolucionária. E o isolamento da Rússia trouxe a necessidade de defendê-la ideologicamente como cabeça-de ponte avançada da revolução proletária, contra a maciça propaganda difamatória da burguesia.

A necessidade de defender a Revolução Russa acabou trazendo de contrabando a defesa de certas características do regime pós-revolucionário derivadas justamente do atraso russo. O vício foi transformado em virtude, especialmente depois da ascensão da camada burocrática contra-revolucionária stalinista.

Quais eram essas características do atraso russo? A mais importante era o fato de que o proletariado russo era minoritário em relação à população camponesa. Essa minoria proletária teve forças suficientes para produzir uma vanguarda revolucionária capaz de tomar o poder. Entretanto, nas gravíssimas circunstâncias da guerra civil que se seguiu à tomada do poder, essa vanguarda foi dizimada. Restou então ao partido bolchevique a paradoxal tarefa de liderar a transição a uma ordem social mais avançada a partir de um elemento social atrasado, ou seja, a partir do campesinato e de um novo proletariado industrial, inexperiente, que seria recrutado sobre a base desse campesinato.

Ao longo dos anos 1920, para fazer frente a esse atraso, para reconstruir o país, para fazer com que as pessoas trabalhassem, com que a economia fosse capaz de alimentar a população e produzir os bens indispensáveis à sobrevivência, o partido bolchevique se viu forçado a administrar a sociedade com os instrumentos da guerra civil revolucionária. Consolidaram-se a ditadura do partido único, a polícia política (Tcheka / GPU / NKVD / KGB) e a censura. Essas características excepcionais da experiência russa foram convertidas em características por excelência do movimento socialista internacional, a partir da formação dos novos Partidos Comunistas (PCs), que não eram somente inspirados pela Revolução Russa, mas diretamente dirigidos pela III Internacional liderada pelos bolcheviques.

Características da época imperialista

Estabelecemos até aqui que o socialismo é um projeto internacional e que só pode ser viabilizado a partir da transformação dos países mais avançados; que a vitória solitária da revolução na Rússia foi uma espécie de “acidente” no contexto da luta socialista; que não havia condições (sociais, econômicas, culturais, tecnológicas, etc.) para que a Rússia liderasse uma transição ao socialismo; e que as características que definiriam o regime pós-revolucionário na Rússia (partido único, polícia política, censura) eram muito mais um resultado de contingências do atraso russo do que decorrências essenciais do projeto socialista russo e internacional.

Sendo assim, a tomada do poder pelos bolcheviques, mais do que um simples “acidente”, não terá sido na verdade um erro monumental? Se não havia condições de iniciar a construção do socialismo a partir da Rússia, por que os revolucionários tomaram o poder no império dos czares? Se os bolcheviques não contavam com o apoio da maioria da população (camponesa), mas tão somente com o dos operários (que acabaram dizimados na guerra civil), a revolução por eles liderada não terá sido uma aventura inconseqüente? O que a distingue de um simples golpe de Estado? A resposta a essas questões é provavelmente o que diferencia definitivamente a visão de mundo dos marxistas revolucionários da visão burguesa (ou mesmo reformista) que domina o senso comum.

Os marxistas revolucionários, como Lenin e os bolcheviques, sabiam que a Rússia era atrasada e não seria a base para a transição ao socialismo. Seria tão somente o ponto de partida. Os mencheviques e todo um amplo leque de reformistas defendiam para a Rússia o programa de uma “revolução por etapas”, que primeiro desenvolvesse o capitalismo, e com ele o Estado burguês moderno, ou seja, a república parlamentar com suas instituições de democracia formal, para somente depois realizar a transformação socialista. Essa concepção parte de um completo desconhecimento sobre a natureza do capitalismo na época imperialista.

O imperialismo representa a união entre o capital monopolista (fusão do capital financeiro com o industrial) e o Estado na disputa por mercados. Nesse contexto, desaparece definitivamente a ficção da “livre concorrência” do capitalismo liberal típico do século XIX (a pretensão dos neoliberais de ressuscitar o “livre mercado” na era da “globalização” em pleno século XXI, com suas mega-corporações globais monopolistas e seus políticos-gângsteres e mercenários do complexo industrial-militar, só pode ser uma piada de péssimo gosto). O Estado passa a ser o executor direto das políticas de interesse das grandes corporações, disputando mercados pela força das armas. Essa é a causa das duas guerras mundiais (e da “guerra ao terror” de hoje).

