28.12.11

O comunismo e a internet


O caso Wikileaks

Em fins de 2010 o site Wikileaks publicou um lote de 250 mil documentos provenientes de despachos das embaixadas estadunidenses no mundo inteiro. A publicação desses documentos revelou que a rede de embaixadas é na verdade uma vasta rede de espionagem, encarregada de coletar dados estratégicos, militares e de inteligência dos países em que estão estabelecidas, além de dados pessoais de governantes e ocupantes de cargos de alto escalão, incluindo extratos bancários, senhas, amostras de DNA, etc. Além de revelar essa função, os despachos contém análises dos agentes estadunidenses sobre a situação de cada país, do ponto de vista dos interesses da super potência. O vazamento dessas análises provocou um verdadeiro terremoto diplomático. Aliados ou adversários, grandes potências ou semi-colônias, todos são tratados nos documentos com brutal desprezo pela sua soberania e dignidade.

Os documentos expõem o caráter criminoso e desumano do imperialismo estadunidense, a agressividade de seus militares, a voracidade de suas corporações, a perfídia de seus agentes, a total falta de escrúpulos ao atacar, coagir e corromper. Os textos revelam uma prepotência verdadeiramente monstruosa ao falar de planos de guerra contra a China e a Rússia, intenções de bombardear o Irã, bombardeio de civis no Iêmen, estocagem de armas proibidas na Inglaterra, planos para retirar governantes do poder e instalar outros mais “amigáveis”, conivência com o golpe em Honduras, aprisionamento ilegal de dissidentes e opositores, tortura e desrespeito sistemático aos direitos humanos, violação de tratados internacionais, crimes de agentes da CIA, operações ocultas de governos aliados mantidas em segredo para suas populações, subornos pagos a governantes em troca de acordos favoráveis às corporações estadunidenses, obstrução de investigações criminais e judiciais contra todos esses crimes, etc. Os escândalos se sucedem numa torrente interminável, expondo a sordidez ilimitada do imperialismo estadunidense em suas pretensões de domínio mundial.

O volume de vazamentos é tão grande que o governo estadunidense nem sequer esboça uma tentativa de negar a autenticidade dos documentos. Ao invés de tentar limpar sua imagem, o que se provou de qualquer forma inviável, o governo estadunidense optou por tentar destruir a imagem de Julian Assange, o ativista australiano responsável pelo Wikileaks. Acusações de assédio sexual e estupro foram disparadas contra Assange na Suécia, o que o levou a ser detido na Inglaterra, onde aguarda julgamento sem poder sair do país. A extradição para a Suécia poderia fornecer a base para uma extradição aos Estados Unidos, onde seria acusado de “terrorismo”, conforme declarações de autoridades estadunidenses, o que poderia resultar até em pena de morte. As acusações não resistem a um escrutínio minimamente sério (há declarações anteriores das acusadoras atestando que as relações foram consensuais), o que revela que se trata de pura perseguição política.

Os documentos publicados pelo Wikileaks foram obtidos em parte por operações de hackers e em parte por vazamentos fornecidos de dentro pelo pessoal do próprio aparato diplomático e de inteligência estadunidense e das forças armadas. Um dos autores de vazamentos, o soldado Bradley Manning, foi identificado como responsável pelo vazamento de dados chocantes da guerra no Iraque, e está sofrendo perseguição criminal.

O problema da liberdade de expressão

O ódio do governo estadunidense se combina com o ódio da mídia burguesa, tornada obsoleta pelo Wikileaks, já que este se provou muito mais capaz de expor sem disfarces a verdadeira face da realidade mundial. O ataque contra o Wikileaks é um ataque contra os direitos democráticos mais básicos e contra a liberdade de expressão. Julian Assange não é um militante socialista, é apenas um ativista da mídia com ideais “democráticos”. Mesmo assim, a democracia mais elementar se provou incompatível com a continuidade do capitalismo, pois esse sistema não pode conviver com a exposição da verdade.

Por décadas tem vigorado um acordo tácito entre os grandes jornais e redes de TV nos Estados Unidos (que funciona da mesma forma no resto do mundo) pelo qual os segredos estatais mais embaraçosos não podem ser revelados. A auto-censura é uma exigência dos grandes grupos empresariais aos quais as empresas de mídia estão subordinadas, já que muitos desses grupos dependem de acordos com o governo. Agora, quando o Wikileaks cumpre o papel que caberia à mídia, os meios de comunicação se unem na campanha maciça para apresentar Julian Assange como “terrorista” e estuprador, por mais que as acusações contra ele tenham se provado escandalosamente forjadas.

O potencial da internet para a livre comunicação é uma ameaça para as grandes empresas de mídia, daí o seu desespero para derrubar o Wikileaks e criminalizar seu fundador. A campanha contra o Wikileaks foi ao ponto de retirar o site do ar por meio de ataques de negação de serviço e bloqueio dos servidores pela Amazon.com. O Wikileaks foi forçado a se instalar em um servidor na Suíça. De qualquer forma, o material revelado pelo site já foi copiado e multiplicado pelo mundo.

