14.12.10

Tropa de elite 2: vitória da violência



No cinema de Hollywood as continuações em geral seguem uma fórmula típica em que tudo aumenta de escala: a ambição da trama, os desafios, o drama dos personagens, as reviravoltas no roteiro, os efeitos especiais, as cenas de ação, etc. O segundo “Tropa de Elite” segue esta fórmula e também amplia suas ambições.

O primeiro episódio tinha como alvo ideológico a “consciência social” da pequena-burguesia universitária, que milita em ONGs, é “amiga dos pobres” e consome maconha. No discurso do filme, o usuário de drogas é o culpado pela violência, pois é o seu dinheiro que financia o tráfico, e que arma os traficantes, com as mesmas armas com as quais se cometem os demais crimes. Para proteger “a sociedade” contra o crime, prossegue o filme, uma polícia comum não serve, pois a PM é na verdade sócia do crime, por meio da corrupção. A solução é o BOPE, uma tropa de elite selecionada por meio de métodos extremos de treinamento, capaz de desbaratar qualquer quadrilha por meio de técnicas de tortura e de guerra dignas de qualquer filme de Rambo. Para completar, o “bandido” é apresentado como uma raça à parte dos demais seres humanos, os “cidadãos de bem”, não como uma categoria social produzida por relações sociais específicas, e como tal pode ser torturado e morto pelos “mocinhos” da história sem qualquer sombra de remorso.

Ainda que tivesse alguma pretensão crítica por expor as entranhas da corrupção policial ou mesmo a destruição da vida pessoal do capitão do BOPE (que se torna ele próprio usuário de drogas – estas legalizadas – fornecidas com receita de tratamento psiquiátrico), o primeiro filme acaba funcionando como uma apologia dos métodos extremos da repressão. A questão fundamental, que é a proibição do uso de drogas, nem sequer é mencionada. Se o consumo de drogas não fosse ilegal, não haveria a necessidade de reprimir o tráfico, e não haveria quadrilhas armadas de traficantes aterrorizando a periferia das grandes cidades, e conseqüentemente não haveria a guerra entre traficantes, policiais corruptos e o BOPE. Certamente haveria um aumento do número de dependentes e de problemas para o sistema público de saúde, e haveria outros crimes a serem explorados pelo lumpesinato; entretanto, a letalidade social da proibição ao uso de drogas, com seu corolário de violência, corrupção e terror é muito maior. A série “Tropa de Elite” não discute essas possibilidades, tratando a proibição do uso de drogas como um fato dado e absoluto, um pressuposto imutável, e em cima disso constrói sua hierarquia de valores morais, de certo e errado, mocinhos e bandidos.

O resultado é uma apologia mais ou menos disfarçada da repressão, da guerra social, do extermínio de favelados, negros, nordestinos, desempregados, pelo crime de serem pobres. O herói do cinema brasileiro não é mais o bandido, o cangaceiro, expressão estética de uma “consciência social” anterior, também pequeno-burguesa e limitada, que glamourizava a resistência social dos pobres contra a repressão do Estado, como forma de aliviar a consciência pesada dessa camada social com a miséria brasileira, mas que não avançava para a defesa de mudanças profundas no regime social. Essa consciência foi tornada antiquada e a pequena-burguesia foi posta contra a parede. O novo herói do cinema nacional é o policial durão, estilo John Mclaine, da série “Duro de Matar”, em versão brasileira.


O novo episódio também não avança para um questionamento mais profundo sobre as causas do problema da violência. Logo no início, quando o BOPE está se preparando para debelar uma rebelião em um presídio, o nosso “herói”, o agora Coronel Nascimento, diz que o que impede a polícia de acabar de vez com o crime são os “intelectuais de esquerda que ganham a vida defendendo vagabundo”. O uso da expressão “vagabundo” não deixa margem de dúvidas quanto à ideologia que está sendo destilada. O criminoso é chamado de “vagabundo”, um adjetivo negativo que tem o significado de pessoa que não quer trabalhar. Logo, o criminoso não se torna criminoso por uma série de outras razões, mas simplesmente porque não quis trabalhar. Está subentendida nesse discurso a idéia de que, se o vagabundo quisesse trabalhar honestamente, ele poderia. Está expresso aí com todas as cores o brutal cinismo da ideologia burguesa, que explica as desigualdades sociais pelo mérito individual, que separa implacavelmente os vencedores dos perdedores.

O desemprego, o subemprego, o trabalho superexplorado, a miséria e a alienação em que vivem milhões de trabalhadores nas periferias são tomados também como pressupostos imutáveis, e também como se não tivessem nenhuma relação causal com a facilidade do negócio capitalista do tráfico, um mercado como outro qualquer, de recrutar seus aviõezinhos, soldados e gerentes de boca, proletários do negócio do tráfico, e seus chefes sanguinários, seus Beiradas, Baianos e Beira-mares, empreendedores capitalistas associados aos banqueiros encarregados da lavagem de dinheiro e aos políticos e magistrados encarregados de deixá-los tocar suas atividades, dentro ou fora da cadeia, em troca de propina. Combater o crime por meio da violência policial, ou por meio de ONGs assistencialistas, sem combater as suas causas, que estão na miséria social e no próprio sistema capitalista, é como enxugar gelo.