Na disputa feroz entre as seções nacionais do capital imperialista, desaparece qualquer possibilidade da parte dos países periféricos de experimentar um desenvolvimento capitalista independente. Desde o início do século XX, a idéia de uma “revolução burguesa” nos países periféricos já estava condenada. A burguesia russa era sócia menor e subordinada do capital imperialista inglês e francês. Exatamente por isso, entrou na I Guerra ao lado dos países da Entente. E em obediência aos seus patrões, recusou-se a sair da guerra, agravando o sofrimento das massas russas. Por sua vinculação orgânica com o imperialismo, a burguesia nacional russa jamais seria capaz de conceder as reivindicações populares que desencadearam a revolução: “paz, pão e terra”.

O que era válido para a burguesia russa do início do século XX era válido para o conjunto dos países periféricos. As burguesias locais e oligarquias rurais eram em todos os casos demasiado débeis para liderar qualquer desenvolvimento nacional independente e ao mesmo tempo sempre predispostas a esmagar as reivindicações populares em obediência a seus amos imperialistas. Desse modo, a estratégia dos PCs liderados pelo stalinismo depois da II Guerra somente poderia resultar em desastre. Os PCs stalinistas reciclaram para consumo externo a fracassada estratégia menchevique da “revolução por etapas”, apoiando os “setores avançados” da burguesia nacional nos países periféricos e renunciando à tarefa fundamental de construir organizações políticas independentes e revolucionárias das classes exploradas e de desenvolver a consciência socialista.

Se no contexto das lutas políticas nacionais particulares era talvez correto desenvolver alianças táticas temporárias num ou noutro momento com setores de classe pequeno-burgueses ou mesmo burgueses, isso jamais poderia resultar, como aconteceu na maior parte dos casos, em renúncia à estratégia da revolução socialista liderada pela classe trabalhadora. A renúncia à construção de partidos revolucionários dos trabalhadores e à criação de uma consciência socialista de massa levou a que os movimentos populares dos países periféricos, tão logo se aproximavam do limiar revolucionário, fossem invariavelmente afogados em sangue pela ala reacionária da burguesia nacional e pelo imperialismo.

A Rússia escapou a esse destino por ter tido a vanguarda operária e o partido bolchevique forjados na experiência de 1905. Se a Rússia era atrasada e incapaz de construir o socialismo, o restante da periferia também o era. Mas a quebra dos “elos frágeis” da cadeia do capital, rompendo os circuitos de acumulação da economia-mundo capitalista, interrompendo o fornecimento de matérias-primas e a demanda de manufaturas, minando o controle do capital monopolista, faria com que o capitalismo entrasse em colapso nos países imperialistas centrais e abrisse as portas para a revolução nos países avançados.

É por isso que a revolução liderada pelos bolcheviques não foi um golpe de Estado vulgar. A revolução na Rússia era vista pelos revolucionários russos como uma etapa da revolução mundial. É por isso que o Outubro russo não foi um “acidente” nem um desvio e sim uma exceção, já que foi o único momento em que a estratégia da revolução mundial foi bem sucedida. Foi a única vitória de um amplo movimento que no seu conjunto acabou derrotado. Por ter sido a única revolução bem sucedida, a Revolução Russa acabou arcando com o ônus dos fracassos alheios, ou seja, passou a carregar sozinha o fardo e a responsabilidade da construção do socialismo num contexto de retrocesso da revolução socialista européia e mundial.

É importante ainda lembrar que a idéia de uma revolução européia como fonte de uma transformação socialista mundial não era um delírio messiânico dos bolcheviques, mas uma possibilidade concreta ao alcance das mãos dos socialistas europeus. Na Finlândia houve uma revolta operária em 1918 (que sofreu uma das repressões mais sangrentas da história), na Inglaterra houve grandes greves em 1919, na França houve motins de marinheiros também em 1919, na Alemanha houve a revolta spartaquista em 1919 e o levante de 1923, na Hungria a “república dos conselhos” operários em 1920, na Itália o movimento das fábricas ocupadas também em 1920. A efervescência vermelha estava por toda parte e não apenas na Rússia. Tomar o poder e trabalhar pela revolução européia não era uma utopia, mas era a única estratégia racional disponível naquelas circunstâncias.

