28.12.11

Pacote 2011

Por uma série de motivos que escaparam ao controle do seu autor, entre os quais o excesso de tarefas e a indefinição em relação aos projetos de intervenção nas chamadas “redes sociais”, o blog Politica PQP não teve nenhuma postagem em 2011 (na verdade, desde meados de 2010 já não havia atualizações sistemáticas).

Nesta virada do ano, quando alguns daqueles problemas foram superados e as coisas estão melhor definidas, procuramos superar esse atraso.

Os textos abaixo foram publicados desde meados de 2010 e ao longo do ano de 2011 nos jornais e no site do Espaço Socialista. Somente agora estão sendo publicados num pacote especial no Politica PQP, que está sendo reativado e voltará a ter postagens regulares em 2012.
A “decadência” estadunidense e a luta pela revolução (11/11/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/decadencia-estadunidense-e-luta-pela.html

As campanhas salariais do 2º semestre e o obstáculo das direções governistas (04/11/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/as-campanhas-salariais-do-2-semestre-e.html

A ditadura do microfone em São Paulo (09/10/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/ditadura-do-microfone-em-sao-paulo.html

A fome no mundo e o fracasso do capitalismo (01/10/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/fome-no-mundo-e-o-fracasso-do.html

Endividamento e crise social na Europa (15/08/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/endividamento-e-crise-social-na-europa.html

O rock errou: de Woodstock ao Rock in Rio (14/08/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/o-rock-errou-de-woodstock-ao-rock-in.html

A crise do endividamento nos Estados Unidos (12/08/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/crise-do-endividamento-nos-estados.html

“Paradise now”: um retrato humano da luta palestina (28/06/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/paradise-now-um-retrato-humano-da-luta.html

Bancários: após as eleições, organizar a campanha salarial (27/06/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/bancarios-apos-as-eleicoes-organizar.html

Obama X Osama e a política do espetáculo (07/05/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/obama-x-osama-e-politica-do-espetaculo_28.html

O legado da ditadura e a novela “Amor e Revolução” (07/05/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/o-legado-da-ditadura-e-novel-amor-e.html

Desastres naturais e a barbárie nuclear do capital (27/03/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/desastres-naturais-e-barbarie-nuclear.html

A degradação do trabalho bancário (30/03/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/degradacao-do-trabalho-bancario.html

Democracia para quem, cara pálida? (27/03/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/democracia-para-quem-cara-palida.html

Para além das enchentes: a lógica capitalista e a degradação das cidades (15/02/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/para-alem-das-enchentes-logica.html

O comunismo e a internet (15/02/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/o-cumunismo-e-internet.html

Crise, rebelião social e a necessidade da alternativa socialista (14/02/2011)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/crise-rebeliao-social-e-necessidade-de.html

Para acabar com o crime, só com o fim do capitalismo (10/12/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/para-acabar-com-o-crime-so-com-o-fim-do.html

A revolução dos “jacobinos negros” no Haiti (03/11/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/revolucao-dos-jacobinos-negros-no-haiti.html

Nosso voto é pela luta (18/07/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/nosso-voto-e-pela-luta.html

Em defesa do voto nulo (18/07/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/em-defesa-do-voto-nulo.html

Por um voto classista aberto (18/07/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/por-um-voto-classista-aberto.html

As eleições e a alternativa socialista (18/07/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/as-eleicoes-e-alternativa-socialista.html

Eleições 2010: nosso voto é pela luta (02/07/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/eleicoes-2010-nosso-voto-e-pela-luta.html

Contra a criminalização dos movimentos sociais (01/06/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/contra-acriminalizacao-dos-movimentos.html

Por um programa socialista nas lutas e nas eleições (24/05/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/por-um-programa-socialista-nas-lutas-e.html

Eleições 2010: o falso debate e a alternativa dos trabalhadores (11/04/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/eleicoes-2010-o-falso-debate-e.html

Copa 2010: torcer ou não torcer, eis a questão (24/05/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/copa-2010-torcer-ou-nao-torcer-eis.html

Oscar 2010: Porque “Guerra ao terror” e não “Avatar”? (12/04/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/oscar-2010-por-que-guerra-ao-terror-e.html

Situação mundial e nacional no início de 2010 (01/02/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/situacao-mundial-e-nacional-no-inicio.html

Os sindicatos e a formação dos trabalhadores (06/01/2010)
http://politicapqp.blogspot.com/2011/12/os-sindicatos-e-formacao-dos.html

A "decadência" estadunidense e a luta pela revolução


Nos últimos anos tem surgido toda uma literatura em torno de um suposto declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica mundial. Esse discurso emana tanto de ideólogos burgueses, acadêmicos, economistas, jornalistas, etc., como também de teóricos e organizações da classe trabalhadora. Em geral tal literatura apresenta como maior evidência desse declínio a ascensão de novos "concorrentes" ao papel de liderança mundial, entre os quais um conjunto de países agrupados sob a sigla de BRICs (ou seja, Brasil, Rússia, Índia e China). Às vezes, basta apresentar apenas o crescimento da China, que em algumas décadas saltou para o posto de 2º maior PIB do planeta, para que com isso se "preveja" em breve a superação dos Estados Unidos.

As elaborações dos ideólogos da burguesia não têm qualquer valor científico, pois tratam os dados estatísticos como se pudessem indicar mecanicamente tendências que se manteriam supostamente inalteradas pelos próximos anos ou décadas. Como se não houvesse uma série de variáveis capazes de interferir no curso “natural” dos acontecimentos, tais como a intervenção consciente de sujeitos históricos que lutam para reverter ou aprofundar as tendências em andamento em função de seus interesses de classe. Assim, ignorando levianamente a complexidade do devir histórico-social, os ideólogos podem arbitrariamente "marcar no calendário" a data em que a China vai superar os Estados Unidos (2020? 2030?), o Brasil vai entrar para o 1º mundo (2030, 2040?), etc., como se não pudesse haver qualquer tipo de "acidente de percurso" ou inversão das tendências.

O ritmo da decadência

Entretanto, no que diz respeito às organizações dos trabalhadores, o discurso que fala em declínio dos Estados Unidos tem alguns desdobramentos teóricos e políticos importantes. Em primeiro lugar, é preciso verificar se de fato existe esse declínio dos Estados Unidos. Do ponto de vista da economia, o peso relativo do PIB estadunidense já chegou a ser de quase 50% da produção mundial, no pós-II Guerra (http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Fria). Inversamente, o PIB dos emergentes representa hoje mais de 43% do PIB mundial, enquanto os PIBs dos Estados Unidos e Europa somados não chegam a 36% (http://interessenacional.uol.com.br/artigos-integra.asp?cd_artigo=7) .

Entretanto, para além da medição quantitativa do PIB, as relações de poder entre os países são estruturadas também em torno de outros componentes, entre os quais o poderio militar, a influência política, cultural, etc. Assim, por mais que outros países estejam experimentando um forte crescimento e os Estados Unidos uma relativa decadência, isso não se reflete automaticamente numa mudança imediata da hierarquia internacional. Há uma série de outros fatores que podem retardar a perda da hegemonia estadunidense:

- os Estados Unidos são detentores da moeda internacional, o dólar, que apenas começou a ser desafiado, e está longe de perder o papel de principal meio de troca (certamente que não ignoramos o crônico endividamento público e privado como fator de crescente enfraquecimento do dólar) para outros concorrentes como o euro (que enfrenta sérios problemas, como acompanhamos diariamente nos jornais);

- os Estados Unidos são responsáveis por quase metade dos gastos militares do planeta, mais do que a soma dos 17 maiores orçamentos militares imediatamente abaixo (http://www.tribunadaimprensa.com.br/?p=19805). Possuem milhares de armas nucleares, um gigantesco aparato de tanques, navios, submarinos, aviões e satélites, um efetivo de milhões de soldados, centenas de bases militares em todos os continentes, uma vasta rede com milhares de agentes de inteligência e espionagem (cujas façanhas podem ser vistas no Wikileaks), o que lhes dá larga superioridade bélica perante qualquer adversário hipotético ou até mesmo sobre a soma de todos os possíveis rivais;

- os Estados Unidos ainda estão na liderança da pesquisa cientifica e tecnológica, em áreas como computação, biotecnologia, aeroespacial, etc., que são as áreas de ponta da economia. Juntamente com algumas outras potências imperialistas, como Japão e Alemanha, ainda dominam o setor produtor de bens de produção, onde se materializa essa superioridade científica e tecnológica. Países emergentes se limitam a copiar e reproduzir as técnicas de produção que vêm dos centros imperialistas, não sendo capazes de desenvolver produtos por conta própria;

- as corporações estadunidenses constituem um verdadeiro Estado paralelo no interior dos Estados nacionais periféricos, associando-se de diversas formas a frações da burguesia nacional e corrompendo políticos e instituições, de modo a poder controlar o fornecimento de matérias-primas vitais, como petróleo e minérios, commodities agrícolas, etc., ou monopolizando a produção industrial, o comércio, as finanças, etc., no interior de cada país. Esses laços estão fortemente consolidados e contam com uma ampla rede de proteção, tanto de suas forças armadas e de inteligência, mas também dos próprios Estados periféricos e suas forças armadas, ou de agentes mercenários, contra as populações locais e concorrentes estrangeiros;

- os produtos da indústria cultural estadunidense avançam sobre as culturas nacionais do mundo inteiro, com poucas exceções, tanto por meio dos conteúdos do cinema e da música, como do estilo da programação da televisão, do jornalismo e da internet, ou mesmo controlando diretamente as empresas locais de mídia e entretenimento. Assim, a indústria cultural estadunidense molda os gostos e preferências do público, oferece "heróis" e modelos de identificação, lança modismos e comportamentos, cultiva aspirações, desejos e motivações, cria uma ética individualista, competitiva, imediatista, consumista, materialista e venal, construindo um ambiente ideológico pró-estadunidense ou no mínimo pró-capitalista.

Conseqüências da disputa interimperialista

Não basta portanto olhar apenas para os números da economia para com isso determinar que em breve a China vai ultrapassar os Estados Unidos, pois falta estar em condições de controlar militarmente ou influenciar a política, os mercados, e a cultura de centenas de países. É graças a esse controle e influência que os Estados Unidos ainda são a maior potência mundial, inclusive no terreno da economia.

Além disso, a burguesia estadunidense não vai assistir passivamente à erosão de seu poderio e ao surgimento de desafiantes capazes de lhe arrebatar a supremacia mundial. Pelo contrário, como já vimos na história, os impérios decadentes se tornam cada vez mais violentos e belicosos na defesa de seus interesses. Foi isso que provocou as guerras mundiais no passado. Conforme o desafio se torne mais concreto e palpável, a tendência é de que o imperialismo desenvolva e aprofunde as formas que já estamos vivenciando de uma guerra mundial mais ou menos disfarçada, a qual envolve expedientes como a “guerra ao terror”, “guerra às drogas”, guerras de ocupação colonial sob o pretexto de “intervenção humanitária”, criminalização da pobreza, repressão aos movimentos sociais, esvaziamento da democracia formal, autoritarismo estatal, manifestações de fascistização social (xenofobia, racismo, homofobia, conservadorismo moral, etc.);

Mas a questão mais importante não é apenas determinar se os Estados Unidos estão em decadência ou não e, em caso positivo, qual potência poderá substituí-los, mas entender que relação esse processo teria com a luta pela emancipação dos trabalhadores.

