28.12.11

Endividamento e crise social na Europa


“Panic on the streets of London! Panic on the streets of Birmingham!”
The Smiths, “Panic”



A atual crise de endividamento das grandes potências imperialistas está sendo tratada pela imprensa burguesa como uma espécie de acidente inesperado, como se tivesse surgido do nada. Essa desorientação é proposital, pois para explicar realmente o fenômeno seria preciso admitir a existência de defeitos fatais do capitalismo e a vigência de sua crise estrutural. A crise do endividamento não é um acidente, mas uma conseqüência direta das medidas que foram tomadas para enfrentar a crise anterior, em 2008. Todos os governos europeus, já altamente endividados, gastaram trilhões de dólares para salvar os bancos e demais especuladores da falência. Agora, os próprios governos estão à beira da falência. E para pagar suas contas, são obrigados a cortar gastos, o que afeta a vida de suas populações. As consequências desses cortes tem sido vistas na forma de uma onda de protestos e greves em vários países, e também sob formas mais inesperadas, como os violentos tumultos na Inglaterra.

Nem sequer havia sido contornado o problema dos países da periferia européia, como a Grécia (pacote de 110 bilhões de euros para evitar o calote em maio) e veio à tona a situação da Itália, a 3ª maior economia da zona do euro, com PIB equivalente a 18% do total do bloco e 120% de endividamento (só menor do que o da Grécia). Não há dinheiro suficiente para resgatar uma economia do tamanho da Itália. Na última hora o governo Berlusconi improvisou uma reforma constitucional comprometendo o governo a honrar suas dívidas com o mercado, mas mesmo isso não foi suficiente. Os bancos franceses e alemães, que possuem centenas de bilhões em títulos italianos, espanhóis e de outros países altamente endividados, se aproximaram perigosamente de um colapso ao estilo Lehman Brothers. Os índices das bolsas européias, assim como os estadunidenses, também caíram seguidamente no início de agosto, ora a pretexto da dívida italiana, depois da Bélgica, e assim sucessivamente. A divulgação dos números globais da economia (crescimento quase zero do PIB em vários países, como a própria França), não ajudou nada. Vários países chegaram a impor uma suspensão temporária da negociação de papéis de curto prazo (“short selling”) pelos bancos, numa tentativa desesperada de impedir as quedas no mercado.

A socialização dos prejuízos

Há muito tempo o limite de endividamento de 60% do PIB e déficit de 3% para países participantes do sistema do euro tornou-se uma ficção. Praticamente todos os governos europeus, dos maiores aos menores, descumpriam esses limites, o que se agravou drasticamente com a escalada de pacotes para salvar seus bancos e reativar suas economias desde 2008. Em função desse alto endividamento, os governos de vários países europeus só conseguem vender novos títulos oferecendo taxas de juros cada vez maiores. Isso faz com que aumente a dívida e diminua o prazo de pagamento, apontando para o momento inevitável do calote.

Para evitar o calote, entram em cena instituições como o FMI, o Banco Central Europeu e a própria União Européia, que fornecem pacotes de empréstimos para que os países endividados paguem suas dívidas de curto prazo. Em troca, esses governos precisam aprovar cortes nos gastos públicos, que aumentam impostos, privatizam patrimônio estatal e atacam os serviços públicos (saúde, educação, etc.), as aposentadorias, os direitos trabalhistas, etc. Em outras palavras, os trabalhadores são forçados a sofrer para que os seus governos continuem pagando os banqueiros.

As medidas de redução de gastos públicos contribuem para diminuir o consumo e desacelerar ainda mais a economia, diminuindo também a arrecadação de impostos e consequentemente a própria possibilidade de seguir pagando a dívida, num círculo vicioso. A crise da dívida européia está sendo comparada com a crise da dívida latino-americana do início dos anos 80, que levou à chamada “década perdida” sem crescimento econômico, e só terminou com o refinanciamento da dívida sob a forma de novos títulos denominados em dólares (“Plano Brady”, de autoria do então secretário do tesouro estadunidense), em 1989. Isso abriu o caminho para os programas de ajuste neoliberais da década de 1990, pois a condição dos credores para aceitar os novos títulos era que os países endividados abrissem suas economias ao comércio internacional, privatizassem empresas públicas e retirassem as proteções trabalhistas.

