“Meus heróis morreram de overdose! Meus inimigos estão no poder!”
Cazuza, “Ideologia”
Entre os dias 23 de setembro e 2 de outubro acontece no Rio de Janeiro o “Rock in Rio”, que se propagandeia como “o maior festival de música e entretenimento do mundo”. A edição de 2011 é a 4ª que acontece no Brasil (depois daquelas de 1985, 1991 e 2001), mas é a 10ª no total, pois houve outras seis edições, sendo quatro em Portugal (2004, 2006, 2008 e 2010) e duas na Espanha (2008 e 2010). Ou seja, já tivemos várias vezes o “Rock in Rio” fora do Rio, pois se trata de uma franquia, uma marca comercial. Os organizadores do festival assumem o seu caráter comercial sem o menor constrangimento: “o Rock in Rio sempre buscou o pioneirismo em seu modelo de negócios” (http://www.rockinrio.com.br/pt/rock-in-rio).
O pioneirismo talvez esteja em colocar Cláudia Leitte, Ivete Sangalo e Rihana num festival de rock (curiosamente, ninguém pensa em convidar o Metallica para o carnaval...). Grande contraste com o festival original, de 1985, que teve como atrações nomes de peso como AC/DC, Iron Maiden, Ozzy Osbourne, Queen, Scorpions, White Snake e Yes. Mas o maior contraste está no fato de que em 1985 o país e sua juventude comemoravam o fim da ditadura, com esperanças na democracia, e Cazuza cantava: “Ideologia! Eu quero uma para viver!”
Em se tratando de ideologia, o “Rock in Rio” 2011 reproduz o mote dos anos anteriores: “Por um Mundo Melhor”, para dar a entender que não se trata de simples comércio e sim de um evento “engajado” em alguma “causa”. E os organizadores explicam que estão “visando uma atuação sustentável e socialmente responsável”, para deixar todos com a consciência tranqüila de que os jovens estão preocupados com o futuro do planeta. Mas ninguém questiona o que significa na prática esse mundo melhor, pois basta propagar vagas preocupações ecológicas e filantrópicas. Na essência, trata-se de uma celebração do mundo tal como ele é hoje, de uma vida despolitizada, apática, indiferente, consumista, imediatista, conservadora, ignorante, subjetivamente pobre, alcoólatra, drogadita, sexualmente miserável.
Como o mundo pode ser melhor sem a abolição do capitalismo, da exploração, da alienação, da opressão, do Estado, da guerra, da violência, do preconceito, da miséria, da fome, das doenças, da ignorância, em que vive a maioria da humanidade?
Se o “Rock in Rio” 2011 é uma patética imitação do festival de 1985, que dizer então da comparação com o lendário Woodstock? Até hoje considerado o maior festival de rock da história, Woodstock aconteceu entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969 na área rural do estado de Nova York, entre as cidades de Bethel e Woodstock. Inicialmente, o festival também foi projetado como evento comercial, pois também foram vendidos quase 200 mil ingressos. Entretanto, com a aproximação do evento, 500 mil pessoas ocuparam o local, transformando-o num festival gratuito e numa gigantesca celebração dos ideais da juventude daquela época, a paz e o amor. Entre os mais conhecidos apresentaram-se Joan Baez, Santana, Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin, The Who, Jefferson Airplane, Joe Cocker, Crosby, Stills, Nash & Young, e por último, num histórico ato de encerramento e de protesto, Jimi Hendrix, que tocou o hino nacional estadunidense na guitarra, entremeando o som de bombas caindo no Vietnã.
Para os mais puristas, Woodstock já era uma deturpação da contracultura, cuja verdadeira celebração aconteceu dois anos antes, no ainda mais lendário festival de Monterey, na Califórnia, entre 16 e 18 de junho de 1967, com apresentações simplesmente antológicas de The Mamas & the Papas, Jefferson Airplane, Janis Joplin então vivendo seu auge, The Who quebrando o palco e Jimi Hendrix literalmente tocando fogo na guitarra.
Mais importante do que determinar quem foi melhor, Woodstock ou Monterey, o fundamental é que a juventude daquela época, assim como seguia os astros do rock nos shows e festivais, seguia Che Guevara e as lutas do 3º mundo, seguia os pacifistas nos protestos contra a guerra do Vietnã, seguia os Panteras Negras na luta pelos direitos civis dos negros, seguia as militantes feministas, seguia os homossexuais de Stonewall.
A juventude queria mudar o mundo e lutava para isso, mudando sua própria vida, negando-se a aceitar o mundo do capitalismo consumista (e em escala mundial, negando também o “socialismo” dos Estados burocráticos da URSS e satélites, vide a primavera de Praga em 1968). O sexo, drogas e rock n' roll não era apenas marketing, era uma aposta real num mundo mais humano. “Faça amor, não faça guerra” era uma palavra de ordem revolucionária naqueles dias de Guerra Fria e luta contra a repressão sexual. É por isso que a música e os artistas daquela época permanecem cultuados até hoje, pois o que cantavam tinha coerência com o que viviam.
A contracultura acabou naufragando, e o rock errou, perdeu sua essência. O rock não é o gesto de tocar guitarra com um cabelo ou roupa diferente (coisa que qualquer boneco montado pela indústria musical pode imitar, vide os Restart e coisas do tipo), o rock é uma atitude perante a vida, o que tem sido raro no meio artístico.
Mas isso pode mudar, pois os jovens de todo o mundo continuam aspirando a uma vida autêntica. Novas gerações se levantam hoje na Europa e nos países árabes, indignados, à procura dos novos Che Guevaras e dos novos Jimi Hendrix, e como Cazuza, à espera de uma ideologia, que ponha fim à crise da alternativa socialista, e construa, pela luta e pelo amor, um mundo realmente melhor, um mundo socialista!
PS. 1 Woodstock também virou franquia, pois outras duas edições tão insignificantes quanto os “Rock in Rio” fabricados em série aconteceram em 1994 e 1999.
PS. 2 “O rock errou” é o nome de uma música e de um disco de 1986 do cantor Lobão, que aliás, infelizmente, também errou, pois hoje em dia se transformou em mais um aderente da moda reacionária (entre outras coisas, defendendo a ditadura militar), sob o pretexto de ser contra o politicamente correto, numa atitude completamente sensacionalista e sem princípios.
Daniel Menezes Delfino
14/08/2011
14/08/2011
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