A necessidade de uma ofensiva socialista

Boa parte do discurso da decadência estadunidense adota um tom “comemorativo”, como se esse enfraquecimento dos Estados Unidos fosse por si só um fato positivo para os trabalhadores. No interior do movimento operário há vários setores reformistas que torcem pela decadência estadunidense e a festejam como se o problema da humanidade fosse um problema de nacionalidade e não de classe social. Pregam o “antiamericanismo” (sic), como se o problema do mundo fossem os Estados Unidos e não o capitalismo. Festejam o surgimento de um “mundo multipolar” (como se a existência de vários pólos imperialistas fosse melhor do que a de uma única potência), festejam o “novo equilíbrio de poder”, festejam a “democratização das instituições internacionais”, festejam o surgimento de “contrapesos” ao domínio estadunidense, festejam a ascensão de “novos atores globais” (como se a ONU, a OMC, o FMI, o G20 pudessem ser mais favoráveis aos trabalhadores por terem um peso ligeiramente maior dos BRICs e dos emergentes), entre outras imbecilidades.

Essa comemoração irresponsável omite o problema fundamental, que é quebrar a lógica do capital. A luta pela revolução socialista deve ser travada não apenas contra uma determinada potência imperialista A, B ou C, mas contra o conjunto do sistema capitalista mundial e sua lógica de reprodução social. A classe trabalhadora não pode se limitar a “torcer” pela decadência dos Estados Unidos ou por qualquer tipo de “novo equilíbrio” de poderes. De nada adianta atuar como espectadora passiva da disputa entre as potências. O poder de reconstruir a vida social não cairá do céu no colo dos trabalhadores por descuido dos donos do mundo que se digladiam acima: terá que ser arrancado com luta. A classe trabalhadora precisará se colocar a questão do poder social e da revolução, contra os Estados Unidos ou qualquer potência que os suceder.

A disputa entre as potências imperialistas pode resultar em enfraquecimento momentâneo do sistema capitalista como um todo e em oportunidade para a revolução. Mas para que a revolução aconteça e seja vitoriosa é preciso que, além da crise do capitalismo, haja uma ofensiva da classe trabalhadora pela transformação socialista, o que exige uma série de pré-requisitos: a construção de organismos de luta que possam se configurar em instrumentos de poder da ditadura do proletariado (ou seja, da democracia operária), e no interior dos quais atuem organizações revolucionárias que funcionem como expressão mais avançada e sistemática da consciência socialista, a qual deve estar disseminada o mais amplamente possível. Sem esses pré-requisitos da auto-organização da classe trabalhadora a revolução não conseguirá ir além da tomada do poder político e não avançará para uma auto-administração socialista da vida social.

Daniel Menezes Delfino
11/11/2011

As campanhas salariais do 2º semestre (2011) e o obstáculo das direções governistas


O discurso de que tudo vai bem no país

Está em curso um operativo político-ideológico que visa convencer o conjunto da população de que o país está no rumo certo para o “crescimento”, e de que a classe trabalhadora deve continuar “fazendo a sua parte”, o que na verdade significa que os trabalhadores devem continuar suportando o aumento da exploração em benefício da burguesia. Esse convencimento permite ao governo Dilma/PT/PMDB seguir aplicando o projeto de interesse da burguesia, mantendo a classe trabalhadora sob controle. Parte essencial desse operativo politico-ideológico são os próprios organismos de luta da classe trabalhadora.

Os principais sindicatos e centrais do país, que representam as principais categorias, estão sob controle de um grupo politico, a Articulação, grupo hegemônico do PT e da CUT, que juntamente com outras correntes (CTB, Força Sindical, UGT, etc.), tem como objetivo impedir o desenvolvimento de lutas que questionem a aplicação do projeto do governo. No segundo semestre de todo ano acontecem as datas-bases de importantes categorias, tais como metalúrgicos, petroleiros, químicos, bancários, funcionários dos correios, que atuam em setores-chaves da economia. As campanhas salariais dessas categorias, se fossem bem organizadas, teriam o poder de paralisar a economia e colocar em xeque a aplicação do projeto do governo, forçando a patronal a fazer concessões. Justamente por isso, as direções sindicais cutistas/governistas trabalharam de todas as formas para desorganizar as campanhas e impedir o seu desenvolvimento.

Os métodos para enfraquecer as greves

O enfraquecimento das campanhas salariais começa pela separação entre as diversas categorias, ou seja, por um calendário em que as datas para deflagração das greves não coincidem. Greves conjuntas poderiam resultar em piquetes conjuntos, assembleias conjuntas, atos e passeatas unificadas, ações de grande impacto junto à sociedade, em que as reivindicações dos grevistas se contrapusessem ao discurso de que “o país está no caminho certo". Para evitar isso, as datas de assembleias e greves são escalonadas pela burocracia, para que não coincidam. Apenas bancários e correios estiveram em greve simultaneamente por alguns dias.

O segundo dispositivo consiste em, no interior de cada categoria, despolitizar a campanha, tirando o foco das questões políticas de fundo. Em correios, por exemplo, a greve foi marcada para meados de setembro, depois da votação da MP 532 no início do mês, que criara o marco legal para a transformação da Empresa de Correios e Telégrafos em SA e para a privatização. Com isso, impediu-se que a greve tivesse um conteúdo de luta contra a privatização.

O terceiro passo consiste em rebaixar as reivindicações. Quem começa pedindo pouco acaba fechando por menos ainda. Assim, em bancários, por exemplo, as perdas salariais acumuladas desde o plano real em 1994 estão em 89% no Banco do Brasil e 98% na Caixa Econômica. Mas a Articulação começou a campanha reivindicando apenas 12,5% e fechou acordo com míseros 9%! E ainda sai propagandeando “ganho real” acima da inflação (o índice oficial de inflação maquiado pelos institutos governistas foi de 7,5%).

O quarto componente do método da burocracia se refere à própria condução da campanha, à falta de espaços democráticos. O comando de negociação é composto apenas por dirigentes sindicais, afastados dos locais de trabalho, fechados com a linha da Articulação, sem participação de representantes de base.

A ditadura do microfone

Nas assembleias dirigidas pela Articulação e seus satélites vigora a ditadura do microfone, em que apenas a diretoria fala e os trabalhadores comparecem apenas para votar a favor ou contra. Não são abertas inscrições, não se permite fazer propostas, não se colocam as propostas em votação. E o cúmulo do desrespeito acontece quando as propostas apresentadas pelas oposições (depois de muita luta pelo direito básico de falar) ganham uma votação, mas não são encaminhadas pela diretoria.

Na greve dos bancários, em São Paulo, na assembleia de 05 de outubro, foram aprovadas várias propostas organizativas defendidas pelas oposições (assembleias unificadas, no horário das 16:00, para barrar os fura-greves), mas a mesa não aceitou o resultado e encerrou a assembleia, num brutal atentado contra a democracia operária! Vídeos e textos sobre essa assembleia se encontram disponíveis na internet (http://frentedeoposicaobancaria.org/noticias/a-assembleia-de-510-em-sp-e-a-luta-por-democracia/). Novas assembleias só aconteceram 12 dias depois, no dia 17, para esvaziar o processo de auto-organização dos trabalhadores que estava ocorrendo nas plenárias espontâneas após as assembleias. Além disso, as assembleias do dia 17 foram marcadas desrespeitando ostensivamente os encaminhamentos organizativos aprovados no dia 5. Em assembleias separadas de BB, CEF e privados, depois das 18:00hs, com a presença massiva de gerentes e fura-greves, a Articulação conseguiu aprovar o acordo rebaixado e encerrar a campanha, pois jamais conseguiria aprovar esse acordo com o voto dos grevistas.

O cerco da mídia e do Estado

Outro elemento importante do operativo de combate às greves é a participação da mídia. Os meios de comunicação em geral jogam a população contra os grevistas e atuam em sintonia com as direções governistas para sabotar o movimento. Na greve dos Correios as rádios e os jornais da manhã do dia 4 de outubro davam como encerrada a greve, pois “os trabalhadores” haviam aceito o acordo negociado com a mediação do TST no dia anterior. Acontece que os dirigentes sindicais não falavam em nome dos trabalhadores, pois nas assembleias do dia 4 os ecetistas recusaram a proposta e prolongaram a greve, que continuou até a semana seguinte.

Quando todos esses elementos falham, a patronal, o governo e a burocracia sindical podem contar com a repressão pura e simples. Para encerrar a greve dos Correios, o TST determinou os termos do acordo e impôs o desconto e a compensação de parte dos dias parados. Os ministros do TST ainda passaram um “pito” nos dirigentes sindicais, que não haviam tido a competência de fazer seu trabalho, ou seja, encerrar a greve na semana anterior.

As limitações das oposições e a alternativa

Contra todas essas armas da burocracia da Articulação e seus satélites, a postura das correntes que se reivindicam como oposição, como Conlutas e Intersindical, se mostrou bastante insuficiente. A começar pela questão ideológica, o eixo escolhido pela Conlutas, "O Brasil cresceu, o trabalhador quer o seu”, não serviu para armar os trabalhadores. Essa formulação tem vários problemas: reduz ao economicismo, como se o objetivo das campanhas fosse apenas aumento de salario; vincula a remuneração do trabalhador ao desempenho das empresas, pois condiciona a parte do trabalhador ao crescimento do lucro, legitimando assim o aumento da exploração; endossa o discurso do governo Dilma de que o país está no rumo do crescimento, sem questionar a custa de quê esse crescimento esta sendo obtido; não arma para os períodos de crise, em que não vai haver crescimento. Além disso, os militantes da Conlutas aceitam acordos com as direções cutistas e seus satélites que lhes permitem usar o microfone nas assembleias, mas desde que não usem para questionar todo o caráter burocrático e cupulista das assembleias e da campanha.

Para que os trabalhadores possam ter o controle de suas lutas nas campanhas futuras, não há outro caminho a não ser desenvolver um forte trabalho de base, com organização a partir dos locais de trabalho para as lutas cotidianas. Somente assim os trabalhadores podem chegar com força ao momento das campanhas salariais e enfrentar o controle das burocracias governistas. É preciso ainda desenvolver a consciência de que as lutas devem ser travadas não por categorias isoladas, mas pelo conjunto da classe, e não apenas contra uma ou outra empresa ou setor da economia ou do Estado, mas contra todo o sistema capitalista.

