1.11.10

Porque votei nulo



Durante a campanha do segundo turno das eleições presidenciais configurou-se uma forte pressão no movimento em favor do voto em Dilma. Mesmo no setor da classe trabalhadora que ao longo dos oito anos de mandato do PT teve enfrentamentos sérios contra o governo Lula, a tendência do voto em Dilma é amplamente majoritária. É o caso dos sem-terra, que não viram avanço algum na reforma agrária e continuaram sofrendo pesada repressão, inclusive com mortes. E entre as categorias organizadas (metalúrgicos, professores, bancários, petroleiros, correios, etc.), cujos sindicatos e federações ainda são em sua maioria ligados à CUT e dirigidos burocraticamente pela corrente Articulação/PT e satélites, as direções sindicais governistas funcionaram como um sério obstáculo contra a mobilização e a luta durante as campanhas salariais e enfrentamentos cotidianos, mas ainda assim a tendência pelo voto em Dilma por parte desse setor também é quase unânime.

Não se trata apenas de uma opção da base, mas da própria camada dos ativistas, os trabalhadores mais conscientes e politizados, que participam e impulsionam os processos de luta. Esse setor de ativistas, como é de sua característica, não apenas declarou seu voto, mas fez campanha ativamente pela candidata do PT. Circularam em profusão as mensagens de correio eletrônico pedindo voto em Dilma ou demonizando Serra, para criar a falsa sensação de que os dois representam alternativas radicalmente diferentes e estaria em curso uma disputa de proporções épicas entre dois projetos diametralmente opostos para o pais.


A direita mostra sua cara


Não há nenhuma ressalva a fazer quanto à demonização de Serra e do PSDB. Não há nenhum erro ou exagero em demonstrar o quanto são nefastos. A campanha de Serra em 2010 trouxe à tona as afinidades do tucanato com os setores sociais e os discursos ideológicos mais reacionários da sociedade. A pregação oportunista contra o aborto, contra o MST, contra a luta armada na época da ditadura, fizeram com que saíssem das catacumbas e aderissem à campanha de Serra setores de ultra-direita, como a TFP, Opus Dei, saudosistas da ditadura e simpatizantes do fascismo de diversos coturnos e calibres. Não ignoramos aqui a periculosidade do projeto tucano e suas características fascistas. O problema é a suposição de que Dilma e o PT representam uma proteção contra a ameaça da direita.

Os companheiros que reagiram contra a ameaça da direita materializada no PSDB demonstraram um saudável instinto de defesa e uma percepção aguda do perigo que o PSDB representa, o que tem feito com que a campanha de Dilma tenha ganho algo que há muitos anos o PT havia perdido, alguns traços de militância genuína (da qual o partido já não necessita, pois suas campanhas há muito tempo têm sido bancadas por doações milionárias de grandes empresas e feita por marketeiros e cabos eleitorais pagos - militância "genoina", se preferirem). O problema é que essa militância autenticamente interessada em derrotar a direita está sendo mobilizada e instrumentalizada pelo projeto politico de um partido que funciona como um outro instrumento da burguesia. Mesmo não sendo organicamente ligados ao PT, ou até mesmo pretendendo fazer oposição ao PT no movimento, esses companheiros acabam reproduzindo o discurso do governismo.


A burguesia fez sua opção


Não há como não colocar em discussão a questão da perspectiva de classe por trás do projeto político do PT. Ganhe o PT ou o PSDB, o poder social continua nas mãos da burguesia. As relações de produção, as instituições, a propriedade privada, as demais relações sociais, a cultura, a moral e os comportamentos seguem sendo ditados pela classe dominante. O processo eleitoral nem de longe arranha esse complexo de cadeias de exploração, dominação, opressão e alienação. Se assim fosse, se houvesse uma candidatura ou partido que ameaçasse, digamos, a propriedade privada, a burguesia jamais permitiria que chegasse às eleições com condições de vitória, sem partir para um golpe ou guerra civil aberta.

Em outras palavras, isso significa que ambas as candidaturas do segundo turno eram palatáveis para a burguesia. Como não há neste momento um amplo processo de mobilização da classe trabalhadora, é a burguesia quem decide as eleições. Isso significa também que a burguesia optou pelo projeto do PT, porque o partido apresenta as credenciais de uma gestão do capitalismo em que praticamente não há conflito, o que neste momento é mais conveniente do que a truculência do PSDB. Já que o programa neoliberal original do PSDB foi incorporado e aplicado pelo PT, o PSDB ficou sem projeto para apresentar. Sem um projeto alternativo pelo qual possa se diferenciar, o PSDB acabou tendo que apelar para os seus poucos elementos ideológicos diferenciais, ou seja, os traços fascistas. Como o ataque direto e a explosão do conflito social não convém para a burguesia neste momento (não se mexe em time que está ganhando, a burguesia tem lucrado muito no governo Lula), pois o controle exercido pelo PT sobre a classe trabalhadora tem sido mais funcional, isso definiu a parada em favor de Dilma.

