A votação do teto da dívida nos Estados Unidos
No final de julho e início de agosto o mundo acompanhou o constrangedor espetáculo da maior potência mundial, os Estados Unidos, enfrentando sérias dificuldades para pagar suas dívidas de curto prazo. Foi preciso uma autorização do congresso para que o governo pudesse aumentar o limite de endividamento para mais de 100% do PIB (Produto Interno Bruto, total dos produtos e serviços produzidos pelo país em um ano, hoje em torno de US$ 14 trilhões). Ou seja, o governo emitiu mais títulos (mais dívida) com vencimento no futuro, para conseguir pagar os títulos da dívida passada, próximos de vencer. Na prática, isso significa que os Estados Unidos não conseguiram pagar suas dívidas, pois tiveram que aumentar o limite do “cheque especial”. Ou seja, o problema foi apenas jogado para frente, como sempre.
O expediente de aumentar indefinidamente o endividamento é praticamente uma rotina para todos os Estados capitalistas, desde quando foi desenvolvido em meados do século XX, como forma de superar a Grande Depressão dos anos 1930 (juntamente com a guerra). A novidade no caso presente foi a extrema dificuldade do processo de negociação da autorização. O congresso de maioria republicana impôs um violento desgaste à administração Obama, erodindo o que restava da sua popularidade. Para aprovar o aumento do endividamento, o congresso exigiu colossais cortes no orçamento como garantia de que o governo equilibrará suas contas, afetando especialmente os serviços públicos. Naturalmente, os republicanos buscaram excluir os gastos militares (US$ 739 bilhões por ano) da lista de cortes e também impediram que o governo aumentasse os impostos dos ricos.
As consequências sociais do acordo
Os cortes no orçamento (US$ 2,7 trilhões) vão afetar pesadamente a classe trabalhadora estadunidense, que já convive com alto desemprego (o índice oficial é de 9,2%, mas o desemprego oculto por desalento, trabalho parcial, etc., deve elevar essa taxa a quase o dobro) e queda nos salários e benefícios. Serão brutalmente reduzidas as despesas com as aposentadorias, as pensões para idosos e deficientes, o seguro desemprego, os subsídios agrícolas, a alimentação para os indigentes, a assistência médica (Medicare e Medicaid, programas que atendem mais de 50 milhões de idosos e pobres), os programas habitacionais e os serviços públicos em geral, cujos funcionários, desde professores a bombeiros, estão sendo demitidos em massa nos estados e municípios, gestando uma verdadeira hecatombe social. Enquanto isso, os lucros bilionários dos banqueiros e especuladores estão sendo garantidos pelo governo Obama.
As consequências futuras do atual corte de gastos vão apenas agravar um cenário econômico já bastante deteriorado. Os números da economia divulgados em meados do ano referentes ao PIB, emprego, salários, consumo, investimento, etc., mostram que a chamada “recuperação” iniciada em 2009, quando houve crescimento de 3,9% do PIB apesar do alto desemprego, está se transformando em uma estagnação em torno de 1,5%, sem recuperação do emprego (“Sharp fall in consumer spending, manufacturing in US”, WSWS, 03.08.2011). Tornou-se rotina revisar para baixo os números do PIB dos semestres passados, mostrando que aquilo que havia sido divulgado como crescimento era pura maquiagem para animar os mercados.
O mercado continua insatisfeito
Mesmo que o aumento do teto tenha sido afinal aprovado no congresso, o estrago no mercado financeiro já estava feito. A Standard & Poor's, agência de classificação de risco (que elabora uma espécie de “ranking” da confiabilidade e lucratividade de todos os papéis públicos e privados em negociação nos mercados financeiros), rebaixou a nota dos títulos públicos estadunidenses. Segundo a S&P, os cortes no orçamento teriam que ser de até US$ 4 trilhões para satisfazer o mercado, de quem a agência se arvora em representante. Por mais que os critérios da S&P e das outras agências Moodys e Fitch sejam arbitrários ou no mínimo pouco transparentes, essas instituições possuem um poder gigantesco num mundo cada vez mais controlado pelo mercado financeiro. O rebaixamento dos títulos estadunidenses está sendo comparado à quebra do padrão dólar-ouro em 1971, quando o governo Nixon assumiu que não tinha ouro suficiente para lastrear o dólar. Agora, o governo assume que não tem dólares suficientes para pagar seus títulos...
O simples temor de que os Estados Unidos dessem um calote em sua dívida provocou um pequeno terremoto nas finanças internacionais e ressuscitou os fantasmas de uma volta à recessão. Isso fez as bolsas de valores do mundo inteiro caírem nas semanas seguintes. O Bank of America, maior banco comercial dos Estados Unidos, viu suas ações caírem 20% (ALAI, 08/08/2011). Índices como o Dow Jones, NASDAQ e S&P 500 experimentaram as piores quedas desde 2008. Esse fenômeno revela o grau de artificialidade em que se move a economia capitalista atual.