Daniel Menezes Delfino
04/11/2011

A ditadura do microfone nas assembleias de bancários em São Paulo


Na maior base da categoria bancária em todo o país, com mais de 110 mil trabalhadores, vivemos a ditadura do microfone. A diretoria do sindicato, da corrente Articulação/CUT, não permite que pensamentos divergentes sequer se manifestem em assembléia. Procedimentos elementares da democracia são diariamente pisoteados no nosso movimento.

Para começar, as assembléias nem sequer são diárias, acontecem quando a diretoria quer. São marcadas em dias alternados, no menor número possível, para restringir ao máximo os espaços de debate.

As assembléias acontecem na quadra dos bancários, no centro da cidade, com credenciamento controlado, sendo que a burocracia pode trazer “convidados”, “observadores” e pessoal de “apoio” a seu critério, mas não admite que militantes de outras categorias possam entrar para nos apoiar e contribuir. Há dias em que é até mesmo proibido panfletar dentro da quadra! Só pode circular a Folha Bancária, jornal do sindicato, no qual aliás, só a diretoria escreve.

Dentro da quadra, há um palco em que se instala a mesa, cujo acesso é bloqueado por um batalhão de seguranças contratados. Os bancários devem ficar afastados, como uma platéia, cuja única função é levantar o crachá para votar.

A diretoria se instala como mesa, ignorando o preceito básico de que, em qualquer fórum dos trabalhadores, a mesa deve ser eleita pelo plenário, com composição proporcional entre as correntes e representação da base.

Do alto do palco, a diretoria se põe a dar informes infindáveis, sem qualquer conteúdo político ou organizativo, exaltando sua ação na greve, que, na verdade, não existe.

O formato da assembléia é totalmente controlado pela burocracia. Não são acatadas propostas de encaminhamento ou questões de ordem. As votações que acontecem são aquelas que a diretoria determina. A mesa determina se vão haver ou não inscrições, se vão haver ou não votações, etc.

Raramente são abertas inscrições, e quando se abrem, dezenas de burocratas se inscrevem. Com isso, em face de um número inviável de falas, a mesa propõe o "sorteio" de um número limitado de inscrições, para "garantir as falas". Invariavelmente os burocratas têm mais falas e sempre falam por último.

Na maior parte dos casos, a mesa “concede” falas para as correntes/centrais sindicais/partidos, como se fosse um gesto de boa vontade, e ignorando completamente os bancários que não estão vinculados a nenhuma corrente, que são a maioria.

Lamentavelmente, algumas correntes que se reivindicam oposição, como MNOB e Intersindical, quando têm o direito à fala, não o usam para denunciar esse formato de assembléia e exigir falas para a base. Usam como palanque para agitar as palavras de ordem que são prioridade para a corrente/partido naquele momento. Não se confrontam com a burocracia para propor medidas que possam romper com o roteiro da burocracia e realmente democratizar o movimento.

Quando a oposição consegue falar e fazer propostas para melhor organizar a greve, as propostas não são colocadas em votação. Quando há votação de alguma proposta organizativa, não é dado tempo de fazer defesas, mas a diretoria fala contra as propostas pelo tempo que quiser. Quando se permite fazer defesas, a mesa interpreta as propostas a seu modo e embaralha tudo numa fala só para confundir os bancários, não dando tempo de explicar os detalhes. E o cúmulo do absurdo, há propostas que são votadas, mas que não são encaminhadas pela diretoria!!

Quando é votada a continuidade ou não da greve, a diretoria dá por encerrada a assembléia e desliga o microfone, induzindo à dispersão dos bancários. Com isso, não se discutem as medidas organizativas mínimas para dar força e visibilidade a uma greve, como organização dos piquetes, atos, passeatas, panfletagens, etc.

Para completar, na hora de encerrar a greve, a burocracia marca assembléias separadas por banco (BB, CEF e privados, em locais diferentes), no horário das 7 da noite (começando às 8 ou mais), em acordo prévio com a direção dos bancos, que manda os gerentes e fura-greves em massa para votar a favor das propostas rebaixadas, que a burocracia defende desavergonhadamente como "vitória".

Esse tipo de assembléia somente acontece devido ao esvaziamento da vida política do sindicato, que não realiza assembléias preparatórias, plenárias, reuniões de delegados sindicais, etc., de modo que a base se distancia cada vez mais da entidade. Nos bancos privados (85% da base) não há qualquer tipo de trabalho de organização, de modo que os trabalhadores não podem participar das greves e atividades sindicais sem sofrer demissão ou retaliação, e os poucos que participam são voto cativo da diretoria.

Os funcionários dos bancos públicos, que já presenciam essa farsa há anos, odeiam a diretoria e se dessindicalizam em massa a cada campanha salarial. Os que ainda aderem à greve o fazem por puro senso de dignidade, mas em número cada vez maior se recusam a comparecer ao verdadeiro "circo" que são essas assembléias convocadas pela burocracia.

Isso só vai mudar quando os bancários tomarem de fato a luta em suas mãos e se tornarem protagonistas do movimento. Essa mudança exige um longo processo de organização e conscientização dos trabalhadores, que deve acontecer o ano inteiro, não apenas nas campanhas salariais.

É o que nós do Coletivo Bancários de Base estamos propondo. Durante a greve exigimos democracia nas assembéias, exigimos o direito à fala para todos os bancários, exigimos respeito às decisões coletivas. E apresentamos o projeto da Frente Nacional de Oposição Bancária, que identificamos como um sindicalismo comprometido com a base e as lutas dos trabalhadores.

Somente juntos poderemos derrotar os patrões, os governos e seus servidores na CUT e outras centrais governistas!

Daniel Menezes Delfino
Coletivo Bancários de Base – São Paulo
Frente Nacional de Oposição Bancária
09/10/2011

A fome no mundo e o fracasso do capitalismo


O cinismo da burguesia


Periodicamente o tema da fome retorna à pauta, cada vez que uma seca ou uma guerra ameaça a vida de milhões de pessoas, que aparecem esquálidas na televisão. Essas imagens resultam em campanhas beneficentes e apelos por doações, que mobilizam as boas intenções dos trabalhadores. Entretanto, permanece oculta a questão da origem social da fome e do desprezo pela vida humana inerente ao sistema capitalista.


Para que se tenha uma idéia do grau de cinismo da burguesia, a ONU requisitou ao todo US$ 2,4 bilhões em 2011 para combater a fome no chamado chifre da África (Djibouti, Somália, Etiópia e Kênia), que ameaça 12 milhões de pessoas, mas recebeu apenas US$ 1 bilhão. Segundo dados divulgados pela ONU, enquanto os países pobres receberam, em meio século, cerca de US$ 2 trilhões em doações de países ricos, bancos e outras instituições financeiras ganharam, em apenas um ano, US$ 18 trilhões em ajuda pública (24.06.2009, http://www.cartamaior.com.br/).


O número de pessoas que passa fome no mundo deveria servir como prova eloqüente do FRACASSO DO CAPITALISMO. Um modo de produção que não consegue sequer alimentar 1/7 da população do planeta não pode ser considerado outra coisa que não um fracasso retumbante. Segundo o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), no mundo há cerca de 925 milhões de pessoas que passam fome, um número superior à soma das populações dos Estados Unidos, Canadá e União Europeia (20.07.2011, http://br.noticias.yahoo.com/graves-crises-fome-mundo-160006084.html). Isso para não falar de todo o restante da miséria e da violência, como as doenças, a falta de moradia, de saneamento básico, as guerras, a criminalidade, a corrupção, as diversas formas de opressão, etc.


Desmontando os mitos e compreendendo o fenômeno


Para discutir a fome, é preciso afastar de saída uma série de mitos: não há falta de terras cultiváveis no mundo, não há dificuldades técnicas para produzir alimentos e não há excesso de população. De acordo com a FAO, espera-se uma colheita recorde de cereais em 2011, que pode chegar a 2.315 milhões de toneladas (do site da ONU - http://www.onu.org.br/). 30% de todo o alimento produzido no mundo é jogado fora. O crescimento populacional está diminuindo e no ritmo atual deve se estabilizar até 2050, quanto o tamanho da família em quase todos os países pobres cairá para 2,2 filhos por mulher. Estimativas da ONU afirmam que pode haver mais 1 bilhão e 600 milhões de hectares de terras cultiváveis a se explorar, o que equivale a 16 milhões de km², quase o dobro da área do Brasil, a maioria espalhada pela África e América Latina, sem precisar invadir áreas florestais ou reservas naturais (dados do site http://hypescience.com/por-que-e-tao-dificil-acabar-com-a-fome-no-mundo/).

O que há é um quadro de desenvolvimento desigual e combinado, resultado da espoliação imperialista de continentes inteiros, como África, Ásia e América Latina, em que se localizam países extremamente pobres. Na divisão internacional do trabalho, esses países ocupam a posição de exportadores primários, geralmente dependentes de um único recurso mineral ou agropecuário, cujo controle cada vez mais passa para as mãos de empresas transnacionais. Em geral esses recursos são explorados de maneira predatória, provocando a destruição de ecossistemas e terras férteis e até escassez de água (por conta da poluição e do uso na agricultura intensiva e na indústria), agravando ainda mais a miséria. A renda gerada por essas atividades é também desviada para o pagamento de dívidas externas fraudulentas. Alguns países africanos destinam até 20% do PIB à importação de alimentos (http://pt.euronews.net/, 22.06.2011).


A população desses países forma o exército industrial de reserva mundial, mão de obra extremamente barata, ou mesmo excedente, vítima de guerras de extermínio, limpeza étnica, pogroms, obrigada a migrar do campo e viver confinada em guetos e favelas, sob o domínio de organizações criminosas e seitas islâmicas e evangélicas, sem acesso à educação formal e serviços públicos mínimos. A fome é portanto parte de um quadro geral de miséria socialmente produzida e não uma fatalidade natural provocada pela seca ou pela “superpopulação”.


Crise estrutural, financeirização e a necessidade de uma saída para além do capital


Nas últimas décadas, caracterizadas pela crise estrutural do capital, aumentou a financeirização do capitalismo, na tentativa (condenada ao fracasso) de escapar das baixas taxas de lucro, inflando artificialmente o valor de papéis que representam o direito a mercadorias (ou a outros papéis). Entre essas mercadorias estão os alimentos (soja, trigo, carne, etc.), comercializados como "commodities". A especulação com os alimentos faz com que seus preços aumentem periodicamente, e que quando aconteçam quedas de preços, elas sejam também vertiginosas, prejudicando especialmente os pequenos agricultores, levando-os à falência. Em 2003, os especuladores tinham US$ 13 bilhões em commodities. Em março de 2008, US$ 260 bilhões! A grande onda aumentou o preço das 25 principais commodities para uma média de 183% naqueles cinco anos. Em março de 2011, investidores institucionais tiveram um recorde US$ 412 bilhões. Por isso os preços de petróleo e comida continuam tão altos (do site da AEPET, http://www.aepet.org.br/, 24.08.2011). Em 2011 os preços de alimentos aumentaram 26% no mundo em relação a 2010 (Globo.com, 11/09/2011).