O processo social que alimenta a continuidade dos negócios criminosos e da guerra associada a ele permanece oculto ou intocado no 2º episódio de “Tropa de Elite”, que começa com a cena de rebelião no presídio, quando o Coronel Nascimento diz que os “vagabundos” deveriam ser deixados à própria sorte, para que se matassem todos. A intenção do Coronel, que expressa o desejo da consciência burguesa e pequeno-burguesa em relação aos “perdedores” da corrida social, era deixar os seus “caveiras” entrarem em cena apenas depois que os “vagabundos” rebelados tivessem exterminado seus rivais de outras facções, para exterminar por sua vez os que tivessem restado. Entretanto, ele foi atrapalhado em suas intenções pelo “intelectual de esquerda”, um professor universitário e ativista dos direitos humanos que se dispõe a negociar a libertação dos reféns e o fim da rebelião.


Temos então, com a presença do ativista de direitos humanos Diogo Fraga o salto de qualidade deste “Tropa de Elite”. Espécie de concessão à crítica, que malhou o primeiro filme por seu conteúdo explicitamente de direita, na maior parte das vezes como eco daquela consciência pequeno-burguesa habituada às fórmulas antigas do cinema nacional, e poucas vezes com real conhecimento de causa, a atuação do personagem de Fraga fornece uma espécie de contraponto ao discurso belicoso de Nascimento. Pela voz do Coronel, o militante é ridicularizado desde o início (apelidado de “Che Guevara”, espécie de deboche com os militantes de esquerda em geral), ainda mais pelo fato de ter se casado com sua ex-mulher e estar educando seu filho. Além disso, ao passar de professor universitário a deputado estadual e daí a federal, Fraga é também apresentado como alguém que tem ambições meramente eleitoreiras.

Mesmo assim, conforme o Coronel, paradoxalmente promovido para o setor de Inteligência da polícia depois do incidente no presídio, começa a tomar conhecimento das raízes profundas que unem a corrupção policial ao coração do sistema político, ele e o deputado Fraga acabam atuando em parceria para desbaratar uma quadrilha, uma das chamadas “milícias”, na verdade um esquadrão da morte de policiais corruptos que como uma máfia havia se apossado de um dos bairros da cidade, na qual estavam unidos policiais corruptos, apresentadores de TV e a cúpula da segurança pública. Os dois personagens assim “se redimem” por meio da cooperação. O filme alça então uma tentativa de reflexão mais ampla, em que o próprio Coronel, do alto da tribuna de uma CPI das milícias, se questiona “por que a sociedade o preparou para matar?”.

Nesse questionamento feito pelo filme aparecem episódios reais da história recente do Rio, como o roubo (farsesco, segundo o filme) das armas do exército, a equipe de reportagem torturada por integrantes da milícia (mortos no filme), e a CPI das milícias. O próprio Fraga é construído em cima da história do deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, que impulsionou a CPI na assembléia legislativa. Lá ele tem como adversário o apresentador de TV Wagner Montes, que como o apresentador do filme, defende a política de “tolerância zero” com “bandidos” e “vagabundos”. Os dois foram reeleitos em 2010, o primeiro com votos da classe média da zona sul, o segundo com os votos da população pobre dos morros. Um paradoxo que mereceria uma reflexão mais aprofundada, pois constitui a chave para entender as dificuldades para combater a ideologia da violência entre suas próprias vítimas, ou seja, os trabalhadores mais pobres.

A reflexão do herói do filme o leva, numa seqüência em que a câmera sobrevoa os prédios do Congresso Nacional, a deduzir que o “sistema” ao qual combateu durante toda a carreira de policial-herói vai além da simples corrupção policial, e na verdade abrange as mais altas instituições políticas, tidas como inteiramente apodrecidas pela corrupção. As conclusões aparentemente são deixadas para o espectador. Ele pode optar pelo método de Fraga/Freixo, ou pelo método de Nascimento. O Coronel não deixa de estar certo ao sugerir que as instituições estão corrompidas. Entretanto, quem o aplaude neste momento, como a burguesia que o aplaudiu no filme depois de ter comandado o massacre no presídio, são aqueles que desejariam ver o Congresso Nacional fechado para que o país voltasse a ser comandado por “heróis virtuosos”. Não surpreende que a Globo Filmes, braço cinematográfico da Rede Globo, império empresarial de mídia que nasceu e cresceu com a função de fornecer sustentação ideológica para a ditadura de 1964, esteja entre os patrocinadores do filme.

As instituições do Estado burguês estão mesmo corrompidas, assim como todas as relações sociais no sistema capitalista, baseadas na violência, no roubo (de trabalho não-pago, fonte da mais-valia) e na mentira. A solução é a derrubada dessas instituições, não apenas por “Che Guevaras”, como os que são ironizados pelo Coronel do BOPE, mas pela ação organizada e consciente da classe trabalhadora.
Daniel M. Delfino
14 de Dezembro de 2010

1.11.10

Porque votei nulo



Durante a campanha do segundo turno das eleições presidenciais configurou-se uma forte pressão no movimento em favor do voto em Dilma. Mesmo no setor da classe trabalhadora que ao longo dos oito anos de mandato do PT teve enfrentamentos sérios contra o governo Lula, a tendência do voto em Dilma é amplamente majoritária. É o caso dos sem-terra, que não viram avanço algum na reforma agrária e continuaram sofrendo pesada repressão, inclusive com mortes. E entre as categorias organizadas (metalúrgicos, professores, bancários, petroleiros, correios, etc.), cujos sindicatos e federações ainda são em sua maioria ligados à CUT e dirigidos burocraticamente pela corrente Articulação/PT e satélites, as direções sindicais governistas funcionaram como um sério obstáculo contra a mobilização e a luta durante as campanhas salariais e enfrentamentos cotidianos, mas ainda assim a tendência pelo voto em Dilma por parte desse setor também é quase unânime.