As consequências sociais da crise: o exemplo inglês

A divisão entre os países mais poderosos e os mais fracos se aprofunda no interior da Europa. Cada governo, motivado por questões de sobrevivência política imediata, tenta jogar sobre os outros países o ônus da crise. No momento em que seria mais urgente a unidade política européia, as burguesias nacionais de cada país entram num “salve-se quem puder”, com os mais fortes, como Alemanha e França, depauperando os mais pobres, como a Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e até Itália, impondo ajustes brutais contra suas populações, para garantir o pagamento desses países aos seus bancos.

A Inglaterra não faz parte da zona do euro, mas sofre com baixo crescimento (previsão de 1,4% em 2011, UOL, 14.08.2011), alto endividamento (US$ 2 trilhões, ou 70% do PIB e déficit fiscal de 11%, agência Carta Maior, 13.08.2011) e desemprego de 7,7% (http://www.statistics.gov.uk), segundo o índice oficial. A resposta do governo do primeiro-ministro conservador David Cameron foi um pacote de corte nos gastos públicos de US$ 130 bilhões até 2015 (Carta Maior, 13.08.2011), distribuídos entre os vários setores dos serviços públicos.

Em fins de 2010 o governo inglês aumentou as taxas de matrículas das universidades públicas, o que na ocasião já provocou uma onda massiva de protestos estudantis. Nos primeiros meses de 2011 houve o fechamento de espaços de lazer para a juventude, como parte de um pacote de cortes nos gastos sociais, que afetaram várias outras áreas do serviço público. Os jovens convivem com uma altíssima taxa de desemprego (de um total de 2,48 milhões de desempregados, cerca de 963 mil são jovens com menos de 25 anos de idade - traduzido de http://www.guardian.co.uk), combinada com a tentação do consumo estimulada pela publicidade onipresente, e com a brutalidade policial desses tempos de “guerra ao terror” (que já vitimou o brasileiro Jean Charles de Menezes, em 2005). Esses ingredientes somaram-se para produzir uma verdadeira bomba relógio social, que fatalmente explodiria.

A brutalidade policial acabou fazendo mais uma vítima fatal em 2011. Na sexta-feira 5 de agosto a polícia inglesa assassinou um jovem chamado Mark Duggan, um cidadão ingês negro, no bairro multiétnico de Tottenham, em Londres, por motivos que permanecem até agora inexplicados. Isso resultou numa onda de saques, depredações e incêndios, que tomou conta da capital Londres e várias outras cidades inglesas, como Birmingham, Liverpool e Manchester. Esse fenômeno é semelhante ao que aconteceu em Paris em novembro de 2005 e Atenas em dezembro de 2008, quando o assassinato de jovens pobres pela polícia provocou uma revolta da juventude em geral. Os jovens ingleses saquearam lojas de eletrônicos, depredaram e incendiaram prédios e automóveis, e enfrentaram a polícia durante quatro noites. Houve milhares de prisões, centenas de feridos e 5 mortes, até que a situação voltasse ao controle das autoridades.

A necessidade de uma alternativa socialista

O governo Cameron e a mídia burguesa trataram os acontecimentos como uma súbita onda de criminalidade, como se se tratasse de simples roubo e vandalismo. Um gigantesco efetivo policial foi mobilizado e discursos ferozes foram proferidos em defesa da segurança, da ordem e da propriedade. Isso não passa de uma tentativa desesperada de tapar o sol com a peneira. A crise social não é um “privilégio” da periferia da Europa, pois afeta um gigante global como a própria Inglaterra. Por mais que os funcionários da burguesia no Estado e na mídia se neguem a admitir, os tumultos de rua têm sim um importante significado político.

As ações dos jovens ingleses, mesmo que não apontem diretamente para uma luta política contra o Estado (como era o caso especialmente dos jovens atenienses em 2008), revelam uma série de componentes ideológicos: frustração com as promessas não cumpridas de prosperidade (desejo de consumo), ódio contra o Estado e suas instituições, especialmente a polícia, desprezo para com a lei e a propriedade, disposição de luta e coragem para enfrentar a autoridade.

Tudo isso precisa ser conduzido para as causas corretas: contra os cortes nos gastos sociais, contra o pagamento da dívida aos banqueiros e especuladores, por emprego, salário e serviços públicos para todos, contra o Estado e suas instituições autoritárias e anti-populares. Só essa luta pode levar a um avanço de consciência que permita projetar a superação do capitalismo e a construção de uma sociedade socialista.

Daniel Menezes Delfino
15/08/2011

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