Mais grave do que a especulação é o domínio que transnacionais como Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf, Bunge, Dow, Du Pont, Cargill, Unilever, Wall Mart exercem sobre a produção de sementes e a distribuição de alimentos no varejo. Essas empresas dominam mais de 75% do comércio mundial de grãos, 50% do comércio de sementes e 75% do mercado de fertilizantes, pesticidas e insumos agrícolas.


Todos esses dados mostram que não existe solução para o problema da fome no mundo sem enfrentar o sistema capitalista, questionando a propriedade privada dos meios de produção e estabelecendo uma gestão coletiva e racional dos recursos, através das organizações da classe trabalhadora.


- pelo fim do latifúndio, com a expropriação sem indenização das grandes propriedades, inclusive das multinacionais, e sob controle dos trabalhadores do campo!


- por uma agricultura coletiva, orgânica e ecológica voltada para as necessidades da classe trabalhadora!


Daniel Menezes Delfino
01/10/2011

Endividamento e crise social na Europa


“Panic on the streets of London! Panic on the streets of Birmingham!”
The Smiths, “Panic”



A atual crise de endividamento das grandes potências imperialistas está sendo tratada pela imprensa burguesa como uma espécie de acidente inesperado, como se tivesse surgido do nada. Essa desorientação é proposital, pois para explicar realmente o fenômeno seria preciso admitir a existência de defeitos fatais do capitalismo e a vigência de sua crise estrutural. A crise do endividamento não é um acidente, mas uma conseqüência direta das medidas que foram tomadas para enfrentar a crise anterior, em 2008. Todos os governos europeus, já altamente endividados, gastaram trilhões de dólares para salvar os bancos e demais especuladores da falência. Agora, os próprios governos estão à beira da falência. E para pagar suas contas, são obrigados a cortar gastos, o que afeta a vida de suas populações. As consequências desses cortes tem sido vistas na forma de uma onda de protestos e greves em vários países, e também sob formas mais inesperadas, como os violentos tumultos na Inglaterra.

Nem sequer havia sido contornado o problema dos países da periferia européia, como a Grécia (pacote de 110 bilhões de euros para evitar o calote em maio) e veio à tona a situação da Itália, a 3ª maior economia da zona do euro, com PIB equivalente a 18% do total do bloco e 120% de endividamento (só menor do que o da Grécia). Não há dinheiro suficiente para resgatar uma economia do tamanho da Itália. Na última hora o governo Berlusconi improvisou uma reforma constitucional comprometendo o governo a honrar suas dívidas com o mercado, mas mesmo isso não foi suficiente. Os bancos franceses e alemães, que possuem centenas de bilhões em títulos italianos, espanhóis e de outros países altamente endividados, se aproximaram perigosamente de um colapso ao estilo Lehman Brothers. Os índices das bolsas européias, assim como os estadunidenses, também caíram seguidamente no início de agosto, ora a pretexto da dívida italiana, depois da Bélgica, e assim sucessivamente. A divulgação dos números globais da economia (crescimento quase zero do PIB em vários países, como a própria França), não ajudou nada. Vários países chegaram a impor uma suspensão temporária da negociação de papéis de curto prazo (“short selling”) pelos bancos, numa tentativa desesperada de impedir as quedas no mercado.

A socialização dos prejuízos

Há muito tempo o limite de endividamento de 60% do PIB e déficit de 3% para países participantes do sistema do euro tornou-se uma ficção. Praticamente todos os governos europeus, dos maiores aos menores, descumpriam esses limites, o que se agravou drasticamente com a escalada de pacotes para salvar seus bancos e reativar suas economias desde 2008. Em função desse alto endividamento, os governos de vários países europeus só conseguem vender novos títulos oferecendo taxas de juros cada vez maiores. Isso faz com que aumente a dívida e diminua o prazo de pagamento, apontando para o momento inevitável do calote.

Para evitar o calote, entram em cena instituições como o FMI, o Banco Central Europeu e a própria União Européia, que fornecem pacotes de empréstimos para que os países endividados paguem suas dívidas de curto prazo. Em troca, esses governos precisam aprovar cortes nos gastos públicos, que aumentam impostos, privatizam patrimônio estatal e atacam os serviços públicos (saúde, educação, etc.), as aposentadorias, os direitos trabalhistas, etc. Em outras palavras, os trabalhadores são forçados a sofrer para que os seus governos continuem pagando os banqueiros.

As medidas de redução de gastos públicos contribuem para diminuir o consumo e desacelerar ainda mais a economia, diminuindo também a arrecadação de impostos e consequentemente a própria possibilidade de seguir pagando a dívida, num círculo vicioso. A crise da dívida européia está sendo comparada com a crise da dívida latino-americana do início dos anos 80, que levou à chamada “década perdida” sem crescimento econômico, e só terminou com o refinanciamento da dívida sob a forma de novos títulos denominados em dólares (“Plano Brady”, de autoria do então secretário do tesouro estadunidense), em 1989. Isso abriu o caminho para os programas de ajuste neoliberais da década de 1990, pois a condição dos credores para aceitar os novos títulos era que os países endividados abrissem suas economias ao comércio internacional, privatizassem empresas públicas e retirassem as proteções trabalhistas.

As consequências sociais da crise: o exemplo inglês

A divisão entre os países mais poderosos e os mais fracos se aprofunda no interior da Europa. Cada governo, motivado por questões de sobrevivência política imediata, tenta jogar sobre os outros países o ônus da crise. No momento em que seria mais urgente a unidade política européia, as burguesias nacionais de cada país entram num “salve-se quem puder”, com os mais fortes, como Alemanha e França, depauperando os mais pobres, como a Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e até Itália, impondo ajustes brutais contra suas populações, para garantir o pagamento desses países aos seus bancos.

A Inglaterra não faz parte da zona do euro, mas sofre com baixo crescimento (previsão de 1,4% em 2011, UOL, 14.08.2011), alto endividamento (US$ 2 trilhões, ou 70% do PIB e déficit fiscal de 11%, agência Carta Maior, 13.08.2011) e desemprego de 7,7% (http://www.statistics.gov.uk), segundo o índice oficial. A resposta do governo do primeiro-ministro conservador David Cameron foi um pacote de corte nos gastos públicos de US$ 130 bilhões até 2015 (Carta Maior, 13.08.2011), distribuídos entre os vários setores dos serviços públicos.

Em fins de 2010 o governo inglês aumentou as taxas de matrículas das universidades públicas, o que na ocasião já provocou uma onda massiva de protestos estudantis. Nos primeiros meses de 2011 houve o fechamento de espaços de lazer para a juventude, como parte de um pacote de cortes nos gastos sociais, que afetaram várias outras áreas do serviço público. Os jovens convivem com uma altíssima taxa de desemprego (de um total de 2,48 milhões de desempregados, cerca de 963 mil são jovens com menos de 25 anos de idade - traduzido de http://www.guardian.co.uk), combinada com a tentação do consumo estimulada pela publicidade onipresente, e com a brutalidade policial desses tempos de “guerra ao terror” (que já vitimou o brasileiro Jean Charles de Menezes, em 2005). Esses ingredientes somaram-se para produzir uma verdadeira bomba relógio social, que fatalmente explodiria.

A brutalidade policial acabou fazendo mais uma vítima fatal em 2011. Na sexta-feira 5 de agosto a polícia inglesa assassinou um jovem chamado Mark Duggan, um cidadão ingês negro, no bairro multiétnico de Tottenham, em Londres, por motivos que permanecem até agora inexplicados. Isso resultou numa onda de saques, depredações e incêndios, que tomou conta da capital Londres e várias outras cidades inglesas, como Birmingham, Liverpool e Manchester. Esse fenômeno é semelhante ao que aconteceu em Paris em novembro de 2005 e Atenas em dezembro de 2008, quando o assassinato de jovens pobres pela polícia provocou uma revolta da juventude em geral. Os jovens ingleses saquearam lojas de eletrônicos, depredaram e incendiaram prédios e automóveis, e enfrentaram a polícia durante quatro noites. Houve milhares de prisões, centenas de feridos e 5 mortes, até que a situação voltasse ao controle das autoridades.

A necessidade de uma alternativa socialista

O governo Cameron e a mídia burguesa trataram os acontecimentos como uma súbita onda de criminalidade, como se se tratasse de simples roubo e vandalismo. Um gigantesco efetivo policial foi mobilizado e discursos ferozes foram proferidos em defesa da segurança, da ordem e da propriedade. Isso não passa de uma tentativa desesperada de tapar o sol com a peneira. A crise social não é um “privilégio” da periferia da Europa, pois afeta um gigante global como a própria Inglaterra. Por mais que os funcionários da burguesia no Estado e na mídia se neguem a admitir, os tumultos de rua têm sim um importante significado político.

As ações dos jovens ingleses, mesmo que não apontem diretamente para uma luta política contra o Estado (como era o caso especialmente dos jovens atenienses em 2008), revelam uma série de componentes ideológicos: frustração com as promessas não cumpridas de prosperidade (desejo de consumo), ódio contra o Estado e suas instituições, especialmente a polícia, desprezo para com a lei e a propriedade, disposição de luta e coragem para enfrentar a autoridade.

Tudo isso precisa ser conduzido para as causas corretas: contra os cortes nos gastos sociais, contra o pagamento da dívida aos banqueiros e especuladores, por emprego, salário e serviços públicos para todos, contra o Estado e suas instituições autoritárias e anti-populares. Só essa luta pode levar a um avanço de consciência que permita projetar a superação do capitalismo e a construção de uma sociedade socialista.

Daniel Menezes Delfino
15/08/2011

O rock errou: de Woodstock ao Rock in Rio


“Meus heróis morreram de overdose! Meus inimigos estão no poder!”
Cazuza, “Ideologia”


Entre os dias 23 de setembro e 2 de outubro acontece no Rio de Janeiro o “Rock in Rio”, que se propagandeia como “o maior festival de música e entretenimento do mundo”. A edição de 2011 é a 4ª que acontece no Brasil (depois daquelas de 1985, 1991 e 2001), mas é a 10ª no total, pois houve outras seis edições, sendo quatro em Portugal (2004, 2006, 2008 e 2010) e duas na Espanha (2008 e 2010). Ou seja, já tivemos várias vezes o “Rock in Rio” fora do Rio, pois se trata de uma franquia, uma marca comercial. Os organizadores do festival assumem o seu caráter comercial sem o menor constrangimento: “o Rock in Rio sempre buscou o pioneirismo em seu modelo de negócios” (http://www.rockinrio.com.br/pt/rock-in-rio).