Assim, é correto fazer todas as críticas ao PSDB, mas é errado supor que o PT possa ser a alternativa. A correta intuição da ameaça do PSDB veio acompanhada de uma problemática falta de percepção com relação à questão fundamental: qual é o projeto da classe trabalhadora? A única defesa da classe trabalhadora contra a ameaça do PSDB, da direita e da burguesia é manter a burocracia do PT no controle do Estado? Por acaso essa presença do PT ao longo dos dois mandatos de Lula tem impedido os ataques da burguesia contra a classe?

Já falamos nos sem-terra e nas categorias organizadas, poderíamos citar o extermínio da juventude negra nas periferias, o desmonte dos serviços públicos, a continuidade da devastação ambiental, do pagamento da dívida pública fraudulenta, da corrupção desenfreada, e um longo etc. O artigo mais recente na página do Espaço Socialista (www.espacosocialista.org) faz um sumário das semelhanças e continuidades entre PT e PSDB, portanto não preciso me estender sobre isso.


As “melhorias” da era Lula


Mesmo que reconheçam semelhanças, alguns argumentam que apesar disso o governo Lula trouxe "avanços" e "melhorias" para os trabalhadores. Caberia então perguntar: avanços em que direção? Trata-se de um movimento real em direção a mudanças estruturais que alterem as relações de poder em favor dos trabalhadores, ou de pequenos ganhos econômicos resultantes de uma conjuntura econômica favorável, que não resultam de mérito ou opção do governo de turno e podem ser revertidas assim que uma nova onda da crise mundial atingir pesadamente o pais?

As chamadas melhorias obtidas pelo governo Lula não se diferenciam das que qualquer governo burguês consegue. Quem tem um pouco mais de 30 anos, como este escriba, se lembra do Plano Cruzado de Sarney, em 1986, que controlou momentaneamente a hiperinflação e garantiu ao PMDB a eleição de milhares de prefeitos naquele ano, base que fez do partido ainda hoje (e amanhã no governo Dilma) o maior partido do pais. Quem não se lembra do Plano Real em 1994, que derrotou de vez a hiperinflação (provocando conseqüências com as quais ainda estamos convivendo, mas isto é outro debate) e fez do frango o herói da eleição de FHC, com o mote de que os trabalhadores mais pobres agora também podiam consumir?

Melhorias conjunturais e superficiais podem ser e são conseguidas em vários momentos sob governos burgueses, que precisam delas para se legitimar na disputa entre as facções partidárias, mas não podem servir como argumentos para fazer com que a classe trabalhadora deva optar por um governo burguês (no caso o do PT) contra outro. O PSDB tem todas as qualidades malignas que pudermos imaginar, mas não tem a imbecilidade. Mesmo a maior "conquista" da era Lula, os programas sociais, não seriam cancelados num eventual governo do PSDB, pois se trata de uma política de DNA puramente neoliberal, elaborada no próprio Banco Mundial para assegurar a governabilidade de países muito pobres. Ou alguém aí esqueceu que o Brasil continua um país miserável, com uma das maiores desigualdades sociais do mundo, milhões de pessoas vivendo em favelas, em palafitas, em barracos, sem emprego ou em subempregos, acossados pela guerra entre as facções do crime (aquelas sem farda e com farda), sem saneamento básico, sem acesso à saúde, à educação, à cultura, etc.?

Há ainda o argumento de que o PT coloca em prática uma maior presença do Estado na economia. Em relação a isso, dois problemas: em primeiro lugar, estatização em si não representa avanço, pois mesmo os governos burgueses podem eventualmente estatizar empresas (como os governos imperialistas fizeram com instituições financeiras no auge da crise) sem alterar as relações capitalistas. Estatização não é o mesmo que socialização sob controle dos trabalhadores. Em segundo lugar, o governo Lula/PT não estatizou a economia, ao contrário do que diz a sua propaganda enganosa. Não só as privatizações anteriores não foram revertidas como novas privatizações foram feitas. E o patrimônio público remanescente, como Banco do Brasil, Caixa Econômica, Petrobrás, Correios, vem sofrendo uma privatização gradual, disfarçada, por dentro, conforme se adaptam a uma lógica de mercado. O que houve não foi estatização, mas aparelhamento do Estado pelo PT. Integrantes do partido tomaram conta das diretorias das estatais, dos fundos de pensões, das empresas controladas por esses fundos, dos ministérios, etc.