Não se trata apenas de uma opção da base, mas da própria camada dos ativistas, os trabalhadores mais conscientes e politizados, que participam e impulsionam os processos de luta. Esse setor de ativistas, como é de sua característica, não apenas declarou seu voto, mas fez campanha ativamente pela candidata do PT. Circularam em profusão as mensagens de correio eletrônico pedindo voto em Dilma ou demonizando Serra, para criar a falsa sensação de que os dois representam alternativas radicalmente diferentes e estaria em curso uma disputa de proporções épicas entre dois projetos diametralmente opostos para o pais.


A direita mostra sua cara


Não há nenhuma ressalva a fazer quanto à demonização de Serra e do PSDB. Não há nenhum erro ou exagero em demonstrar o quanto são nefastos. A campanha de Serra em 2010 trouxe à tona as afinidades do tucanato com os setores sociais e os discursos ideológicos mais reacionários da sociedade. A pregação oportunista contra o aborto, contra o MST, contra a luta armada na época da ditadura, fizeram com que saíssem das catacumbas e aderissem à campanha de Serra setores de ultra-direita, como a TFP, Opus Dei, saudosistas da ditadura e simpatizantes do fascismo de diversos coturnos e calibres. Não ignoramos aqui a periculosidade do projeto tucano e suas características fascistas. O problema é a suposição de que Dilma e o PT representam uma proteção contra a ameaça da direita.

Os companheiros que reagiram contra a ameaça da direita materializada no PSDB demonstraram um saudável instinto de defesa e uma percepção aguda do perigo que o PSDB representa, o que tem feito com que a campanha de Dilma tenha ganho algo que há muitos anos o PT havia perdido, alguns traços de militância genuína (da qual o partido já não necessita, pois suas campanhas há muito tempo têm sido bancadas por doações milionárias de grandes empresas e feita por marketeiros e cabos eleitorais pagos - militância "genoina", se preferirem). O problema é que essa militância autenticamente interessada em derrotar a direita está sendo mobilizada e instrumentalizada pelo projeto politico de um partido que funciona como um outro instrumento da burguesia. Mesmo não sendo organicamente ligados ao PT, ou até mesmo pretendendo fazer oposição ao PT no movimento, esses companheiros acabam reproduzindo o discurso do governismo.


A burguesia fez sua opção


Não há como não colocar em discussão a questão da perspectiva de classe por trás do projeto político do PT. Ganhe o PT ou o PSDB, o poder social continua nas mãos da burguesia. As relações de produção, as instituições, a propriedade privada, as demais relações sociais, a cultura, a moral e os comportamentos seguem sendo ditados pela classe dominante. O processo eleitoral nem de longe arranha esse complexo de cadeias de exploração, dominação, opressão e alienação. Se assim fosse, se houvesse uma candidatura ou partido que ameaçasse, digamos, a propriedade privada, a burguesia jamais permitiria que chegasse às eleições com condições de vitória, sem partir para um golpe ou guerra civil aberta.

Em outras palavras, isso significa que ambas as candidaturas do segundo turno eram palatáveis para a burguesia. Como não há neste momento um amplo processo de mobilização da classe trabalhadora, é a burguesia quem decide as eleições. Isso significa também que a burguesia optou pelo projeto do PT, porque o partido apresenta as credenciais de uma gestão do capitalismo em que praticamente não há conflito, o que neste momento é mais conveniente do que a truculência do PSDB. Já que o programa neoliberal original do PSDB foi incorporado e aplicado pelo PT, o PSDB ficou sem projeto para apresentar. Sem um projeto alternativo pelo qual possa se diferenciar, o PSDB acabou tendo que apelar para os seus poucos elementos ideológicos diferenciais, ou seja, os traços fascistas. Como o ataque direto e a explosão do conflito social não convém para a burguesia neste momento (não se mexe em time que está ganhando, a burguesia tem lucrado muito no governo Lula), pois o controle exercido pelo PT sobre a classe trabalhadora tem sido mais funcional, isso definiu a parada em favor de Dilma.

Assim, é correto fazer todas as críticas ao PSDB, mas é errado supor que o PT possa ser a alternativa. A correta intuição da ameaça do PSDB veio acompanhada de uma problemática falta de percepção com relação à questão fundamental: qual é o projeto da classe trabalhadora? A única defesa da classe trabalhadora contra a ameaça do PSDB, da direita e da burguesia é manter a burocracia do PT no controle do Estado? Por acaso essa presença do PT ao longo dos dois mandatos de Lula tem impedido os ataques da burguesia contra a classe?