O pioneirismo talvez esteja em colocar Cláudia Leitte, Ivete Sangalo e Rihana num festival de rock (curiosamente, ninguém pensa em convidar o Metallica para o carnaval...). Grande contraste com o festival original, de 1985, que teve como atrações nomes de peso como AC/DC, Iron Maiden, Ozzy Osbourne, Queen, Scorpions, White Snake e Yes. Mas o maior contraste está no fato de que em 1985 o país e sua juventude comemoravam o fim da ditadura, com esperanças na democracia, e Cazuza cantava: “Ideologia! Eu quero uma para viver!”

Em se tratando de ideologia, o “Rock in Rio” 2011 reproduz o mote dos anos anteriores: “Por um Mundo Melhor”, para dar a entender que não se trata de simples comércio e sim de um evento “engajado” em alguma “causa”. E os organizadores explicam que estão “visando uma atuação sustentável e socialmente responsável”, para deixar todos com a consciência tranqüila de que os jovens estão preocupados com o futuro do planeta. Mas ninguém questiona o que significa na prática esse mundo melhor, pois basta propagar vagas preocupações ecológicas e filantrópicas. Na essência, trata-se de uma celebração do mundo tal como ele é hoje, de uma vida despolitizada, apática, indiferente, consumista, imediatista, conservadora, ignorante, subjetivamente pobre, alcoólatra, drogadita, sexualmente miserável.

Como o mundo pode ser melhor sem a abolição do capitalismo, da exploração, da alienação, da opressão, do Estado, da guerra, da violência, do preconceito, da miséria, da fome, das doenças, da ignorância, em que vive a maioria da humanidade?

Se o “Rock in Rio” 2011 é uma patética imitação do festival de 1985, que dizer então da comparação com o lendário Woodstock? Até hoje considerado o maior festival de rock da história, Woodstock aconteceu entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969 na área rural do estado de Nova York, entre as cidades de Bethel e Woodstock. Inicialmente, o festival também foi projetado como evento comercial, pois também foram vendidos quase 200 mil ingressos. Entretanto, com a aproximação do evento, 500 mil pessoas ocuparam o local, transformando-o num festival gratuito e numa gigantesca celebração dos ideais da juventude daquela época, a paz e o amor. Entre os mais conhecidos apresentaram-se Joan Baez, Santana, Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin, The Who, Jefferson Airplane, Joe Cocker, Crosby, Stills, Nash & Young, e por último, num histórico ato de encerramento e de protesto, Jimi Hendrix, que tocou o hino nacional estadunidense na guitarra, entremeando o som de bombas caindo no Vietnã.

Para os mais puristas, Woodstock já era uma deturpação da contracultura, cuja verdadeira celebração aconteceu dois anos antes, no ainda mais lendário festival de Monterey, na Califórnia, entre 16 e 18 de junho de 1967, com apresentações simplesmente antológicas de The Mamas & the Papas, Jefferson Airplane, Janis Joplin então vivendo seu auge, The Who quebrando o palco e Jimi Hendrix literalmente tocando fogo na guitarra.

Mais importante do que determinar quem foi melhor, Woodstock ou Monterey, o fundamental é que a juventude daquela época, assim como seguia os astros do rock nos shows e festivais, seguia Che Guevara e as lutas do 3º mundo, seguia os pacifistas nos protestos contra a guerra do Vietnã, seguia os Panteras Negras na luta pelos direitos civis dos negros, seguia as militantes feministas, seguia os homossexuais de Stonewall.

A juventude queria mudar o mundo e lutava para isso, mudando sua própria vida, negando-se a aceitar o mundo do capitalismo consumista (e em escala mundial, negando também o “socialismo” dos Estados burocráticos da URSS e satélites, vide a primavera de Praga em 1968). O sexo, drogas e rock n' roll não era apenas marketing, era uma aposta real num mundo mais humano. “Faça amor, não faça guerra” era uma palavra de ordem revolucionária naqueles dias de Guerra Fria e luta contra a repressão sexual. É por isso que a música e os artistas daquela época permanecem cultuados até hoje, pois o que cantavam tinha coerência com o que viviam.

A contracultura acabou naufragando, e o rock errou, perdeu sua essência. O rock não é o gesto de tocar guitarra com um cabelo ou roupa diferente (coisa que qualquer boneco montado pela indústria musical pode imitar, vide os Restart e coisas do tipo), o rock é uma atitude perante a vida, o que tem sido raro no meio artístico.

Mas isso pode mudar, pois os jovens de todo o mundo continuam aspirando a uma vida autêntica. Novas gerações se levantam hoje na Europa e nos países árabes, indignados, à procura dos novos Che Guevaras e dos novos Jimi Hendrix, e como Cazuza, à espera de uma ideologia, que ponha fim à crise da alternativa socialista, e construa, pela luta e pelo amor, um mundo realmente melhor, um mundo socialista!

PS. 1 Woodstock também virou franquia, pois outras duas edições tão insignificantes quanto os “Rock in Rio” fabricados em série aconteceram em 1994 e 1999.

PS. 2 “O rock errou” é o nome de uma música e de um disco de 1986 do cantor Lobão, que aliás, infelizmente, também errou, pois hoje em dia se transformou em mais um aderente da moda reacionária (entre outras coisas, defendendo a ditadura militar), sob o pretexto de ser contra o politicamente correto, numa atitude completamente sensacionalista e sem princípios.

Daniel Menezes Delfino
14/08/2011

A crise do endividamento nos Estados Unidos

A votação do teto da dívida nos Estados Unidos

No final de julho e início de agosto o mundo acompanhou o constrangedor espetáculo da maior potência mundial, os Estados Unidos, enfrentando sérias dificuldades para pagar suas dívidas de curto prazo. Foi preciso uma autorização do congresso para que o governo pudesse aumentar o limite de endividamento para mais de 100% do PIB (Produto Interno Bruto, total dos produtos e serviços produzidos pelo país em um ano, hoje em torno de US$ 14 trilhões). Ou seja, o governo emitiu mais títulos (mais dívida) com vencimento no futuro, para conseguir pagar os títulos da dívida passada, próximos de vencer. Na prática, isso significa que os Estados Unidos não conseguiram pagar suas dívidas, pois tiveram que aumentar o limite do “cheque especial”. Ou seja, o problema foi apenas jogado para frente, como sempre.

O expediente de aumentar indefinidamente o endividamento é praticamente uma rotina para todos os Estados capitalistas, desde quando foi desenvolvido em meados do século XX, como forma de superar a Grande Depressão dos anos 1930 (juntamente com a guerra). A novidade no caso presente foi a extrema dificuldade do processo de negociação da autorização. O congresso de maioria republicana impôs um violento desgaste à administração Obama, erodindo o que restava da sua popularidade. Para aprovar o aumento do endividamento, o congresso exigiu colossais cortes no orçamento como garantia de que o governo equilibrará suas contas, afetando especialmente os serviços públicos. Naturalmente, os republicanos buscaram excluir os gastos militares (US$ 739 bilhões por ano) da lista de cortes e também impediram que o governo aumentasse os impostos dos ricos.

As consequências sociais do acordo

Os cortes no orçamento (US$ 2,7 trilhões) vão afetar pesadamente a classe trabalhadora estadunidense, que já convive com alto desemprego (o índice oficial é de 9,2%, mas o desemprego oculto por desalento, trabalho parcial, etc., deve elevar essa taxa a quase o dobro) e queda nos salários e benefícios. Serão brutalmente reduzidas as despesas com as aposentadorias, as pensões para idosos e deficientes, o seguro desemprego, os subsídios agrícolas, a alimentação para os indigentes, a assistência médica (Medicare e Medicaid, programas que atendem mais de 50 milhões de idosos e pobres), os programas habitacionais e os serviços públicos em geral, cujos funcionários, desde professores a bombeiros, estão sendo demitidos em massa nos estados e municípios, gestando uma verdadeira hecatombe social. Enquanto isso, os lucros bilionários dos banqueiros e especuladores estão sendo garantidos pelo governo Obama.

As consequências futuras do atual corte de gastos vão apenas agravar um cenário econômico já bastante deteriorado. Os números da economia divulgados em meados do ano referentes ao PIB, emprego, salários, consumo, investimento, etc., mostram que a chamada “recuperação” iniciada em 2009, quando houve crescimento de 3,9% do PIB apesar do alto desemprego, está se transformando em uma estagnação em torno de 1,5%, sem recuperação do emprego (“Sharp fall in consumer spending, manufacturing in US”, WSWS, 03.08.2011). Tornou-se rotina revisar para baixo os números do PIB dos semestres passados, mostrando que aquilo que havia sido divulgado como crescimento era pura maquiagem para animar os mercados.

O mercado continua insatisfeito

Mesmo que o aumento do teto tenha sido afinal aprovado no congresso, o estrago no mercado financeiro já estava feito. A Standard & Poor's, agência de classificação de risco (que elabora uma espécie de “ranking” da confiabilidade e lucratividade de todos os papéis públicos e privados em negociação nos mercados financeiros), rebaixou a nota dos títulos públicos estadunidenses. Segundo a S&P, os cortes no orçamento teriam que ser de até US$ 4 trilhões para satisfazer o mercado, de quem a agência se arvora em representante. Por mais que os critérios da S&P e das outras agências Moodys e Fitch sejam arbitrários ou no mínimo pouco transparentes, essas instituições possuem um poder gigantesco num mundo cada vez mais controlado pelo mercado financeiro. O rebaixamento dos títulos estadunidenses está sendo comparado à quebra do padrão dólar-ouro em 1971, quando o governo Nixon assumiu que não tinha ouro suficiente para lastrear o dólar. Agora, o governo assume que não tem dólares suficientes para pagar seus títulos...

O simples temor de que os Estados Unidos dessem um calote em sua dívida provocou um pequeno terremoto nas finanças internacionais e ressuscitou os fantasmas de uma volta à recessão. Isso fez as bolsas de valores do mundo inteiro caírem nas semanas seguintes. O Bank of America, maior banco comercial dos Estados Unidos, viu suas ações caírem 20% (ALAI, 08/08/2011). Índices como o Dow Jones, NASDAQ e S&P 500 experimentaram as piores quedas desde 2008. Esse fenômeno revela o grau de artificialidade em que se move a economia capitalista atual.