A Guerra Civil

Se a tomada do poder se justifica em função de uma estratégia mundial, os defensores empedernidos da visão de mundo burguesa e reformista ainda podem esgrimir o argumento da democracia formal. Ou seja, os bolcheviques não poderiam jamais apelar para métodos ditatoriais na condução da revolução, pois “por melhores que fossem suas intenções”, o mecanismo ditatorial abriria as portas para a ascensão de aventureiros e oportunistas do tipo de Stalin, como acabou acontecendo. Esse argumento “democrático” na verdade esconde um grosseiro desconhecimento de como a História se desenrola concretamente, quando não uma cínica mistificação.

Se os bolcheviques chegaram à condição de tomar o poder em outubro de 1917, é porque tinham a maioria nos soviets surgidos em fevereiro daquele ano. Os soviets eram conselhos de delegados operários, soldados e camponeses, eleitos por local de trabalho, por fábrica, por bairro, por pelotão, por aldeia, etc. e com mandatos revogáveis e controlados pela base. Eram instituições avançadas da democracia direta. Se os bolcheviques tinham a maioria nos soviets, é por que sua política representava as aspirações da esmagadora maioria da população, que queria o fim da guerra, o fim das privações e a distribuição da terra. Se os bolcheviques não organizassem a tomada do poder para atender a essas reivindicações, seriam varridos por uma incontrolável avalanche popular, juntamente com os outros grupos políticos que vacilavam. Era sua responsabilidade tomar o poder para organizar um governo popular e evitar que a queda inevitável do regime capitalista russo em colapso não resultasse na decomposição do país em completo caos e anarquia e ainda maior sofrimento.

Os bolcheviques atenderam às reivindicações da maioria camponesa (distribuição da terra) e dos operários que constituíam sua base social mais direta. Concederam liberdade política aos partidos de oposição e liberdade de imprensa até mesmo para a burguesia. Agiram portanto com a máxima democracia possível. Se o regime veio a se tornar ditatorial logo depois, não foi por ter sido essa a escolha inicial dos bolcheviques, mas por imposições práticas posteriores decorrentes da necessidade de defender as conquistas da revolução. Somente quem não tem o menor conhecimento da História concreta, ou seja, da luta de classes, poderia supor que a burguesia iria observar calmamente a organização de um governo de transição socialista debaixo de seu nariz e não iria reagir. Desde o início a burguesia russa, a pequena-burguesia, setores da intelectualidade e “socialistas” reformistas se colocaram contra o governo que os bolcheviques tentavam organizar.

Não apenas se declararam contrários a esse governo, mas lutaram contra ele de todas as formas. Organizaram atentados terroristas que feriram Lenin e mataram dirigentes bolcheviques, sabotaram a economia, fecharam fábricas, esconderam matérias-primas e víveres, especularam com os preços, saqueraram os camponeses, jogaram a população do campo contra as cidades, etc. A partir de meados de 1918, essa oposição contra-revolucionária aliou-se aos antigos generais monarquistas para travar uma guerra civil sanguinária que durou até o fim de 1920 e custou a vida de dezenas de milhões de pessoas, seja pelas armas, seja pelas privações que causou.

Além disso, a burguesia internacional não deu tréguas ao governo dos soviets. A narrativa histórica convencional diz que a I Guerra Mundial durou de 1914 a 1918. Mas esquece de mencionar que ao longo da guerra civil revolucionária (1918-1920) os exércitos de praticamente todos os países beligerantes invadiram a Rússia para derrubar o governo soviético, perpetrando também toda sorte de atrocidades. Na verdade, a Guerra Mundial foi encerrada apressadamente pelo temor dos Estados-maiores de que o exemplo russo fosse seguido e que, das deserções que já começavam a se massificar, os soldados e operários passassem à formação de soviets e conselhos revolucionários e à destruição da ordem burguesa na Europa. Se no pós-Segunda Guerra tivemos a “Guerra Fria”, o pós-Primeira Guerra já havia trazido o “cordão sanitário”, a tentativa de truncar pela força das armas a experiência socialista russa então no nascedouro.

Esses “espíritos democráticos” que fazem questão de permanecer absolutamente ignorantes da História concreta raciocinam como se a disputa de alternativas sociais entre capitalismo e socialismo fosse um debate de tipo acadêmico no qual ambas as partes conservam um saudável distanciamento e com cavalheiresco espírito esportivo concedem um ao outro a chance de demonstrar seus méritos, cada qual no seu terreno de escolha, agindo na mais completa paz, com toda liberdade de movimentos e em total igualdade de condições. Ao contrário dessa ficção piedosa, tão ao gosto dos intelectuais de gabinete e dos jornalistas sabichões, a disputa se deu concretamente como uma luta de vida ou morte em que os socialistas não tiveram sequer um segundo de descanso e tiveram que testar a viabilidade de seus métodos improvisados nas condições mais desvantajosas possíveis.