Por um projeto socialista


Se a continuidade dos ataques à classe trabalhadora, da política econômica neoliberal, da corrupção generalizada ainda não bastam para caracterizar a identidade PT/PSDB, podemos acrescentar a ausência de um verdadeiro projeto de pais. O PT se limita a administrar o capitalismo no Brasil, sem apontar para nenhuma mudança nas relações sociais. Ha alguns que argumentam que mesmo assim, é melhor ter o PT do que o PSDB no controle do Estado, pois neste momento não há condições para uma ruptura do capitalismo e uma transição ao socialismo no Brasil. Na ausência dessas condições, a única coisa a fazer seria manter o controle do Estado para impedir "a volta da direita".

Mas nem para isso os governos do tipo do PT servem. Os governos da recente onda "de esquerda" na América Latina, seja os que tiveram algum grau de enfrentamento limitado com a burguesia, como o de Chávez na Venezuela, ou os rigorosamente neoliberais, como o de Bachelet no Chile, têm sofrido derrotas eleitorais. Chávez não obteve maioria para reformas constitucionais nas eleições parlamentares de setembro e Bachelet não conseguiu eleger seu sucessor no início do ano, apesar de uma popularidade tão grande quanto a de Lula. Ao não romper com o capitalismo e manter a exploração, a alienação e a miséria, esses governos aos poucos perdem força e abrem espaço para que a direita volte, devidamente legitimada pelas urnas.

Mesmo assim, insistem, mesmo que Lula e o PT quisessem, não haveria condições de enfrentar a burguesia nacional e internacional, romper com o capitalismo e avançar para o socialismo no Brasil. Mas aqui se trata de duas questões distintas: uma coisa são as condições para uma transição ao socialismo no Brasil neste momento, outra coisa é a questão de determinar se em algum aspecto que seja a politica do PT aponta para uma luta contra o capitalismo. Pois não se trata de que Lula e o PT não podem avançar para o socialismo, mas de que não querem. Seu projeto é gerir o capitalismo sem conflitos, agradando a todas as classes e de preferência enchendo as cuecas de dinheiro no processo. Se a questão é realmente trabalhar por uma ruptura com o capitalismo, o primeiro passo é romper politicamente com o PT e construir outro projeto. Esse é o verdadeiro desafio, tanto para os que estão votando nulo como para os que votarão em Dilma querendo votar contra a direita.


A necessidade da disputa ideológica


Alguns podem dizer que mesmo que não se trate de um projeto de transição ao socialismo, a gestão do PT mais ajuda do que atrapalha nesse sentido. Mas será mesmo que não atrapalha? Para responder a essa questão, é preciso abordar minimamente alguns pressupostos de uma transição ao socialismo, como a independência de classe e a disputa ideológica.

Mesmo que a próxima onda da crise mundial demore para chegar ao Brasil, toda e qualquer melhoria que se obtenha, supondo-se que se vá conseguir alguma, será muitíssimo limitada e temporária, como as que se obtiveram em governos burgueses anteriores. Não é mais possível falar em reformar o capitalismo em plena vigência de sua crise estrutural. Ao não enfrentar o capitalismo, o PT não é capaz de obter nenhuma melhoria real e duradoura para os trabalhadores. Os ganhos paliativos são revertidos se não houver organização e preparação da classe para defender suas condições de vida e lutar por ganhos reais. E para que haja essa organização, é preciso desenvolver uma consciência socialista, o que exige romper ideologicamente com a sociedade burguesa. Eis mais uma tarefa para a qual o PT não está habilitado. O recuo de Dilma em relação à descriminalização do aborto é bastante eloqüente a respeito da venalidade ideológica do PT.

O PT não enfrenta a questão fundamental, a questão do poder social. A hegemonia permanece nas mãos da burguesia. Tanto é assim que Lula não transferiu automaticamente sua popularidade para a votação do PT. Os festejados 80% de aprovação do governo Lula não se transformaram automaticamente em votos suficientes para dar a Dilma a vitória no 1 turno. Os estrategistas do PT devem estar coçando a cabeça para descobrir porque. A resposta é que "a gente não quer só comida", como dizia o poeta. O PT foi incapaz de oferecer um projeto, uma ideologia, uma utopia, um discurso, um sentido que empolgue e apaixone as pessoas. Na ausência disso, os 80% de brasileiros que apóiam Lula se tornam presas fáceis para o discurso da direita, para a pregação da igreja e dos evangélicos contra a descriminalização do aborto, para o sensacionalismo moralista e hipócrita da mídia com sua "ética na politica" contra os escândalos de corrupção, etc. Ao não ter um projeto de sociedade diferente do projeto da burguesia, o PT não tem como politizar o debate a seu próprio favor. O terreno da ideologia, da perspectiva de classe, da visão de mundo, da consciência de classe, da solidariedade e do coletivo, constitui mais um aspecto em relação ao qual o PT não serve como defesa contra a burguesia.