A artificialidade do capitalismo

Ao contrário do que dizem os economistas vulgares (burgueses), não existe separação entre “economia real” e “economia virtual”. A dificuldade do sistema para realizar a mais valia (que é gerada na esfera da produção, ou seja, na “economia real”) tem sido contornada por mecanismos artificiais de geração de capital fictício na esfera da circulação, através da especulação com papéis (como se fosse possível gerar valor a partir do dinheiro, e não o contrário). O “andaime” que sustenta esse capital fictício é precisamente o dólar. Os banqueiros e especuladores confiam que o governo estadunidense sempre estará lá para socorrê-los com caminhões de dólares. Uma recente auditoria descobriu que, desde 2007, início da crise financeira, até meados de 2010, 16 trilhões de dólares foram emitidos apenas pelo FED (Banco Central estadunidense) para resgatar os especuladores. Ou seja, o FED, que é uma instituição independente do governo, contraiu uma dívida maior do que a dívida do governo da União e o próprio PIB do país! (Atilio Borón, Correio da Cidadania, 03 de Agosto de 2011)
O governo absorveu para si, direta ou indiretamente, as dívidas dos especuladores privados, transformando-os em títulos da dívida pública. Os títulos do tesouro estadunidense são considerados o investimento mais seguro do mundo, exatamente porque, até agora em 2011, nunca na história se cogitou na possibilidade de um calote. Os pacotes de salvamento desde a crise de 2008-2009 foram justamente o que fez aumentar tremendamente o endividamento público, que levou à atual crise. Se os títulos estadunidenses perdessem valor, por conta da possibilidade de calote, isso arrastaria junto o valor do dólar, pois o lastro da moeda estadunidense é a confiança em que o governo do país sempre pagará suas dívidas.

A economia mundial tem funcionado, ao menos na última década, com base em uma dinâmica que tem seu eixo no comércio internacional em direção aos Estados Unidos. A produção de mercadorias está mundializada em países como a China, que exportam para os Estados Unidos e recebem pagamento em dólar. Os países exportadores acumulam reservas em dólar e adquirem títulos do governo estadunidense, ou seja, emprestam dinheiro ao governo estadunidense para que continue rolando suas dívidas. Cerca de metade dos títulos da dívida estão em poder de bancos centrais estrangeiros, cuja procura mantém essa “mercadoria” apreciada e o valor do dólar elevado. Com isso, o consumidor estadunidense pode continuar comprando mercadorias produzidas na China e pagando com um dólar ainda forte, e assim sucessivamente. A possibilidade de ruptura nesse circuito, com o não pagamento dos títulos da dívida pelos Estados Unidos, teria um efeito em cadeia, com a desvalorização dos títulos de dívida em poder dos credores, e também a desvalorização do próprio dólar, a cessação das exportações para os Estados Unidos, a queda do comércio mundial, uma nova recessão ou mesmo uma depressão mundial.

O endividamento e a crise estrutural do capital

Esse risco foi momentaneamente afastado com a aprovação do aumento do teto da dívida pelo congresso. Mas o fato de que o risco permanece é suficiente para provocar nervosismo no mercado. O capitalismo atual não pode funcionar sem a expectativa da continuidade dos lucros fáceis e predatórios da especulação. Assim, a crise do endividamento pode levar ao que os economistas chamam de duplo mergulho numa nova recessão. Na verdade, o conjunto da economia mundial não chegou a se recuperar da recessão iniciada em 2008. A retomada do crescimento e dos lucros em alguns núcleos capitalistas, como os próprios Estados Unidos e a Alemanha, ao longo de 2009 e 2010, empalidece diante do pano de fundo de estagnação no restante do mundo e de importantes contradições, como o desemprego e o empobrecimento nos Estados Unidos.

Isso comprova a existência daquilo que chamamos de crise estrutural do capital, ou seja, a vigência de um período histórico em que as crises periódicas são cada vez mais agudas, os períodos de recuperação mais curtos e insuficientes, e problemas cada vez maiores se acumulam para o futuro. Cada vez mais se torna claro que a defesa das condições de vida dos trabalhadores passa por uma luta contra o sistema capitalista como um todo e sua substituição por uma sociedade socialista livre da exploração e da alienação.

Daniel Menezes Delfino
12/08/2011

"Paradise now": um retrato humano da luta palestina



O texto abaixo é produto de um debate realizado na sede do Espaço Socialista, em 11 de junho de 2011, após a exibição do filme “Paradise now”. O vídeo-debate é parte de um ciclo de atividades em que usamos produções culturais como ponto de partida para discussões políticas, formação teórica e ideológica. Os objetivos desse ciclo são:

- proporcionar uma outra forma de vivenciar a cultura. O debate sobre uma obra a transforma numa experiência coletiva e ativa, ao invés da postura passiva de espectador pela qual a indústria cultural tenta nos acostumar a ver a cultura e a arte como simples entretenimento;

- oferecer produções que tenham conteúdo estético e político. Ao invés das obras facilmente esquecíveis da cultura comercializada, que não provocam nenhuma espécie de efeito transformador, buscamos obras capazes de suscitar discussões éticas, que exigem reflexão e tomada de posicionamento sobre questões humanas;

- combater as interpretações sobre os diversos fenômenos e dimensões da vida abordados pela arte enraizadas na ideologia burguesa prevalecente, construindo uma visão baseada na perspectiva da luta pela emancipação humana.
Antes do debate, apresentamos uma breve contextualização histórica, e concluímos com algumas delimitações políticas.

O PANO DE FUNDO HISTÓRICO

A história do chamado conflito palestino é uma tragédia do século XX. A aspiração até certo ponto legítima do povo judeu por um lar nacional foi transformada pelo imperialismo inglês, após a I Guerra, em pretexto para expulsar os palestinos de terras em que viviam há praticamente dois milênios (onde conviviam pacificamente com uma minoria de cristãos e judeus orientais) e lá instalar colonos vindos da Europa, onde os judeus ocidentais viviam uma história de séculos de anti-semitismo. Com o fim da II Guerra e a revelação do holocausto judeu nas mãos dos nazistas, sai o imperialismo inglês e entram os Estados Unidos e a ONU, com a proclamação de dois Estados na palestina, um judeu e um árabe. O Estado palestino jamais foi instalado e ao longo de sucessivas guerras o Estado de Israel ocupou todo o território que caberia aos dois Estados. O genocídio praticado pelos nazistas contra os judeus deu aos sionistas (setor do povo judeu que defende a construção de Israel às expensas dos palestinos) uma espécie de “álibi eterno” para praticar uma política de genocídio contra os palestinos.

Os palestinos vivem confinados em dois pequenos territórios, Gaza e Cisjordânia, cercados pelo exército de Israel, que controla todas as estradas e passagens e transforma sua vida numa humilhação cotidiana. Além disso, colonos judeus seguem se apropriando das melhores terras, das fontes de água, estradas, etc., nos chamados assentamentos na Cisjordânia. A maior população de judeus no mundo está nos Estados Unidos, de onde bilhões de dólares seguem anualmente em ajuda militar e tecnológica a Israel. Além disso, o “álibi” que os sionistas obtiveram com o holocausto é permanentemente reforçado perante a opinião pública mundial por filmes de Hollywood sobre o holocausto, tragédia que deve sempre ser lembrada, mas que recebe uma cobertura infinitamente maior que outros grandes crimes do século XX. Filmes como “Paradise now” são um modestíssimo contra-ponto ao avassalador predomínio ideológico do sionismo patrocinado por judeus estadunidenses.

O DEBATE SOBRE “PARADISE NOW”

O filme palestino “Paradise now”, de 2005, venceu vários prêmios em festivais internacionais, concorreu ao Oscar de filme estrangeiro e conta a história de dois jovens palestinos que optam por se tornarem homens-bomba e se sacrificarem em atentado suicida em Israel.

Trata-se de um exemplo de como um filme pequeno, de baixo orçamento, pode contar uma história fortíssima. Chama a atenção o contraste entre a riqueza de Israel, com suas cidades que parecem européias ou estadunidenses, arranha-céus modernos, vias expressas, etc.; e a pobreza dos palestinos, que parecem viver numa favela, cercados por prédios em ruínas, estradas esburacadas, casas amontoadas nos morros, etc. Os favelados no Brasil não reagem de forma organizada à opressão policial, à vida miserável sem luz, sem água, sem serviços públicos. Aqui não há o sentimento anti-imperialista, que os palestinos desenvolveram ao longo de uma história de humilhação e de vida aprisionada dentro do próprio país.

Os palestinos vivem numa situação de opressão, injustiça, falta de liberdade, mas resistem com grande dignidade e altivez, o que transparece no olhar dos personagens, ao início e ao fim do filme. Desenrolam-se diálogos impactantes, pois os personagens apresentam de maneira apaixonada os argumentos a favor e contra a estratégia do terrorismo. Ao mesmo tempo em que humaniza o homem-bomba, o filme apresenta questionamento quanto a essa forma de luta. Há uma cena curiosa em que o depoimento do homem-bomba é banalizado, a câmera não funciona, as pessoas comem, tirando a dramaticidade do momento (os palestinos vêem vídeos com os terroristas, como o resto do mundo vê filmes de “heróis” estadunidenses).

Segundo os partidários do terrorismo, ante a miséria, é preferível morrer, pois a vida é mais amarga do que a morte. Há situações em que não há alternativa além da luta armada. A causa palestina só sobreviveu porque houve uma resistência, mesmo com métodos problemáticos. O inimigo israelense usa de métodos terroristas contra a população palestina, com seu imenso poderio militar atacando a população civil, e isso precisa ser combatido de alguma forma. Se os atentados parassem, Israel não pararia.

Por outro lado, é preciso levar em consideração o fato de que é justamente o terrorismo palestino que oferece o álibi para a ação do imperialismo, como a reação que se seguiu ao 11 de Setembro, as invasões do Afeganistão e do Iraque, etc. Os homens-bomba se tornam heróis e mártires, mas o que ficam neste mundo enfrentam a resposta do sionismo e do imperialismo. Para cada atentado palestino, Israel responde com bombardeios, massacres, destruição, prisões, torturas, em doses altamente desproporcionais. O sofrimento dos que ficam aparece no personagem da mãe, que não pode fazer outra coisa a não ser chorar.

Paralelamente ao debate principal, aparecem outros detalhes da sociedade palestina. Ao contrário do estereótipo do “mundo árabe-muçulmano”, há uma grande diversidade de comportamentos, desde os talibãs mais fanáticos até os segmentos laicos e ocidentalizados. Há o personagem da mulher palestina que toma iniciativa em relação ao homem, algo totalmente diferente do estereótipo.

CONCLUSÕES POLÍTICAS

O movimento revolucionário já usou o terrorismo em outras épocas, mas com uma viabilidade muito limitada. O terrorismo não pode ser o método privilegiado de luta. A organização terrorista, tal como retratada no filme, apresenta uma estrutura militarizada, rigidamente hierarquizada, com uma separação burocrática entre os quadros dirigentes e os soldados (entre os quais se incluem os homens-bomba). Essa organização atua de forma totalmente descolada do restante da população que supostamente defende. Não há nenhum tipo de controle democrático sobre o seu funcionamento e atividades. O terrorismo acaba funcionando como um obstáculo para a auto-organização da população.