O controle sobre a internet

O Wikileaks cumpriu o papel que o jornalismo deveria cumprir, ou seja, trazer informação. Acontece que o jornalismo feito sob controle das empresas de mídia, jornais, revistas, rádios, televisões e portais de internet, obedece aos interesses dos seus donos e patrocinadores, não do público. A informação transmitida por esses meios chega ao público truncada, fragmentada, filtrada, censurada em suas partes mais críticas, distorcida, reinterpretada para que se conclua dos fatos o contrário do que eles representam, conforme o viés ideológico desejado pelos poderes que controlam a comunicação (a rebelião no Egito, por exemplo, aparece como uma “festa da democracia”).

Assim como os demais meios, a internet também está sujeita a esse controle. O órgão que regulamenta a rede World Wide Web, o famoso "www" que precede todos os endereços de internet, é uma entidade pública sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, ICANN). Isto significa que o governo imperialista pode eventualmente "puxar a tomada" e tirar a internet do ar (na verdade, quase toda a internet, pois existem redes "subterrâneas" por fora do www e do protocolo "http", usadas apenas por usuários altamente preparados).

Mesmo com as limitações do controle estatal e corporativo, a internet ainda propicia um espaço para a busca de formas de comunicação e compartilhamento de idéias. No período recente tem ganhado importância o fenômeno das chamadas "redes sociais", tais como os sites de relacionamento orkut (popularíssimo no Brasil), facebook e o twitter. Trata-se de uma forma de comunicação ágil e bastante prática, capaz de ligar os indivíduos em torno de gostos e preferências comuns.

Extrapolando as possibilidades dadas aos usuários comuns como as redes acima, existe um setor dos usuários da informática e da internet que não se contenta com os limites impostos pelo controle estatal/corporativo e desenvolve práticas que visam burlar esse controle. Trata-se do chamado cyberativismo, que envolve desde a criação de veículos para a disseminação de informações e idéias, a prática sistemática de distribuir essas informações e também opiniões (em canais como o próprio Wikileaks, mas também o Youtube, Blogger, Twitter, etc.), até modalidades mais radicais, como ações diretas de invasão de sistemas corporativos e estatais para adquirir informações, ou a sabotagem desses sistemas por vírus e ataques de negação de serviço (milhares de acessos simultâneos que sobrecarregam um determinado sistema e o obrigam a se auto-desligar preventivamente).

A propriedade privada como obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas

No final do século XVIII e início do XIX, com a Revolução Industrial, o capital promoveu verdadeiros milagres em termos de crescimento das forças produtivas, de um modo que, em pouquíssimo tempo, a humanidade se viu capaz de “diminuir” o mundo e ampliar magnificamente o conhecimento. Não se trata aqui de se fazer apologia ao capital, pelo contrário. Na mesma medida que se desenvolviam as forças produtivas, os trabalhadores empobreciam. As descobertas da ciência e tecnologia, ao invés de se direcionarem para as necessidades humanas, eram direcionadas para acelerar o ciclo da mercadoria e da concentração e centralização de riqueza.

Não obstante essa contradição, as grandes descobertas científicas faziam com que os antigos questionamentos passassem a ter resposta racional, derrubando a prevalência dos velhos dogmas da religião (depois de milênios de domínio retrógrado do cristianismo institucionalizado) como forma de explicar o mundo. A impressão que se tinha é de que a humanidade estava às vésperas de ser ver emancipada graças aos avanços científicos e tecnológicos. A busca constante pelo aumento da produtividade pelos capitais particulares era o grande motor propulsor que jogava a humanidade para tais descobertas e para o a crescimento das forças produtivas.

Ocorre que, depois de passado dois séculos e meio, a humanidade vê-se a retornar ao período medieval, não só no que diz respeito ao conhecimento, mas também à produtividade. Se antes a propriedade privada foi o combustível para as grandes descobertas, agora passa ser o maior empecilho para que as mesmas forças produtivas continuem a evoluir. A produtividade é tão alta que qualquer evolução técnica manda para os ares a propriedade privada. Podemos ver isso claramente no que diz respeito à tecnologia da informação e no setor audiovisual. Com um mínimo de conhecimento no manuseio de alguns programas de computador simples, qualquer pessoa pode “baixar” arquivos digitais da internet e montar uma discografia completa de seu artista preferido; montar uma videoteca com um sem-número de filmes dos mais variados gêneros, bem como uma coleção de “softwares” para as mais variadas necessidades.

Caso a pessoa não tenha conhecimentos suficientes do uso de programas para ter tais materiais em casa de forma gratuita, é possível encontrá-los facilmente a preços reduzidos no comércio informal das ruas das grandes cidades. É uma verdadeira expropriação dos grandes capitalistas da informática e da indústria cultural, que fazem de tudo para manter o controle e a propriedade privada sobre os programas, filmes, músicas e textos. No desespero, os capitalistas fazem uma verdadeira campanha para que as pessoas adquiram somente “produtos originais”, por meio de um ataque ideológico à produção e ao comércio paralelo de tais mercadorias, denominado como “pirataria”. O ataque ideológico se completa com a ação policial e judicial, enquadrando as pessoas que fazem uso deste ramo como criminosas.

