28.12.11

A "decadência" estadunidense e a luta pela revolução


Nos últimos anos tem surgido toda uma literatura em torno de um suposto declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica mundial. Esse discurso emana tanto de ideólogos burgueses, acadêmicos, economistas, jornalistas, etc., como também de teóricos e organizações da classe trabalhadora. Em geral tal literatura apresenta como maior evidência desse declínio a ascensão de novos "concorrentes" ao papel de liderança mundial, entre os quais um conjunto de países agrupados sob a sigla de BRICs (ou seja, Brasil, Rússia, Índia e China). Às vezes, basta apresentar apenas o crescimento da China, que em algumas décadas saltou para o posto de 2º maior PIB do planeta, para que com isso se "preveja" em breve a superação dos Estados Unidos.

As elaborações dos ideólogos da burguesia não têm qualquer valor científico, pois tratam os dados estatísticos como se pudessem indicar mecanicamente tendências que se manteriam supostamente inalteradas pelos próximos anos ou décadas. Como se não houvesse uma série de variáveis capazes de interferir no curso “natural” dos acontecimentos, tais como a intervenção consciente de sujeitos históricos que lutam para reverter ou aprofundar as tendências em andamento em função de seus interesses de classe. Assim, ignorando levianamente a complexidade do devir histórico-social, os ideólogos podem arbitrariamente "marcar no calendário" a data em que a China vai superar os Estados Unidos (2020? 2030?), o Brasil vai entrar para o 1º mundo (2030, 2040?), etc., como se não pudesse haver qualquer tipo de "acidente de percurso" ou inversão das tendências.

O ritmo da decadência

Entretanto, no que diz respeito às organizações dos trabalhadores, o discurso que fala em declínio dos Estados Unidos tem alguns desdobramentos teóricos e políticos importantes. Em primeiro lugar, é preciso verificar se de fato existe esse declínio dos Estados Unidos. Do ponto de vista da economia, o peso relativo do PIB estadunidense já chegou a ser de quase 50% da produção mundial, no pós-II Guerra (http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Fria). Inversamente, o PIB dos emergentes representa hoje mais de 43% do PIB mundial, enquanto os PIBs dos Estados Unidos e Europa somados não chegam a 36% (http://interessenacional.uol.com.br/artigos-integra.asp?cd_artigo=7) .

Entretanto, para além da medição quantitativa do PIB, as relações de poder entre os países são estruturadas também em torno de outros componentes, entre os quais o poderio militar, a influência política, cultural, etc. Assim, por mais que outros países estejam experimentando um forte crescimento e os Estados Unidos uma relativa decadência, isso não se reflete automaticamente numa mudança imediata da hierarquia internacional. Há uma série de outros fatores que podem retardar a perda da hegemonia estadunidense:

- os Estados Unidos são detentores da moeda internacional, o dólar, que apenas começou a ser desafiado, e está longe de perder o papel de principal meio de troca (certamente que não ignoramos o crônico endividamento público e privado como fator de crescente enfraquecimento do dólar) para outros concorrentes como o euro (que enfrenta sérios problemas, como acompanhamos diariamente nos jornais);

- os Estados Unidos são responsáveis por quase metade dos gastos militares do planeta, mais do que a soma dos 17 maiores orçamentos militares imediatamente abaixo (http://www.tribunadaimprensa.com.br/?p=19805). Possuem milhares de armas nucleares, um gigantesco aparato de tanques, navios, submarinos, aviões e satélites, um efetivo de milhões de soldados, centenas de bases militares em todos os continentes, uma vasta rede com milhares de agentes de inteligência e espionagem (cujas façanhas podem ser vistas no Wikileaks), o que lhes dá larga superioridade bélica perante qualquer adversário hipotético ou até mesmo sobre a soma de todos os possíveis rivais;

- os Estados Unidos ainda estão na liderança da pesquisa cientifica e tecnológica, em áreas como computação, biotecnologia, aeroespacial, etc., que são as áreas de ponta da economia. Juntamente com algumas outras potências imperialistas, como Japão e Alemanha, ainda dominam o setor produtor de bens de produção, onde se materializa essa superioridade científica e tecnológica. Países emergentes se limitam a copiar e reproduzir as técnicas de produção que vêm dos centros imperialistas, não sendo capazes de desenvolver produtos por conta própria;

- as corporações estadunidenses constituem um verdadeiro Estado paralelo no interior dos Estados nacionais periféricos, associando-se de diversas formas a frações da burguesia nacional e corrompendo políticos e instituições, de modo a poder controlar o fornecimento de matérias-primas vitais, como petróleo e minérios, commodities agrícolas, etc., ou monopolizando a produção industrial, o comércio, as finanças, etc., no interior de cada país. Esses laços estão fortemente consolidados e contam com uma ampla rede de proteção, tanto de suas forças armadas e de inteligência, mas também dos próprios Estados periféricos e suas forças armadas, ou de agentes mercenários, contra as populações locais e concorrentes estrangeiros;

- os produtos da indústria cultural estadunidense avançam sobre as culturas nacionais do mundo inteiro, com poucas exceções, tanto por meio dos conteúdos do cinema e da música, como do estilo da programação da televisão, do jornalismo e da internet, ou mesmo controlando diretamente as empresas locais de mídia e entretenimento. Assim, a indústria cultural estadunidense molda os gostos e preferências do público, oferece "heróis" e modelos de identificação, lança modismos e comportamentos, cultiva aspirações, desejos e motivações, cria uma ética individualista, competitiva, imediatista, consumista, materialista e venal, construindo um ambiente ideológico pró-estadunidense ou no mínimo pró-capitalista.