Já falamos nos sem-terra e nas categorias organizadas, poderíamos citar o extermínio da juventude negra nas periferias, o desmonte dos serviços públicos, a continuidade da devastação ambiental, do pagamento da dívida pública fraudulenta, da corrupção desenfreada, e um longo etc. O artigo mais recente na página do Espaço Socialista (www.espacosocialista.org) faz um sumário das semelhanças e continuidades entre PT e PSDB, portanto não preciso me estender sobre isso.


As “melhorias” da era Lula


Mesmo que reconheçam semelhanças, alguns argumentam que apesar disso o governo Lula trouxe "avanços" e "melhorias" para os trabalhadores. Caberia então perguntar: avanços em que direção? Trata-se de um movimento real em direção a mudanças estruturais que alterem as relações de poder em favor dos trabalhadores, ou de pequenos ganhos econômicos resultantes de uma conjuntura econômica favorável, que não resultam de mérito ou opção do governo de turno e podem ser revertidas assim que uma nova onda da crise mundial atingir pesadamente o pais?

As chamadas melhorias obtidas pelo governo Lula não se diferenciam das que qualquer governo burguês consegue. Quem tem um pouco mais de 30 anos, como este escriba, se lembra do Plano Cruzado de Sarney, em 1986, que controlou momentaneamente a hiperinflação e garantiu ao PMDB a eleição de milhares de prefeitos naquele ano, base que fez do partido ainda hoje (e amanhã no governo Dilma) o maior partido do pais. Quem não se lembra do Plano Real em 1994, que derrotou de vez a hiperinflação (provocando conseqüências com as quais ainda estamos convivendo, mas isto é outro debate) e fez do frango o herói da eleição de FHC, com o mote de que os trabalhadores mais pobres agora também podiam consumir?

Melhorias conjunturais e superficiais podem ser e são conseguidas em vários momentos sob governos burgueses, que precisam delas para se legitimar na disputa entre as facções partidárias, mas não podem servir como argumentos para fazer com que a classe trabalhadora deva optar por um governo burguês (no caso o do PT) contra outro. O PSDB tem todas as qualidades malignas que pudermos imaginar, mas não tem a imbecilidade. Mesmo a maior "conquista" da era Lula, os programas sociais, não seriam cancelados num eventual governo do PSDB, pois se trata de uma política de DNA puramente neoliberal, elaborada no próprio Banco Mundial para assegurar a governabilidade de países muito pobres. Ou alguém aí esqueceu que o Brasil continua um país miserável, com uma das maiores desigualdades sociais do mundo, milhões de pessoas vivendo em favelas, em palafitas, em barracos, sem emprego ou em subempregos, acossados pela guerra entre as facções do crime (aquelas sem farda e com farda), sem saneamento básico, sem acesso à saúde, à educação, à cultura, etc.?

Há ainda o argumento de que o PT coloca em prática uma maior presença do Estado na economia. Em relação a isso, dois problemas: em primeiro lugar, estatização em si não representa avanço, pois mesmo os governos burgueses podem eventualmente estatizar empresas (como os governos imperialistas fizeram com instituições financeiras no auge da crise) sem alterar as relações capitalistas. Estatização não é o mesmo que socialização sob controle dos trabalhadores. Em segundo lugar, o governo Lula/PT não estatizou a economia, ao contrário do que diz a sua propaganda enganosa. Não só as privatizações anteriores não foram revertidas como novas privatizações foram feitas. E o patrimônio público remanescente, como Banco do Brasil, Caixa Econômica, Petrobrás, Correios, vem sofrendo uma privatização gradual, disfarçada, por dentro, conforme se adaptam a uma lógica de mercado. O que houve não foi estatização, mas aparelhamento do Estado pelo PT. Integrantes do partido tomaram conta das diretorias das estatais, dos fundos de pensões, das empresas controladas por esses fundos, dos ministérios, etc.


Por um projeto socialista


Se a continuidade dos ataques à classe trabalhadora, da política econômica neoliberal, da corrupção generalizada ainda não bastam para caracterizar a identidade PT/PSDB, podemos acrescentar a ausência de um verdadeiro projeto de pais. O PT se limita a administrar o capitalismo no Brasil, sem apontar para nenhuma mudança nas relações sociais. Ha alguns que argumentam que mesmo assim, é melhor ter o PT do que o PSDB no controle do Estado, pois neste momento não há condições para uma ruptura do capitalismo e uma transição ao socialismo no Brasil. Na ausência dessas condições, a única coisa a fazer seria manter o controle do Estado para impedir "a volta da direita".

Mas nem para isso os governos do tipo do PT servem. Os governos da recente onda "de esquerda" na América Latina, seja os que tiveram algum grau de enfrentamento limitado com a burguesia, como o de Chávez na Venezuela, ou os rigorosamente neoliberais, como o de Bachelet no Chile, têm sofrido derrotas eleitorais. Chávez não obteve maioria para reformas constitucionais nas eleições parlamentares de setembro e Bachelet não conseguiu eleger seu sucessor no início do ano, apesar de uma popularidade tão grande quanto a de Lula. Ao não romper com o capitalismo e manter a exploração, a alienação e a miséria, esses governos aos poucos perdem força e abrem espaço para que a direita volte, devidamente legitimada pelas urnas.