A resistência palestina deve ser apoiada contra os ataques de Israel e dos Estados Unidos e as campanhas de difamação da imprensa burguesa, mas a linha política das organizações terroristas não será capaz de trazer soluções duradouras para os trabalhadores palestinos. Seu projeto de “Estado islâmico” é autoritário, opressivo, machista e homofóbico, e mantém-se compatível com o sistema capitalista, que é a fonte da exploração dos trabalhadores e da opressão da nacionalidade palestina.

A alternativa ao terrorismo não é o pacifismo e o reformismo, mas a auto-organização dos trabalhadores. O problema palestinos não é um problema de nacionalidade nem muito menos de religião, mas um problema de classe. Há trabalhadores judeus e judeus não-sionistas, para quem a política terrorista de Israel também é um problema (há uma cena em que o homem-bomba palestino hesita ao encontrar trabalhadores judeus num ponto de ônibus). Essa política interessa apenas à burguesia israelense e estadunidense, defensores do capitalismo, que é o verdadeiro inimigo de todos os povos.

Daniel Menezes Delfino
28/06/2011

Bancários: após as eleições sindicais em São Paulo, organizar a campanha salarial


O sindicato dos bancários de São Paulo, Osasco e região é o mais importante do país, já que representa uma base com mais de 100 mil trabalhadores, no principal centro financeiro do país. O sindicato acaba de passar por eleições em junho, com vitória da chapa da situação (Articulação, braço sindical do PT), que assim se mantém no controle da entidade para o mandato 2011-2014, já que não há proporcionalidade. O resultado da votação foi de esmagadores 83%, contra 17% da chapa da oposição, que viu assim sua votação cair desde os 27% de 2008 e 35% de 2005.

O Espaço Socialista fez parte da chapa de oposição como minoria, por entender que a Articulação é o verdadeiro obstáculo para o avanço das lutas dos bancários, o que justifica a necessidade da unidade. Entretanto, prevaleceu na campanha a linha política do PSTU, que organiza a corrente sindical MNOB, ligada à Conlutas. A campanha acabou privilegiando a divulgação de atividades impulsionadas pelo MNOB/Conlutas, as quais tiveram a sua importância, mas consideramos que com isso se perdeu a oportunidade de debater as questões estruturais que afetam a vida da categoria. É por insistirmos na necessidade de debater as questões abaixo que não fazemos parte do MNOB, e seguiremos lutando pela organização dos bancários a partir de outra perspectiva.

OS OBSTÁCULOS QUE DEVEMOS SUPERAR:

- Falta de estabilidade. A Articulação está no controle do sindicato desde 1979 e durante todo esse período não foi feito o trabalho de organização necessário para conquistar aquilo que seria fundamental: estabilidade no emprego. O estabelecimento de regras contra demissão imotivada deveria ser uma cláusula prioritária de cada campanha salarial, assim como o reconhecimento de delegados sindicais eleitos por local de trabalho para fazer a resistência cotidiana contra os abusos dos gestores. Esse trabalho nunca foi feito, e por conta disso, os trabalhadores dos bancos privados acompanham a campanha salarial “de fora”, como algo que é feito por outrém em seu lugar. Não há mobilização real por dentro dos bancos e os locais de trabalho só param quando há piqueteiros na frente das agências. Considerando que os trabalhadores dos bancos privados representam mais de 80% da base de São Paulo e colégio eleitoral cativo da Articulação, este tópico deve ser uma questão central de qualquer debate sobre a organização da categoria.

- Falta de participação dos bancos públicos. A maior parte dos trabalhadores do BB e da CEF nem sequer é sindicalizada. Os trabalhadores dos bancos públicos teoricamente têm estabilidade (na verdade o contrato de trabalho é regido pela CLT), mas mesmo assim têm participado cada vez menos das campanhas salariais. Isso acontece por conta dos últimos 8 anos, em que tivemos greve anualmente, mas jamais foram colocadas em pauta as reivindicações específicas dos bancos públicos (reposição das perdas, isonomia, PCS, saúde, previdência, etc.). Se a greve não serve para conquistar aquilo que interessa, os bancários naturalmente deixam de participar. Fazem greve por estar “de saco cheio”, por não suportar mais as condições de trabalho, mas não vão às assembléias e muito menos aos piquetes. A greve pode até ter boa adesão numérica, mas não tem participação real.

- Burocratização do sindicato. As reivindicações específicas dos bancos públicos não são discutidas nas campanhas salariais porque para isso seria preciso enfrentar o governo Lula/Dilma/PT. A Articulação dirige o sindicato a serviço do seu partido e não dos bancários, por isso jamais vai enfrentar o PT e manobra as campanhas salariais para que não avancem. O PT se converteu num grupo de burocratas que sobrevive às custas de cargos no aparato do Estado, mandatos parlamentares, assessorias, diretorias de estatais, fundos de pensão, participação em empresas, corrupção, etc. A conseqüência de termos no sindicato uma diretoria vinculada a um partido que defende o governo é a degeneração dessa diretoria e da própria vida da entidade. Os diretores do sindicato vinculados à Articulação há muito deixaram de ser trabalhadores, viraram burocratas profissionais. Alguns estão há décadas na diretoria e vão se aposentar como “sindicalistas”. Transformaram o sindicato num conglomerado, com gráfica (Bangraf), cooperativa habitacional (Bancoop, alvo de denúncias de corrupção veiculadas na imprensa), cooperativa de crédito (Bancredi), que movimentam fortunas, administradas de forma pouco transparente. Nas nossas campanhas salariais, não vemos o aparato do sindicato mobilizado a nosso favor para enfrentar os banqueiros.

- Formato das campanhas salariais. As campanhas salariais são feitas de modo a afastar os bancários. A começar pela definição da pauta de reivindicações, através de uma pesquisa via internet, sobre cujo resultado não se tem o menor controle. A Articulação prefere uma campanha virtual na internet ao invés de uma campanha real, que comece por reuniões nos locais de trabalho (para quê servem mais de 80 diretores liberados?), plenárias por banco e por região, assembléias, em que os bancários possam se manifestar e apresentar suas propostas, suas reivindicações, suas idéias, discutir formas de mobilização, de modo a ir criando força para uma eventual greve, que afete de fato o lucro dos bancos.

As regras elementares da democracia são pisoteadas pela atual diretoria Não há espaço na Folha Bancária para manifestações dos trabalhadores e de outros pensamentos que não os da Articulação. Nas próprias assembléias de greve, os raros espaços em que os bancários podem se encontrar e discutir como coletivo, há pouco debate, pois a diretoria fala durante horas e pede aos trabalhadores que apenas levantem o crachá. Não são abertas inscrições para falas, não há tempo para defender propostas de como organizar a greve, as propostas que são feitas não são colocadas em votação, etc. A diretoria está tão distanciada da base que na hora de encerrar a greve e aprovar os acordos são marcadas assembléias à noite, combinadas com os bancos, para que os gerentes e fura-greves compareçam em massa.

ANTECIPAR A PREPARAÇÃO DA CAMPANHA SALARIAL!

Passada a eleição, entramos no período de preparação da campanha salarial. Os mesmos obstáculos listados acima estarão colocados diante dos bancários novamente. A partir do coletivo Bancários de Base, que integra a Frente Nacional de Oposição Bancária, estaremos fazendo o debate sobre como superar esses obstáculos. Precisamos antecipar a preparação da campanha salarial, para romper o controle da Articulação e colocar em discussão as reivindicações que representam os verdadeiros interesses dos bancários.

Daniel Menezes Delfino
27/06/2011

Obama X Osama e a política do espetáculo


O governo estadunidense anunciou no início de maio a morte de Osama Bin Laden, líder da rede terrorista Al Qaeda e considerado responsável pelos atentados de 11/09/2001, entre outros ataques. A execução teria ocorrido no Paquistão, onde o saudita estava foragido, por tropas de elite estadunidenses, depois de confronto com os guarda-costas do terrorista. Não foram divulgadas imagens do cadáver de Bin Laden, sob a alegação de que isso poderia desencadear atos de vingança de terroristas contra cidadãos estadunidenses pelo mundo. Entretanto, foram divulgadas imagens do presidente estadunidense Barack Obama no comando da operação que resultou na execução do inimigo nº1 dos Estados Unidos.

A exibição da imagem de Obama como responsável direto pela execução de Osama tem um objetivo político muito preciso, que é o de elevar a popularidade do presidente estadunidense, seriamente abalada pela situação econômica e social do país. As empresas voltaram à lucrar, mas a custa de brutal aumento da exploração dos trabalhadores. Desde a crise de 2008, a classe trabalhadora estadunidense vive um violento retrocesso nas suas condições de vida, com o desemprego ainda próximo aos 10%, queda nos salários e na renda dos trabalhadores, retirada de benefícios, execução de hipotecas e despejos, sucateamento da saúde e educação públicas, empobrecimento geral, piora drástica nos indicadores sociais, etc.

A popularidade de Obama estava tão baixa que a corrida pela sucessão presidencial em 2012 já se iniciou, com o anúncio da intenção do bilionário Donald Trump de concorrer como candidato pelo partido republicano. Trump é dono de prédios de escritórios, hotéis e cassinos, e ficou mundialmente famoso com o programa de TV “O Aprendiz”, em que tinha como bordão a frase “você está demitido!”, o que dá uma idéia do caráter do indivíduo de que estamos falando... A entrada de tal personagem na corrida presidencial se deu com a manobra mais rasteira e sensacionalista possível, a exigência de que Obama provasse ter nascido em território estadunidense, pois do contrário não poderia ter concorrido a presidente. Obama teve que vir a público apresentar a certidão de nascimento, mas isso não parece ter sido suficiente para contentar a platéia de Trump, daí a necessidade de exibir um troféu, que seria a morte de Osama.

Fica assim evidente que não foram os trabalhadores que Obama quis agradar, e sim os setores mais reacionários da população, o eleitorado republicano, que durante 8 anos respaldou a política de “guerra ao terror” de seu antecessor George Bush, composto pela pequena-burguesia branca, protestante, conservadora e provinciana dos estados do interior. O efeito do golpe publicitário foi imediato, pois as pesquisas de opinião seguintes mostraram um aumento de 11% na aprovação de Obama, que na enquete do New York Times e CBS saltou de 46% para 57% (Reuters, 04/05/2011).

Voltando para a questão das imagens, a alegação de que teria havido tiroteio no refúgio de Osama não resiste ao exame mais superficial. As cenas que foram divulgadas do suposto esconderijo não mostraram marcas de bala nem manchas de sangue nas paredes, mas mesmo assim bastaram para enganar o público em geral, leigo em questões militares. Para quem conhece o funcionamento do imperialismo estadunidense, é bastante razoável a suposição de que o paradeiro de Osama já era conhecido há bastante tempo, os Estados Unidos já sabiam de sua localização, já o tinham capturado ou mesmo morto, e a divulgação de sua morte obedeceu a um critério de pura conveniência política.