É muito comum os “espíritos democráticos” censurarem os bolcheviques por terem instaurado o terror vermelho, a pena de morte e a perseguição aos opositores. A mesma estridência com que se aplicam nessa denúncia se converte em estrepitoso silêncio quando se trata de expor a existência do terror branco, que começou primeiro, causou muito mais mortes e que na verdade foi o que obrigou o governo revolucionário a organizar sua legítima defesa.

Democracia e ditadura

Quando se fala em erros que os bolcheviques cometeram nesse período (a guerra civil revolucionária de 1918-1920), é necessário precisar em relação a que critérios as suas escolhas podem ser consideradas erradas. É muito comum lembrar a revolta dos marinheiros da base naval de Kronstadt (março de 1921), vizinha a São Petersburgo, como um exemplo clássico de erro. Os marinheiros daquela base entraram em greve exigindo o fim da ditadura e depois de negociações mal-sucedidas, acabaram sendo massacrados. Os anarquistas em particular se especializaram em fazer de Kronstadt a “prova definitiva” da má fé dos bolcheviques e da inviabilidade do socialismo, fazendo coro nesse ponto com os “espíritos democráticos” burgueses.

É muito fácil, a posteriori, censurar o governo dos bolcheviques por ter ordenado o massacre de Kronstadt. Com a mesma facilidade com que se faz essa condenação, se omite que o governo revolucionário havia acabado de passar por uma guerra civil mortal, em que a sua sobrevivência esteve diversas vezes por um fio. Vivia-se um cenário em que não se podia ter certeza de que o perigo havia passado, pois havia ameaças internas e externas de todos os lados, e o menor sinal de fraqueza poderia ser o estopim para uma nova guerra. Não se tratava da paranóia arbitrária de um bando de ditadores, mas da vivência traumática de quem havia se acostumado a enfrentar cotidianamente o terrorismo, a sabotagem, a sedição, a insurreição e a guerra implacável em suas variedades clandestina e aberta por mais de três anos.

Para discutir o mérito dessa escolha, é preciso se colocar na mesma posição daqueles que se viram diante dela. Não é essa a posição em que se colocam a maioria dos críticos. De um ponto de vista socialista, o massacre de Kronstadt pode ser considerado um erro, assim como o banimento da oposição política (ainda havia uma minoria de mencheviques, socialistas-revolucionários de esquerda e anarquistas que apoiavam a revolução), a partir de 1921. Do mesmo modo, foi um erro a proibição da formação de tendências e frações no interior do partido bolchevique, como a Oposição Operária, e a censura às posições divergentes nas publicações do partido. Essas medidas ditatoriais foram todas tomadas em caráter provisório, em face das circunstâncias calamitosas em que estava o país após os quatro anos da Guerra Mundial e os três da guerra revolucionária.

Nunca é demais lembrar que os operários, soldados e camponeses haviam feito a revolução, sob a liderança dos bolcheviques, com o objetivo de trabalhar menos. Agora, com a população das cidades reduzida à menos da metade, a produção industrial reduzida à cerca de 15% do que era antes da guerra, a fome, o frio e as doenças matando milhões de pessoas, o comércio exterior e toda forma de intercâmbio praticamente interrompido, a barbárie corroendo a sociedade como um câncer (corrupção, banditismo, estupros, canibalismo), um estado geral de exaustão, desmoralização, venalidade, individualismo e cinismo; o partido bolchevique era obrigado a pedir ao povo que trabalhasse mais do que antes. Nessas condições, não há governo no mundo capaz de manter sua popularidade. As reivindicações de mais democracia, melhores salários, etc., por mais que parecessem formalmente justas, eram materialmente inatingíveis. Os grupos que apresentavam essas reivindicações em tais circunstâncias excepcionais agiam como demagogos irresponsáveis e inconseqüentes.