Mesmo assim, insistem, mesmo que Lula e o PT quisessem, não haveria condições de enfrentar a burguesia nacional e internacional, romper com o capitalismo e avançar para o socialismo no Brasil. Mas aqui se trata de duas questões distintas: uma coisa são as condições para uma transição ao socialismo no Brasil neste momento, outra coisa é a questão de determinar se em algum aspecto que seja a politica do PT aponta para uma luta contra o capitalismo. Pois não se trata de que Lula e o PT não podem avançar para o socialismo, mas de que não querem. Seu projeto é gerir o capitalismo sem conflitos, agradando a todas as classes e de preferência enchendo as cuecas de dinheiro no processo. Se a questão é realmente trabalhar por uma ruptura com o capitalismo, o primeiro passo é romper politicamente com o PT e construir outro projeto. Esse é o verdadeiro desafio, tanto para os que estão votando nulo como para os que votarão em Dilma querendo votar contra a direita.


A necessidade da disputa ideológica


Alguns podem dizer que mesmo que não se trate de um projeto de transição ao socialismo, a gestão do PT mais ajuda do que atrapalha nesse sentido. Mas será mesmo que não atrapalha? Para responder a essa questão, é preciso abordar minimamente alguns pressupostos de uma transição ao socialismo, como a independência de classe e a disputa ideológica.

Mesmo que a próxima onda da crise mundial demore para chegar ao Brasil, toda e qualquer melhoria que se obtenha, supondo-se que se vá conseguir alguma, será muitíssimo limitada e temporária, como as que se obtiveram em governos burgueses anteriores. Não é mais possível falar em reformar o capitalismo em plena vigência de sua crise estrutural. Ao não enfrentar o capitalismo, o PT não é capaz de obter nenhuma melhoria real e duradoura para os trabalhadores. Os ganhos paliativos são revertidos se não houver organização e preparação da classe para defender suas condições de vida e lutar por ganhos reais. E para que haja essa organização, é preciso desenvolver uma consciência socialista, o que exige romper ideologicamente com a sociedade burguesa. Eis mais uma tarefa para a qual o PT não está habilitado. O recuo de Dilma em relação à descriminalização do aborto é bastante eloqüente a respeito da venalidade ideológica do PT.

O PT não enfrenta a questão fundamental, a questão do poder social. A hegemonia permanece nas mãos da burguesia. Tanto é assim que Lula não transferiu automaticamente sua popularidade para a votação do PT. Os festejados 80% de aprovação do governo Lula não se transformaram automaticamente em votos suficientes para dar a Dilma a vitória no 1 turno. Os estrategistas do PT devem estar coçando a cabeça para descobrir porque. A resposta é que "a gente não quer só comida", como dizia o poeta. O PT foi incapaz de oferecer um projeto, uma ideologia, uma utopia, um discurso, um sentido que empolgue e apaixone as pessoas. Na ausência disso, os 80% de brasileiros que apóiam Lula se tornam presas fáceis para o discurso da direita, para a pregação da igreja e dos evangélicos contra a descriminalização do aborto, para o sensacionalismo moralista e hipócrita da mídia com sua "ética na politica" contra os escândalos de corrupção, etc. Ao não ter um projeto de sociedade diferente do projeto da burguesia, o PT não tem como politizar o debate a seu próprio favor. O terreno da ideologia, da perspectiva de classe, da visão de mundo, da consciência de classe, da solidariedade e do coletivo, constitui mais um aspecto em relação ao qual o PT não serve como defesa contra a burguesia.

Certamente é bastante irritante ver a mídia burguesa, os Estadões, Folhas, Vejas e Rede Globos da vida fazendo abertamente campanha para o PSDB, pois essa campanha, embora seja desencadeada em torno da disputa eleitoral contra o PT, tem como verdadeiro alvo as lutas da classe trabalhadora, das quais o PT já está muitíssimo distante – na verdade, no lado oposto. Para reagir contra o asqueroso discurso da mídia burguesa, a resposta não é chamar o voto em Dilma, mas argumentar em favor das lutas da classe, da luta por emprego, salário e condições de trabalho, da luta pela terra, por moradia, saúde, educação, cultura, da luta contra a criminalização do aborto, enfim, das lutas que podem conduzir à emancipação da classe. Lutas que o PT não vai encaminhar, ao contrário, vai impedir.

Não chamamos o voto nulo para fazer um ataque sectário aos companheir@s que estão cedendo à pressão do voto em Dilma, mas para chamá-los a refletir sobre a dramaticidade do momento histórico em que vivemos. Quando alguns ativistas e militantes sérios consideram que votar no PT é uma defesa contra a direita, ou a única defesa, isso demostra na verdade o quanto estamos indefesos. Ou seja, o quanto a classe trabalhadora esta órfã de um projeto.

Os partidos operários têm os seus projetos, os seus discursos. Alguns chamam a "derrotar Serra nas urnas e Dilma nas ruas", outros chamam o "voto contra Serra" (que pode ser um voto em Dilma ou nulo), formulações puramente retóricas que não respondem à questão fundamental: com que força social organizada se espera derrotar Dilma nas ruas? Como se espera organizar e conscientizar a classe trabalhadora para derrotar o projeto burguês conduzido pelo PT chamando voto no PT?