Certamente é bastante irritante ver a mídia burguesa, os Estadões, Folhas, Vejas e Rede Globos da vida fazendo abertamente campanha para o PSDB, pois essa campanha, embora seja desencadeada em torno da disputa eleitoral contra o PT, tem como verdadeiro alvo as lutas da classe trabalhadora, das quais o PT já está muitíssimo distante – na verdade, no lado oposto. Para reagir contra o asqueroso discurso da mídia burguesa, a resposta não é chamar o voto em Dilma, mas argumentar em favor das lutas da classe, da luta por emprego, salário e condições de trabalho, da luta pela terra, por moradia, saúde, educação, cultura, da luta contra a criminalização do aborto, enfim, das lutas que podem conduzir à emancipação da classe. Lutas que o PT não vai encaminhar, ao contrário, vai impedir.

Não chamamos o voto nulo para fazer um ataque sectário aos companheir@s que estão cedendo à pressão do voto em Dilma, mas para chamá-los a refletir sobre a dramaticidade do momento histórico em que vivemos. Quando alguns ativistas e militantes sérios consideram que votar no PT é uma defesa contra a direita, ou a única defesa, isso demostra na verdade o quanto estamos indefesos. Ou seja, o quanto a classe trabalhadora esta órfã de um projeto.

Os partidos operários têm os seus projetos, os seus discursos. Alguns chamam a "derrotar Serra nas urnas e Dilma nas ruas", outros chamam o "voto contra Serra" (que pode ser um voto em Dilma ou nulo), formulações puramente retóricas que não respondem à questão fundamental: com que força social organizada se espera derrotar Dilma nas ruas? Como se espera organizar e conscientizar a classe trabalhadora para derrotar o projeto burguês conduzido pelo PT chamando voto no PT?

A crise da alternativa socialista


Há um problema de fundo, que mesmo as organizações que estão propondo a politica que considero correta neste momento, o voto nulo, não estão abordando, que é a crise da alternativa socialista. Devemos sim chamar a classe trabalhadora para fazer oposição ao PT nos sindicatos e derrotar o governo burguês de Dilma nas ruas, mas em nome de qual projeto? Qual é a alternativa?

Quando se diz que o socialismo é a única alternativa, não é porque se considera que ele esteja logo ali, depois da esquina, ao alcance da mão. Pelo contrário, o socialismo não vai "chegar", ele não vai vir pronto, porque precisa ser construído, elaborado, imaginado, experimentado, sonhado, numa luta permanente contra as misérias materiais e espirituais da realidade existente. Mais do que um "modelo" de gestão da economia e da sociedade, o socialismo é uma ruptura com a alienação, porque exige que os trabalhadores tomem sob seu controle todos os aspectos de sua vida, de forma consciente e responsável, de uma forma que não haja mais patrões e trabalhadores, governantes e governados, dirigentes e dirigidos, pensadores e trabalhadores braçais, mas que haja seres humanos completos capazes de desenvolver todos os seus potenciais. Muito além da tomada do poder político, o socialismo envolve uma completa reformulação das relações sociais. O socialismo pode estar mais ou menos distante do horizonte imediato, questão que é preciso acompanhar sempre, pois o tempo histórico tanto pode estagnar como produzir acelerações repentinas, em que a consciência avança em meses aquilo que não pode avançar em anos ou décadas. Seja como for, o primeiro passo na direção do socialismo não será dado votando em Dilma, confiando no PT.


Por um Movimento Político dos Trabalhadores

Mas para irmos concluindo, qual é então a alternativa, qual é a saída? Basta votar nulo? É evidente que não, por tudo o que dissemos. A ação politica da classe trabalhadora não passa preferencialmente por opções de voto, mas pela luta, pela retomada dos espaços de organização existentes (sindicatos) e a construção de novos organismos, pela renovação da teoria e da prática do socialismo, pela disputa da consciência contra a ideologia burguesa dominante, pela construção de espaços em que se efetivem práticas emancipatórias e se projetem novas relações socialistas.

Uma tarefa desse porte excede as forças dos agrupamentos hoje existentes. Nem o PSOL, o PSTU, o PCB, o PCO, ou uma frente de agrupamentos menores como o próprio Espaço Socialista, mais os ativistas hoje independentes, têm condições de vencer esse desafio. As dificuldades são enormes, mesmo se todos os setores da esquerda atuassem unificados. Separados como estão no momento, tornam-se proibitivas. Precisamos tirar lições de nossos erros e impedir que se repitam no futuro. A unidade da esquerda se coloca no próximo período como uma questão mais vital do que nunca. Precisamos construir um Movimento Politico dos Trabalhadores, em que as organizações e os ativistas independentes preservem suas diferenças de concepção, mas consigam encontrar uma referência comum de organização para as lutas que virão, um projeto que possa ser levado ao conjunto da classe como alternativa contra a barbárie capitalista.



Daniel M. Delfino
31 de Outubro de 2010