Ocorre que a valorização da “originalidade” dos produtos de que tanto se faz menção é uma tentativa vã das das grandes corporações da mídia e da informática (detentoras da propriedade privada) de manterem o monopólio da produção e venda dos produtos. Não há, do ponto de vista da funcionalidade técnica, qualquer diferença entre um produto “original’ e o produto oriundo da pirataria, a não ser o fato de que a mercadoria “original” custa muito mais caro. Pateticamente, tenta-se moralizar a questão, como se não se tratasse de uma necessidade do dia a dia. Quem compra o produto original é “bom”, quem compra um “pirata” é “mau”. No entanto, do ponto de vista prático, quem adquire um produto por 100 ao invés de pagar 10 faz o mesmo que jogar 90 na lata do lixo.

Os capitalistas tentam desenvolver formas de manter o seu monopólio, mas todas elas são insuficientes para impedir a crescente expropriação da propriedade intelectual resultante da democratização do acesso ao resultado do trabalho humano. A democratização é um resultado do desenvolvimento da capacidade de processamento e de armazenamento de dados dos computadores e de seu mais diversos componentes, e também do desenvolvimento da capacidade do pessoal especializado em informática, que rotineiramente derruba as travas colocados pelo capital para impedir o seu livre acesso. Uma prova contundente disso está nos softwares “craqueados”, em que o usuário consegue instruções para remover “manualmente” as travas que os capitalistas colocam para impedí-los de usar os programas sem pagar. Qualquer pessoa que saiba executar estas instruções pode ter todos os programas necessários para as suas rotinas diárias praticamente de graça. E não adianta a burguesia inovar para manter a sua propriedade privada, pois, em mais tempo ou menos tempo, encontra-se um jeito para derrubá-las.

Possibilidades da internet

Um dos exemplos de como o capitalismo está mais do que obsoleto como modo de produção é o chamado "e-commerce", os sites de compras coletivas. O fenômeno começou nos Estados Unidos com o Grup.on e chegou ao Brasil com o Peixe Urbano e similares. Trata-se de um mecanismo em que um grupo de consumidores interessado em um determinado produto ou serviço (desde um eletrodoméstico a um pacote de viagens ou curso de idiomas) faz um pedido coletivo, adianta o pagamento e recebe diretamente do fornecedor original, a preços muito mais vantajosos, devido à escala do pedido. Essa operação dispensa a intermediação do capital comercial (firmas como Wal-Mart, Carrefour e outras se tornaram tecnicamente dispensáveis). Numa economia racional, possível apenas numa sociedade socialista, esse mecanismo poderia orientar a produção social determinando com enorme praticidade a quantidade dos produtos e serviços necessários para determinada população. Sob o capitalismo em que vivemos, trata-se de mais uma artimanha de um setor do capital (o Grup.on e assemelhados são empresas capitalistas como outras quaisquer) na concorrência contra outro setor, o comércio varejista tradicional, tornado socialmente inútil.

Um outro movimento que retrata exemplarmente a luta pelo desenvolvimento das forças produtivas contra o limite das relações capitalistas de propriedade privada é o do "software livre". Os softwares (programas de computador, como o Windows, Internet Explorer, Word, Excel, etc.) de tipo tradicional são desenvolvidos e patenteados por empresas que detém a propriedade do seu "código-fonte", a “linguagem interna” por meio da qual o programa "conversa" consigo mesmo para desempenhar suas tarefas. Os softwares livres (o mais famoso dos quais é o Linux) são desenvolvidos por programadores que compartilham o código-fonte de sua autoria com outros programadores, de modo a permitir que os programas sejam aperfeiçoados por um processo coletivo de colaboração. Esses programas são mais estáveis e seguros que os da Microsoft, que praticamente monopoliza o mercado (é praticamente impossível criar vírus contra os softwares livres). Há empresas que comercializam versões do software livre para o usuário final, que em geral não domina a programação. Mesmo assim, o compartilhamento dos códigos-fontes contraria a lógica da concorrência capitalista, já que demonstra que a colaboração é mais produtiva que a concorrência.

A revolução é real e não virtual

Apesar de todas as possibilidades contidas na internet enquanto meio de comunicação, é preciso ressaltar que um veículo de comunicação por si mesmo não é capaz de substituir a luta de classes ao estilo tradicional, como acaba de demonstrar o Egito. As rebeliões populares na Tunísia e no Egito foram divulgadas, convocadas e até certo ponto coordenadas pelas redes sociais da internet, mas no momento decisivo o ditador egípcio "desligou" a internet (e também os celulares) cortando o acesso de todos os usuários do pais. Assim, a rebelião teve que prosseguir usando o método tradicional, ou seja, o bom e velho boca a boca, e conseguiu derrubar o ditador. O moral da história é que os veículos de comunicação têm uma certa utilidade na luta revolucionária, mas para realizar uma revolução real (e libertar a própria internet e outros recursos), nada substitui a consciência e a organização dos trabalhadores nas ruas.

Daniel Menezes Delfino
15/02/2011

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