A crise da alternativa socialista


Há um problema de fundo, que mesmo as organizações que estão propondo a politica que considero correta neste momento, o voto nulo, não estão abordando, que é a crise da alternativa socialista. Devemos sim chamar a classe trabalhadora para fazer oposição ao PT nos sindicatos e derrotar o governo burguês de Dilma nas ruas, mas em nome de qual projeto? Qual é a alternativa?

Quando se diz que o socialismo é a única alternativa, não é porque se considera que ele esteja logo ali, depois da esquina, ao alcance da mão. Pelo contrário, o socialismo não vai "chegar", ele não vai vir pronto, porque precisa ser construído, elaborado, imaginado, experimentado, sonhado, numa luta permanente contra as misérias materiais e espirituais da realidade existente. Mais do que um "modelo" de gestão da economia e da sociedade, o socialismo é uma ruptura com a alienação, porque exige que os trabalhadores tomem sob seu controle todos os aspectos de sua vida, de forma consciente e responsável, de uma forma que não haja mais patrões e trabalhadores, governantes e governados, dirigentes e dirigidos, pensadores e trabalhadores braçais, mas que haja seres humanos completos capazes de desenvolver todos os seus potenciais. Muito além da tomada do poder político, o socialismo envolve uma completa reformulação das relações sociais. O socialismo pode estar mais ou menos distante do horizonte imediato, questão que é preciso acompanhar sempre, pois o tempo histórico tanto pode estagnar como produzir acelerações repentinas, em que a consciência avança em meses aquilo que não pode avançar em anos ou décadas. Seja como for, o primeiro passo na direção do socialismo não será dado votando em Dilma, confiando no PT.


Por um Movimento Político dos Trabalhadores

Mas para irmos concluindo, qual é então a alternativa, qual é a saída? Basta votar nulo? É evidente que não, por tudo o que dissemos. A ação politica da classe trabalhadora não passa preferencialmente por opções de voto, mas pela luta, pela retomada dos espaços de organização existentes (sindicatos) e a construção de novos organismos, pela renovação da teoria e da prática do socialismo, pela disputa da consciência contra a ideologia burguesa dominante, pela construção de espaços em que se efetivem práticas emancipatórias e se projetem novas relações socialistas.

Uma tarefa desse porte excede as forças dos agrupamentos hoje existentes. Nem o PSOL, o PSTU, o PCB, o PCO, ou uma frente de agrupamentos menores como o próprio Espaço Socialista, mais os ativistas hoje independentes, têm condições de vencer esse desafio. As dificuldades são enormes, mesmo se todos os setores da esquerda atuassem unificados. Separados como estão no momento, tornam-se proibitivas. Precisamos tirar lições de nossos erros e impedir que se repitam no futuro. A unidade da esquerda se coloca no próximo período como uma questão mais vital do que nunca. Precisamos construir um Movimento Politico dos Trabalhadores, em que as organizações e os ativistas independentes preservem suas diferenças de concepção, mas consigam encontrar uma referência comum de organização para as lutas que virão, um projeto que possa ser levado ao conjunto da classe como alternativa contra a barbárie capitalista.



Daniel M. Delfino
31 de Outubro de 2010






22.6.10

Copa 2010: torcer ou não torcer, eis a questão



“Enquanto houver burguesia, não vai haver poesia”
Cazuza
“Burguesia”

O futebol moderno surgiu nas escolas públicas britânicas em meados do século XIX e se popularizou no fim do século entre os operários. Enquanto a burguesia cultivava passatempos caríssimos como caça à raposa, golfe, iatismo ou alpinismo, o povo jogava e torcia pelo futebol. Marinheiros e operários britânicos levaram o futebol ao mundo inteiro no início do século XX e o tornaram o esporte mais popular em quase todo o planeta, com raras exceções, como os Estados Unidos. O futebol é o esporte mais democrático do mundo por ser um jogo simples, dinâmico, plástico, e também por não requerer equipamentos nem qualidades físicas excepcionais e poder ser praticado em qualquer terreno.

Como toda produção humana na época capitalista, o futebol se converteu em mercadoria, quando os clubes se tornaram empresas que vendem o espetáculo aos seus torcedores nas arquibancadas e nas poltronas diante da TV. Empresários de jogadores, publicitários, emissoras de TV, fabricantes de materiais esportivos, cartolas de todos os calibres faturam uma fortuna que chega a 1% do PIB mundial (Estadão, 30/04/2010). A FIFA, que administra esse negócio extremamente lucrativo, se gaba de ter mais países filiados do que a ONU (208). O evento máximo do futebol é a Copa do Mundo da FIFA, disputada por seleções nacionais e não por clubes, o que aumenta as implicações políticas da paixão pelo jogo.

Os governantes romanos inventaram a técnica de aliciar o povo com pão e circo. Dando seqüência a esse método, os políticos burgueses exploram a popularidade do futebol para fazer propaganda dos seus governos. Com a “squadra azzurra” bicampeã em 1934-38, Mussolini conseguiu o que Hitler tentou com a Olimpíada de Berlim em 1936, ou seja, usar o esporte para demonstrar o triunfo de seu governo. O mesmo fez a ditadura militar brasileira com a excepcional seleção campeã em 1970, provavelmente o melhor time de futebol que já existiu. E também a ditadura argentina, que organizou a Copa de 1978 para ser vencida em casa por sua seleção (o tiro quase saiu pela culatra, pois as Mães da Praça de Maio se aproveitaram da presença da imprensa internacional no país para denunciar a desaparição dos seus filhos nas mãos da repressão). Em 1990, a Alemanha reunificada fez da vitória na Copa o “cartão de boas vindas” do capitalismo para a população da recém-anexada Alemanha Oriental.