Nesse momento, ceder parte do poder aos outros partidos de esquerda poderia significar a volta das turbulências da guerra civil. Era esse o risco que os bolcheviques queriam evitar. Ao contrário da revolução permanente defendida por Trotsky, a Rússia vivia um estado de “rebelião permanente”. Depois que o governo do Czar havia sido derrubado em fevereiro de 1917 e o governo provisório burguês em outubro daquele ano, muitos raciocinavam como se o governo bolchevique também pudesse ser derrubado a qualquer momento. Durante a guerra civil formaram-se vários outros governos provisórios em outras regiões da Rússia, liderados por generais monarquistas, os quais desencadearam o terror branco e obrigaram os bolcheviques por sua vez a militarizar o regime. Qualquer bando de aventureiros de armas em punho se achava no direito de fundar seu governo, e tentava de fato fazê-lo, perpetuando um estado de anarquia que só podia ser debelado pela força.

Condições sociais da ascensão do stalinismo

Os bolcheviques acabaram adotando portanto meios de luta (ditadura e terror de Estado) aparentemente contrários aos fins da transformação socialista. Antes de censurá-los por isso, é preciso perguntar: havia outra escolha? A guerra contra-revolucionária desencadeada pela burguesia, pelos monarquistas e pelo imperialismo não lhes deixou nenhuma. Os bolcheviques estavam cientes da contradição entre meios e fins e estavam prontos para abandonar os métodos emergenciais adotados durante a guerra civil tão logo o conflito amainasse. Por que não o fizeram? Porque as novas condições sociais da Rússia pós-guerra civil não lhes permitiram fazer isso. Fez-se sentir o peso das condições materiais, ou seja, a impossibilidade conceitual de um país atrasado tornar-se socialista manifestou-se de forma concreta.

No início dos anos 20 a Rússia estava devastada e faminta. Não havia comércio interno e externo. Havia escassez de alimentos e produtos essenciais. As pessoas morriam de fome, frio e doenças. A tarefa fundamental dos governantes nesse momento era manter o país funcionando. A economia estava desorganizada. Parte do pessoal técnico (engenheiros, gerentes, etc.) se opôs à Revolução e partilhou do mesmo destino da burguesia, ou seja, teve que exilar-se ou desaparecer no terror vermelho. A parte restante do pessoal técnico e letrado aderiu oportunisticamente ao partido bolchevique e serviu como matéria-prima para a reconstrução do Estado. Essa nova camada social havia se tornado indispensável para fazer com que as fábricas, as ferrovias, as comunicações, etc., ou seja, a infra-estrutura econômica funcionasse. Mas para isso, exigiu privilégios materiais, salários mais altos e itens de conforto dos quais os operários comuns não desfrutavam.

A classe operária dos anos 1920, por sua vez, não era a mesma que havia feito a revolução em 1917 (dos quais uma boa parte havia sido formada já na revolução de 1905). Essa nova classe operária, recém-recrutada no campesinato, não tinha a experiência e a formação necessária para se opor politicamente à ascensão da nova camada de técnicos e burocratas. As comissões de fábrica, sindicatos e soviets perderam efetividade, já que na prática a burocracia era o único setor que tinha condições técnicas de tomar as decisões econômicas. Reproduziu-se a separação entre economia e política, entre prática e teoria, entre trabalho braçal e trabalho intelectual, típica da sociedade de classes e do capitalismo.

Depois da Revolução e das duras provações da guerra civil, no momento decisivo da construção do regime socialista, esteve ausente o único elemento social que poderia realizar tal construção, ou seja, um proletariado dotado de consciência de classe. A camada mais consciente do proletariado russo, como vimos, pereceu na guerra civil. A classe operária que se formou após a Revolução vinha diretamente do campo e trazia consigo o peso brutal do analfabetismo e do atraso cultural geral. Os bolcheviques, que representavam o setor mais avançado da classe operária, viram-se subitamente privados de sua base social. O peso econômico decisivo da camada administrativo/burocrática submeteu o partido dirigente a seus interesses materiais, sacramentando os privilégios e a separação social entre burocracia e demais trabalhadores.

Dentro bolchevismo, a Oposição Operária e depois a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky se opuseram à política pró-burocracia do partido. Mas essa oposição acabou privada de uma base social que pudesse sustentar sua luta política. Após o afastamento de Lenin por doença em 1922 e sua morte em 1924, a liderança do partido coube justamente à ala que representava os interesses da burocracia, ou seja, Stalin. Na formação do stalinismo como tendência política não entra apenas o elemento pessoal de traição ou o caráter malévolo de um indivíduo, mas um conjunto de fatores sociais. A Revolução Russa avançou socialmente até onde ainda existia fisicamente uma classe operária consciente a lhe dar impulso. Depois disso, na ausência daquele elemento social, desarticulado, coube à burocracia recolher suas conquistas.