Do ponto de vista da política interna estadunidense e das vicissitudes da popularidade de Obama, o momento escolhido para divulgar a morte do inimigo faz algum sentido, mas não no que se refere à situação política internacional. Primeiramente, o anúncio dessa façanha demonstra o mais completo desrespeito pelas regras elementares da democracia que os Estados Unidos dizem defender. O mais correto seria levar Osama a julgamento pelos seus crimes, de preferência numa corte internacional, como forma pedagógica de dissuadir possíveis simpatizantes de seguir seu exemplo.

Mas os Estados Unidos não dão a menor importância para essas formalidades, pois nem sequer reconhecem as corte internacionais. Não o fazem pois, do contrário teriam que admitir que seus militares e agentes de inteligência fossem julgados pelos crimes que cometem diariamente, vide as revelações do Wikileaks. Os Estados Unidos nem sequer se envergonham em admitir que Osama foi morto no Paquistão, ou seja, admitem abertamente que violaram a soberania de um outro país para perseguir seus inimigos. Mais grave até do que isso, admitem que a informação sobre o paradeiro de Osama foi obtida por meio de tortura, tal como se denuncia corriqueiramente sobre o que se passa nas prisões ilegais em Guantánamo e outras localidades.

Além de confessar o mais completo desprezo pelas normas do direito, da legalidade e da democracia que os Estados Unidos cinicamente dizem defender, o anúncio da morte de Osama não tem também nenhum efeito importante no que se refere a influenciar a situação política dos países do Oriente Médio e norte da África. Isso porque a influência da Al Qaeda, do terrorismo e do fundamentalismo islâmico em geral já não é mais nem uma sombra do que foi em outros momentos.

No início de 2011, o Oriente Médio e norte da África estão sendo abalados por uma onda de revoluções democráticas, que estão sacudindo e derrubando governos subservientes aos Estados Unidos em vários países. Governantes que se mantinham no poder há décadas, graças ao terror de estado, leis de exceção, repressão e autoritarismo, que praticavam a mais aberta corrupção e saque de seus povos, estão sendo questionados e derrubados por multitudinárias manifestações. Trata-se da maior e mais radical mobilização social das últimas décadas no mundo, num processo complexo, que ainda está em aberto e se manifesta com uma série de desigualdades entre os diversos países.

Mas a questão política mais importante é que o que está por trás desse processo de mobilização não é o fundamentalismo islâmico, nem o terrorismo, nem muito menos a Al Qaeda e Bin Laden. Não foram essas forças que derrubaram Ben Ali na Tunísia nem Mubarak no Egito e que estão impulsionando as mobilizações nos demais países. A influência política dessas correntes no processo foi completamente marginal. O que determinou a queda dos odiados ditadores foi a mobilização dos trabalhadores, da juventude e da população em geral. Não foram os líderes fundamentalistas e os terroristas que levaram as massas populares às ruas.

O Oriente Médio e norte da África abrigam populações com uma imensa porcentagem de jovens abaixo dos 30 anos, que vai da metade a dois terços em vários países, com uma taxa de desemprego altíssima, especialmente nessa faixa etária, e que enfrentam uma violenta deterioração nas suas condições de vida devido à inflação, que se manifesta especialmente no aumento do preço dos alimentos. Essa mistura de populações majoritariamente jovens e sem perspectivas em países extremamente pobres, atingidos pela carestia e pela crise, governados por dirigentes corruptos e autoritários, é o que explica o processo de revolução democrática em curso. Esse processo está inclusive se espalhando para os países ainda mais pobres da África subsaariana, em vários dos quais já vive-se uma situação de conflagração social quase aberta.

Trata-se, no fundo, de conseqüências econômicas, sociais e políticas da crise mundial iniciada em 2008. Contra essas conseqüências, os Estados Unidos, com seu poderio militar e midiático, ainda não tem o controle total. Ao matar Osama, os Estados Unidos chutaram um cachorro morto. Osama e o terrorismo já estavam politicamente derrotados e já haviam perdido a expressão há muito tempo. Para o azar do imperialismo e para sorte dos trabalhadores, as mobilizações prosseguem e se espalham, e não têm Bin Laden e o terrorismo como inspiração.

O que ainda está ausente é a consciência da necessidade de lutar não apenas contra os ditadores de plantão, mas contra o sistema capitalista que eles defendem e seus amos internacionais, como os Estados Unidos. O surgimento dessa consciência e de organizações que defendam um programa socialista entre os trabalhadores é uma possibilidade que surge na própria luta, e que, caso se manifeste, não será evitada por golpes publicitários.

Daniel Menezes Delfino
07/05/2011

O legado da ditadura e a novela amor e revolução


Na segunda metade do século XX, a América do Sul foi vitimada por uma série de ditaduras militares, que foram substituídas por democracias formais nas últimas décadas. No processo de restabelecimento da democracia formal, vários países levaram os militares e agentes da repressão ao banco dos réus pelos crimes cometidos durantes a ditadura. A Argentina já condenou 486 criminosos que mataram, torturaram, prenderam, cassaram e exilaram militantes de esquerda (Folha/UOL, 27/03/2011). O Brasil é um dos poucos países em que os criminosos não foram julgados. Muitos deles, passadas mais de duas décadas do fim da ditadura, envergam os pijamas da aposentadoria com a tranquilidade da impunidade, e de vez em quando até saem das catacumbas para defender publicamente o golpe de 1964.

A transição para a democracia formal foi feita por meio de acordos de cúpula, em que um grupo político burguês substituiu outro ligado aos militares na condução do Estado, sem romper com a política burguesa em geral e em particular sem romper com o arcabouço repressivo (anistia para os crimes da repressão, manutenção da lei de segurança nacional, cultura policial repressiva, etc.). O forte processo de lutas sindicais e populares da década de 1980, com a fundação do PT e da CUT, as tentativas de greve geral, a campanha das "Diretas Já", o ascenso dos movimentos sociais em geral, movimentos de sem terra, de moradia, de estudantes, de mulheres, negros e LGBTs, etc., tudo isso não foi suficiente para derrotar de fato a direita militar e civil.

A direção política do processo de luta, a Articulação (corrente dirigente do PT e da CUT), burocrática e oportunista desde o início, gradativamente fez com que o movimento abandonasse quaisquer veleidades de transição ao socialismo, mesmo reformistas, conforme o PT aderia abertamente à gestão do capital. No plano interno isso se consolida com a derrota da campanha de Lula em 1989, que teve participação decisiva da Rede Globo, emissora de TV construída pela ditadura para servir como seu instrumento ideológico. No plano mundial, a queda do muro de Berlim e da URSS abriu caminho para o discurso da "derrota do socialismo" e para a ofensiva política e ideológica do neoliberalismo e da "globalização".

Esses processos deixaram o movimento socialista revolucionário numa situação de isolamento e o conjunto da classe trabalhadora na defensiva, pois mesmo que os estados burocráticos do leste europeu não fossem o "modelo" de socialismo, a sua desaparição fez com que desaparecesse junto a própria idéia de uma alternativa ao capitalismo, configurando aquilo que denominamos como crise da alternativa socialista. As lutas da classe trabalhadora deixaram de estar armadas de uma perspectiva de superação do capitalismo, limitando-se a questionar aspectos parciais do sistema e com isso condenando-se à impotência.

Nesse contexto de crise da alternativa socialista, o PT assumiu o governo com o ex-dirigente sindical Lula e a ex-guerrilheira Dilma, e ambos deixaram intocada a impunidade dos criminosos da ditadura, para não incomodar setores burgueses de extrema direita e comprometer a política de conciliação de classe de seus governos. Lula foi preso político por ter sido grevista e Dilma foi além disso torturada por ter participado da luta armada. Ambos jogaram na lata do lixo a memória daqueles que lutaram contra a ditadura ao manter inalterada a política neoliberal da burguesia. No governo da ex-guerrilheira Dilma, o militante italiano Cesare Battisti segue ilegalmente preso e ameaçado de extradição para a Itália.

É nesse cenário que surge a novela "Amor e Revolução" no SBT, contando a história dos primeiros anos da ditadura e dos militantes que a enfrentaram. A novela tem sido tema de debate entre setores populares, pois o assunto é praticamente desconhecido das novas gerações, que ignoram a história do país, e das antigas gerações, deixadas ideologicamente órfãs pelo PT, que nunca fez uma disputa ideológica a fundo com a classe trabalhadora para combater as idéias burguesas.

A exibição da novela não significa que o SBT tenha se tornado um bastião de progressismo social. Na verdade, emissoras como SBT e Record, que tem tentado com algum sucesso desfazer o antigo monopólio da Globo, são tão reacionárias quanto a sua rival. Todas as emissoras difundem ideologias conservadoras, nas formas de fanatismo religioso, sensacionalismo, pornografia e regressão cultural. Na disputa pela audiência, vale tudo, até mesmo resgatar um tema polêmico da história do país, a tortura contra militantes que se opuseram a ditadura. No contexto da ideologia pós-moderna, a história real é só mais um drama televisivo sem conseqüências políticas e existenciais, e a dramaturgia televisiva com suas fórmulas prontas e clichês (o mito do final feliz, do amor romântico, do indivíduo como centro do mundo, etc.) substitui a vida real e a possibilidade de conflitos políticos e existenciais reais.

Mesmo com sua fragilidade estética gritante, roteiro pífio e interpretações canhestras, a novela provocou uma forte reação da extrema direita, que pediu a censura dos depoimentos de vítimas de tortura. Posando de democrático, o SBT atendeu a manifestação de espectadores que se posicionaram na internet em favor dos depoimentos e os manteve no ar.

Evidentemente, como se trata de uma telenovela, a qualquer momento podem surgir reviravoltas na trama. Não se pode esperar que uma emissora comercial possa fazer justiça à luta dos militantes que combateram a ditadura, nem muito menos apresentar uma visão correta do projeto de sociedade que defendiam, dos prós e contras da estratégia de luta armada, etc. Podem também surgir, por exemplo, tentativas de "humanizar" o outro lado, os agentes da repressão, na intenção de mostrar-se equidistante e imparcial, de acordo com o típico senso comum pequeno-burguês: "todos podem ter sua opinião", "o que é errado é o extremismo", "tanto de esquerda como de direita". Pode ser essa a conclusão da história, ou a emissora pode manter o tratamento favorável aos militantes. Seja qual for a opção para o desfecho, o mais provável é que a novela permaneça no nível da caricatura.

Aconteça o que acontecer na tela, prevalece o fato de que, na vida real, a herança da ditadura permanece bastante viva. Os criminosos daquele período permanecem impunes, a repressão aos trabalhadores que lutam permanece brutal, a alienação e a despolitização geral permanecem dominando, a politica da burguesia segue sendo aplicada, a ditadura de classe permanece sendo exercida por meio dos mecanismos da democracia burguesa. Por isso, a luta dos revolucionários pelo socialismo ainda terá vários capítulos na vida real.

Daniel Menezes Delfino
07/05/2011