“...e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?”
Eric Hobsbawm
“A era dos extremos”, p.197

Quem tenta remar contra a maré do entusiasmo futebolístico corre o risco de sair seriamente chamuscado, como o líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen, que repudiou a seleção tricolor de 1998 porque não era francesa e sim composta por “estrangeiros” (como o argelino Zidane), e teve que engolir esse time com toda sua diversidade vencer a Copa. O exemplo de Le Pen não foi o único, pois houve setores da esquerda brasileira que torceram contra a seleção de 1970 porque o time estava identificado com a ditadura, na sua interpretação. Esse comportamento se prolonga ainda hoje em setores da esquerda, que consideram que a vitória da seleção numa Copa favorece o governante de plantão, e portanto torcem contra.

O argumento de que a vitória da seleção na Copa representa um atraso político não se sustenta, uma vez que as derrotas da seleção não fazem com que o povo avance em sua consciência, seu grau de organização e seu desejo de derrubar o governo. Ganhar uma Copa torna o povo mais feliz, mas perder uma Copa não torna o povo mais revolucionário. Além disso, quando a seleção brasileira perde, perde para algum país cujo governante burguês de plantão também fará propaganda da sua vitória, da mesma forma espúria e oportunista como qualquer político brasileiro faz. Ao invés de torcer contra a seleção brasileira, a esquerda anti-futebol deveria não torcer para ninguém e fazer melhor o seu trabalho.

A dificuldade da esquerda para ganhar os trabalhadores para um programa revolucionário deve ser buscada em sua própria incompetência e não nas virtudes dos jogadores verde-amarelos. Neste ano de 2010, com um calendário preenchido por Copa e eleições, a esquerda revolucionária deixou de dar apoio à principal luta da classe, que foi a greve dos professores de São Paulo, passou o 1º semestre inteiro preocupada com disputas de aparato e se omitiu da tarefa crucial de antecipar as campanhas salariais. Agora, com a proximidade da Copa e das eleições, cogita-se na possibilidade de torcer contra a seleção, o que acabaria de colocar a esquerda de vez contra o sentimento geral da classe.

É evidente que todo governante burguês se aproveita dos triunfos esportivos, assim como se aproveita da descoberta do pré-sal, ou dos resultados da economia, ou de qualquer outro acontecimento que na verdade provém da exploração do trabalho, mas isso não quer dizer que esses feitos lhe pertençam. Pertencem aos trabalhadores, que são os criadores de toda a riqueza em suas múltiplas formas. Assim como qualquer realização social, o futebol não pertence à burguesia e sim aos trabalhadores que o adotaram e o tornaram um esporte capaz de produzir momentos de verdadeira beleza. O futebol é uma autêntica paixão popular, e a esquerda não pode ignorar esse sentimento, ou pior, se colocar contra.

“É mais um gol brasileiro, meu povo! Encha o peito, solte o grito na garganta e confira comigo no replay!”
Sílvio Luís
narração dos gols da seleção

O futebol é o ópio do povo? Sim, mas assim como a religião na célebre frase de Marx, muito citada e também muito deslocada do seu contexto, o ópio não tem apenas um sentido negativo, já que também funciona como “o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração”. O futebol, assim como a arte ou o sexo, podem ser momentos de refúgio e prazer num mundo alienado. A ruptura da alienação requer uma mudança social global, mas enquanto se luta por essa mudança, a alegria não tem que ser banida do mundo. Lutar por uma saída revolucionária não significa cultivar permanentemente o mau humor dos militontos. Militar pela revolução também significa militar pelo prazer, o que inclui a arte e também o futebol-arte.

Decidir sobre torcer ou não para a seleção em função do uso que os políticos e a burguesia fazem do esporte é menos legítimo do que discutir se o time do técnico Dunga e da CBF representa ou não o verdadeiro futebol brasileiro. Esse futebol pôde ser encontrado no jogo Santos X Santo André pela final do campeonato paulista (e isso quem diz é um corintiano), mas não será praticado pelo batalhão de trogloditas com o qual Dunga congestionou o meio de campo da seleção. Como todas as riquezas nacionais, o futebol também está sendo roubado do Brasil, uma vez que a administração corrupta e reacionária dos clubes e da CBF tornam o futebol brasileiro incapaz de manter seus melhores jogadores no país. A conseqüência é uma seleção “alienígena”, sem identidade com o país, sem vínculo com os torcedores/trabalhadores, e adaptada a um tipo de jogo que privilegia o resultado em lugar do espetáculo.

A seleção convocada para a Copa de 2010 é a consagração da mediocridade em detrimento do talento, da habilidade, da imaginação, do improviso e da fantasia que fizeram do estilo brasileiro de jogar futebol uma manifestação tão genuína da cultura nacional quanto o samba ou a capoeira. Os negros, mulatos e pobres brasileiros em geral aprenderam a jogar futebol em campos de terra e com bolas improvisadas; essa é a origem da técnica e domínio de bola. Quando jogavam com os brancos nos clubes de elite, as faltas contra negros, mulatos e pobres não eram marcadas pelos árbitros, o que os obrigava a se esquivar para não apanhar; essa é a origem do drible.