A adoção da tese do “socialismo num só país” no congresso do partido em 1925 significava o abandono da estratégia da revolução mundial em função da qual a própria Revolução Russa se justificava. Dizer que o socialismo era possível num só país significava dizer que este país, a Rússia, estava maduro para o socialismo, o que não era verdade, pois ignorava o fato fundamental de que a classe trabalhadora estava alijada dos dispositivos de controle econômico e político. Significava também que a nova burocracia dirigente exerceria o poder em nome da classe trabalhadora, transformando a ditadura do proletariado em “ditadura sobre o proletariado”.

A longa sobrevida da URSS

Com todas essas restrições (o isolamento da Rússia, o atraso tecnológico e cultural, a desaparição da vanguarda operária, as perdas humanas de proporções cataclísmicas, os sofrimentos inomináveis e privações intoleráveis impostos aos operários e camponeses, a ascensão da camada burocrática, o fim da democracia operária dos soviets), a Rússia transformou-se numa superpotência, com o nome de União Soviética, capaz de enfrentar as maiores potências imperialistas, como a Alemanha na II Guerra Mundial e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. Como se explica esse “milagre”? Como um país semi-feudal e de industrialização incipiente, tendo passado pelos transes de duas guerras mundiais, sangrado quase até a morte; conseguiu em poucas décadas estar à frente dos Estados Unidos na corrida espacial e armamentista?

A resposta é uma só: a expropriação da burguesia. A colocação dos meios de produção social sob controle estatal permitiu um planejamento que no sistema capitalista é impossível. O fim da anarquia do mercado capitalista racionalizou e potencializou enormemente a estreita base das forças produtivas da Rússia pré-revolucionária. É claro que esse avanço econômico se deu sob controle da burocracia e do Estado, bloqueando o exercício do controle pelos próprios produtores diretos. Esse bloqueio à participação dos trabalhadores nas decisões econômicas e políticas determinaria, ao fim de algumas décadas, o esgotamento do sistema burocrático de produção.

A expropriação da burguesia é apenas a primeira fase de uma transformação socialista, que compreende a efetiva devolução dos poderes sociais de direção econômica e política aos trabalhadores associados. Esse segundo passo não chegou a ser dado na Rússia, pois os poderes de controle permaneceram nas mãos da burocracia. Sem esse segundo passo, a revolução estava condenada. Sem a criação de novas relações sociais, que rompessem com a subordinação estrutural do trabalho, o mais natural era que a forma puramente capitalista de subordinação voltasse a se impor. Foi isso o que aconteceu, na década de 1980. Observando-se o processo em perspectiva, não é surpresa que a URSS tenha desabado em 1991, e sim que tenha persistido por tanto tempo. O fato de que o Estado pós-revolucionário burocratizado tenha sobrevivido por sete décadas é o que há de mais excepcional em todo esse processo.

A longa sobrevida do Estado pós-capitalista russo, se por um lado faz ressaltar dramaticamente a importância e a profundidade das transformações ali realizadas, por outro lado fez com que o movimento socialista internacional ficasse paralisado, por assim dizer, ao nível das limitações russas. Como foi dito acima, a necessidade de defender ideologicamente a Revolução Russa trouxe de contrabando a defesa do atraso russo. O movimento socialista do século XX acabou tomando a forma dos PCs centralizados por Moscou, diante dos quais as diversas formas de dissidência (trotskista, maoísta, foquista, situacionista, etc.) não conseguiram alcançar influência mais do que marginal. À medida em que a União Soviética se consolida como um Estado pós-capitalista administrado por uma burocracia, os PCs se convertem em instrumentos da diplomacia soviética, impedindo o desenvolvimento de linhas teóricas e práticas independentes.

A sectarização do marxismo

Toda forma de consciência social (ideologia) é a expressão de uma determinada forma de existência material. Pelas mãos do stalinismo mundial, o marxismo deixou de ser a visão de mundo da classe trabalhadora em luta pela emancipação para se tornar uma espécie peculiar de falsa consciência, a “propaganda enganosa” do socialismo já “realizado” no “modelo soviético”. O marxismo deixou de ser expressão dos interesses gerais da humanidade, materializados na luta da classe trabalhadora, para se converter na expressão dos interesses particulares da burocracia. Em outras palavras, a burocracia se apropriou do marxismo para convertê-lo no seu contrário, a apologia de uma forma de dominação, e com isso legitimar-se no poder.