Conseqüências da disputa interimperialista

Não basta portanto olhar apenas para os números da economia para com isso determinar que em breve a China vai ultrapassar os Estados Unidos, pois falta estar em condições de controlar militarmente ou influenciar a política, os mercados, e a cultura de centenas de países. É graças a esse controle e influência que os Estados Unidos ainda são a maior potência mundial, inclusive no terreno da economia.

Além disso, a burguesia estadunidense não vai assistir passivamente à erosão de seu poderio e ao surgimento de desafiantes capazes de lhe arrebatar a supremacia mundial. Pelo contrário, como já vimos na história, os impérios decadentes se tornam cada vez mais violentos e belicosos na defesa de seus interesses. Foi isso que provocou as guerras mundiais no passado. Conforme o desafio se torne mais concreto e palpável, a tendência é de que o imperialismo desenvolva e aprofunde as formas que já estamos vivenciando de uma guerra mundial mais ou menos disfarçada, a qual envolve expedientes como a “guerra ao terror”, “guerra às drogas”, guerras de ocupação colonial sob o pretexto de “intervenção humanitária”, criminalização da pobreza, repressão aos movimentos sociais, esvaziamento da democracia formal, autoritarismo estatal, manifestações de fascistização social (xenofobia, racismo, homofobia, conservadorismo moral, etc.);

Mas a questão mais importante não é apenas determinar se os Estados Unidos estão em decadência ou não e, em caso positivo, qual potência poderá substituí-los, mas entender que relação esse processo teria com a luta pela emancipação dos trabalhadores.

A necessidade de uma ofensiva socialista

Boa parte do discurso da decadência estadunidense adota um tom “comemorativo”, como se esse enfraquecimento dos Estados Unidos fosse por si só um fato positivo para os trabalhadores. No interior do movimento operário há vários setores reformistas que torcem pela decadência estadunidense e a festejam como se o problema da humanidade fosse um problema de nacionalidade e não de classe social. Pregam o “antiamericanismo” (sic), como se o problema do mundo fossem os Estados Unidos e não o capitalismo. Festejam o surgimento de um “mundo multipolar” (como se a existência de vários pólos imperialistas fosse melhor do que a de uma única potência), festejam o “novo equilíbrio de poder”, festejam a “democratização das instituições internacionais”, festejam o surgimento de “contrapesos” ao domínio estadunidense, festejam a ascensão de “novos atores globais” (como se a ONU, a OMC, o FMI, o G20 pudessem ser mais favoráveis aos trabalhadores por terem um peso ligeiramente maior dos BRICs e dos emergentes), entre outras imbecilidades.

Essa comemoração irresponsável omite o problema fundamental, que é quebrar a lógica do capital. A luta pela revolução socialista deve ser travada não apenas contra uma determinada potência imperialista A, B ou C, mas contra o conjunto do sistema capitalista mundial e sua lógica de reprodução social. A classe trabalhadora não pode se limitar a “torcer” pela decadência dos Estados Unidos ou por qualquer tipo de “novo equilíbrio” de poderes. De nada adianta atuar como espectadora passiva da disputa entre as potências. O poder de reconstruir a vida social não cairá do céu no colo dos trabalhadores por descuido dos donos do mundo que se digladiam acima: terá que ser arrancado com luta. A classe trabalhadora precisará se colocar a questão do poder social e da revolução, contra os Estados Unidos ou qualquer potência que os suceder.

A disputa entre as potências imperialistas pode resultar em enfraquecimento momentâneo do sistema capitalista como um todo e em oportunidade para a revolução. Mas para que a revolução aconteça e seja vitoriosa é preciso que, além da crise do capitalismo, haja uma ofensiva da classe trabalhadora pela transformação socialista, o que exige uma série de pré-requisitos: a construção de organismos de luta que possam se configurar em instrumentos de poder da ditadura do proletariado (ou seja, da democracia operária), e no interior dos quais atuem organizações revolucionárias que funcionem como expressão mais avançada e sistemática da consciência socialista, a qual deve estar disseminada o mais amplamente possível. Sem esses pré-requisitos da auto-organização da classe trabalhadora a revolução não conseguirá ir além da tomada do poder político e não avançará para uma auto-administração socialista da vida social.

Daniel Menezes Delfino
11/11/2011

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