A artificialidade do capitalismo
Ao contrário do que dizem os economistas vulgares (burgueses), não existe separação entre “economia real” e “economia virtual”. A dificuldade do sistema para realizar a mais valia (que é gerada na esfera da produção, ou seja, na “economia real”) tem sido contornada por mecanismos artificiais de geração de capital fictício na esfera da circulação, através da especulação com papéis (como se fosse possível gerar valor a partir do dinheiro, e não o contrário). O “andaime” que sustenta esse capital fictício é precisamente o dólar. Os banqueiros e especuladores confiam que o governo estadunidense sempre estará lá para socorrê-los com caminhões de dólares. Uma recente auditoria descobriu que, desde 2007, início da crise financeira, até meados de 2010, 16 trilhões de dólares foram emitidos apenas pelo FED (Banco Central estadunidense) para resgatar os especuladores. Ou seja, o FED, que é uma instituição independente do governo, contraiu uma dívida maior do que a dívida do governo da União e o próprio PIB do país! (Atilio Borón, Correio da Cidadania, 03 de Agosto de 2011)
O governo absorveu para si, direta ou indiretamente, as dívidas dos especuladores privados, transformando-os em títulos da dívida pública. Os títulos do tesouro estadunidense são considerados o investimento mais seguro do mundo, exatamente porque, até agora em 2011, nunca na história se cogitou na possibilidade de um calote. Os pacotes de salvamento desde a crise de 2008-2009 foram justamente o que fez aumentar tremendamente o endividamento público, que levou à atual crise. Se os títulos estadunidenses perdessem valor, por conta da possibilidade de calote, isso arrastaria junto o valor do dólar, pois o lastro da moeda estadunidense é a confiança em que o governo do país sempre pagará suas dívidas.
O governo absorveu para si, direta ou indiretamente, as dívidas dos especuladores privados, transformando-os em títulos da dívida pública. Os títulos do tesouro estadunidense são considerados o investimento mais seguro do mundo, exatamente porque, até agora em 2011, nunca na história se cogitou na possibilidade de um calote. Os pacotes de salvamento desde a crise de 2008-2009 foram justamente o que fez aumentar tremendamente o endividamento público, que levou à atual crise. Se os títulos estadunidenses perdessem valor, por conta da possibilidade de calote, isso arrastaria junto o valor do dólar, pois o lastro da moeda estadunidense é a confiança em que o governo do país sempre pagará suas dívidas.
A economia mundial tem funcionado, ao menos na última década, com base em uma dinâmica que tem seu eixo no comércio internacional em direção aos Estados Unidos. A produção de mercadorias está mundializada em países como a China, que exportam para os Estados Unidos e recebem pagamento em dólar. Os países exportadores acumulam reservas em dólar e adquirem títulos do governo estadunidense, ou seja, emprestam dinheiro ao governo estadunidense para que continue rolando suas dívidas. Cerca de metade dos títulos da dívida estão em poder de bancos centrais estrangeiros, cuja procura mantém essa “mercadoria” apreciada e o valor do dólar elevado. Com isso, o consumidor estadunidense pode continuar comprando mercadorias produzidas na China e pagando com um dólar ainda forte, e assim sucessivamente. A possibilidade de ruptura nesse circuito, com o não pagamento dos títulos da dívida pelos Estados Unidos, teria um efeito em cadeia, com a desvalorização dos títulos de dívida em poder dos credores, e também a desvalorização do próprio dólar, a cessação das exportações para os Estados Unidos, a queda do comércio mundial, uma nova recessão ou mesmo uma depressão mundial.
O endividamento e a crise estrutural do capital
Esse risco foi momentaneamente afastado com a aprovação do aumento do teto da dívida pelo congresso. Mas o fato de que o risco permanece é suficiente para provocar nervosismo no mercado. O capitalismo atual não pode funcionar sem a expectativa da continuidade dos lucros fáceis e predatórios da especulação. Assim, a crise do endividamento pode levar ao que os economistas chamam de duplo mergulho numa nova recessão. Na verdade, o conjunto da economia mundial não chegou a se recuperar da recessão iniciada em 2008. A retomada do crescimento e dos lucros em alguns núcleos capitalistas, como os próprios Estados Unidos e a Alemanha, ao longo de 2009 e 2010, empalidece diante do pano de fundo de estagnação no restante do mundo e de importantes contradições, como o desemprego e o empobrecimento nos Estados Unidos.
Isso comprova a existência daquilo que chamamos de crise estrutural do capital, ou seja, a vigência de um período histórico em que as crises periódicas são cada vez mais agudas, os períodos de recuperação mais curtos e insuficientes, e problemas cada vez maiores se acumulam para o futuro. Cada vez mais se torna claro que a defesa das condições de vida dos trabalhadores passa por uma luta contra o sistema capitalista como um todo e sua substituição por uma sociedade socialista livre da exploração e da alienação.
Daniel Menezes Delfino
12/08/2011
12/08/2011
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