A vigência de um determinado sistema de pensamento só pode ser provada quando esse sistema é capaz de demonstrar não só que os sistemas alternativos estão errados, como também de explicar porque esses erros necessariamente se produzem sob condições dadas. A vitalidade do marxismo reside justamente nessa sua capacidade de medir-se com a realidade concreta em todos os momentos da história.

Enquanto expressão viva da luta de classes, o marxismo continuou existindo na prática cotidiana de incontáveis militantes anônimos e na voz insubmissa de pensadores dissidentes e marginais. Sob forma “morta”, o marxismo se transformou no discurso oficial emanado de Moscou e difundido pelos PCs e seus epígonos, inclusive na academia e até mesmo em setores da mídia. O marxismo “petrificou-se” numa ortodoxia doutrinária, que não admite divergência em relação aos seus “textos sagrados”. O espírito revolucionário que vivifica as palavras dos grandes autores marxistas converteu-se na letra morta dos manuais stalinistas. Além de petrificado, o marxismo foi também pasteurizado, ao ser reduzido a uma teoria determinista e economicista da sucessão dos modos de produção, ao modo das teorias positivistas do progresso. Confortavelmente instalados nas suas “dachas”, os burocratas podiam contar com a “vitória final” do socialismo, pois isso “estava escrito nos desígnios da História”.

Quando um sistema de pensamento se transforma em porta-voz de interesses materiais firmemente estabelecidos, torna-se necessariamente conservador, ou seja incapaz de renovar-se e assimilar novos elementos da realidade. Passa assim a assumir as características de um discurso religioso, ou seja dogmático. A principal conseqüência do dogmatismo é a sectarização. Para sacramentar o seu poder de dirigente máximo, Stalin precisou usurpar o nome de Lenin (e seu cadáver, que permanece até hoje insepulto na Praça Vermelha como objeto de culto) e criar o “leninismo”, que seria a interpretação “oficial” e “correta” do marxismo. Precisou também criar uma heresia oficial que servisse de bode expiatório para todos os males, atribuindo aos opositores a pecha de “trotskistas”. Os seguidores de Trotsky, por sua vez, caíram na armadilha e inventaram o “marxismo-leninismo-trotskismo”, mergulhando numa disputa sem fim para determinar qual corrente política é “a representante mais fiel” do legado marxista revolucionário.

Para recomeçar

O sectarismo é um dos muitos vícios da esquerda no presente, inclusive dos setores que reivindicam a defesa da Revolução Russa. Muitos fazem essa defesa de maneira formal, vazia, abstrata, descolada da realidade e fanática. Usam o passado como um escudo para se afastar do presente, que não lhes parece “revolucionário” o bastante; ao invés de fazer do conhecimento crítico e aprofundado do passado o instrumento para a intervenção concreta no presente. Uma militância que não tem os pés bem plantados no chão da realidade que pretende transformar corre o risco de se transformar em simples profissão de fé, ou seja, outra forma de alienação. Onde falta conteúdo, a forma vazia se sobressai caricaturalmente.

O mecanismo da sectarização faz com que muitos revolucionários se percam em disputas bizantinas acerca de filigranas da literatura marxista, esgrimindo citações dos clássicos extraídas dos contextos e debates mais diversos para demonstrar a “superioridade incontestável” das suas respectivas escolas e conventículos “revolucionários”. Enquanto se perdem nessas disputas, deixam passar o bonde da História e negligenciam as verdadeiras tarefas que esperam pelo empenho dos que se inspiram em Marx: o estudo das contradições reais em que se enredam os homens reais no mundo real, a luta real ao lado dos trabalhadores tais como existem em carne e osso, a convivência ombro a ombro com os companheiros de luta de todos os “credos” e denominações, o debate com todas as formas de falsa consciência emanadas da ideologia burguesa que corrompem a filosofia, a arte e a ciência, a superação dos obstáculos materiais que obstruem a revolução socialista no presente.

Dedicar-se a essas tarefas é provavelmente a melhor forma de prestar a merecida homenagem aos bolcheviques e demais revolucionários do passado.

Daniel M. Delfino
26/10/2007