Foi com um futebol de drible e habilidade que o Brasil encantou o mundo e ganhou mais Copas do que qualquer outro país. E entre as seleções que apresentaram um futebol brilhante, mas não venceram Copas, como a Hungria de 1954 (os jogadores magiares abandonaram a seleção e o país depois que o stalinismo reprimiu a revolta popular anti-burocrática de 1956) e a Holanda de 1974 (a lendária “laranja mecânica”, cujo comportamento libertário atraiu a simpatia mundial, jogando sem guardar posição, levando as mulheres para a concentração e bebendo cerveja), está o Brasil de 1982. Foi assistindo aquela seleção, aos 7 anos de idade, que este escriba se apaixonou pelo futebol e se tornou um torcedor canarinho para o resto da vida. Aquele futebol não existe mais, mas a paixão permanece. Torcer pela seleção não significa deixar de ser crítico da estrutura do futebol. A esquerda muitas vezes concede apoio crítico a determinada política quando isso favorece o diálogo com a classe, e aqui declaro a minha torcida crítica pela seleção brasileira. Em 2010, estarei também torcendo pela seleção, contra Dunga, contra a CBF e contra a burguesia, e ao lado dos trabalhadores.

Daniel M. Delfino
22/06/2010

2.3.10

Avatar: revolução e paradoxo da técnica


As revoluções da história do cinema

Periodicamente, a cada uma ou duas décadas, o cinema passa por revoluções que atualizam sua capacidade de funcionar como a arte típica da sociedade capitalista moderna e expressar seus dilemas e contradições. Esbocemos sumariamente algumas dessas revoluções:

- A primeira delas foi a própria invenção do cinema como veículo para contar histórias, saindo do submundo das curiosidades circenses para se tornar um ramo independente da indústria cultural com regras, métodos e cânones próprios. Esse processo de construção do cinema como instrumento da arte narrativa passa pelas criações de Méliès, Griffith, Chaplin, Eisenstein, o movimento expressionista, até alcançar a maturidade com Orson Welles e seu “Cidadão Kane”.

- A invenção do cinema falado no fim dos anos 1920.

- A introdução das cores no fim dos anos 1930.

- O aperfeiçoamento nas técnicas de projeção nos anos 1950 (CinemaScope, Cinerama, 3D), na tentativa de fazer frente à concorrência da televisão.

- A revolução temática impulsionada pela explosão das cinematografias não-hollywoodianas (neo-realismo, nouvelle vague, cinema novo, Fellini, Kurosawa, Bergman, Kubric, etc.) no pós-II Guerra e nos anos 1950.

- A chegada dessa revolução temática a Hollywood pelas mãos da contra-cultura, na virada entre os anos 1960 e 70, deixando para trás a inocência dos musicais e contos de fadas com final feliz obrigatório. O cinema se tornou capaz de falar da vida de pessoas reais e abordar abertamente certas questões sociais, com marcos como “Adivinhe quem vem para jantar?”, “Sem destino”, “Uma rajada de balas”, “A primeira noite de um homem”, até chegar ao “Poderoso chefão”.

- A revolução dos efeitos especiais entre os anos 1970 e 80, cujos maiores expoentes são as trilogias “Guerra nas Estrelas” e “Indiana Jones”.

Conhecedores mais profundos da história do cinema poderão completar e precisar essa lista e enriquecê-la com muitos outros exemplos. Mas tal debate alongaria demais esse texto e o desviaria de seu propósito.

Voltemos à última “revolução” indicada. O desenvolvimento dos efeitos especiais foi tido como uma resposta ao surgimento dos videocassetes (assim como nos anos 1950 fora preciso responder à massificação da televisão). Era preciso criar um espetáculo suficientemente grandioso para concorrer com o conforto do vídeo doméstico e motivar os espectadores a sair de casa para continuar freqüentando as salas de cinema.

Na época esse fenômeno foi interpretado por Pauline Kael (reputada como a maior crítica de cinema estadunidense) como a verdadeira morte do cinema, pois os filmes passariam a estar cada vez mais baseados nos efeitos visuais do que na história.

Coerentemente com essa interpretação “apocalíptica”, vimos cada vez mais as salas de projeção serem invadidas por filmes de ação, aventura, fantasia, ficção científica e histórias em quadrinhos, que se sustentam em efeitos visuais e secundarizam a expressão da realidade humana. Assim como o cinema deslocou o teatro para uma espécie de gueto habitado por remanescentes cultuadores das antiguidades culturais, o cinema de efeitos especiais transformou os filmes que tratam de pessoas reais num segmento apreciado por uma restrita tribo de cinéfilos, seguidores de produções independentes, européias, asiáticas, sulamericanas, etc.

A obra de James Cameron

Toda essa digressão sobre a história do cinema se propõe a preparar o terreno para a tentativa de localizar o significado do filme “Avatar”, de James Cameron. Passemos rapidamente em revista a obra desse diretor. Cameron foi um dos protagonistas da revolução dos efeitos especiais com “O Exterminador do Futuro”, de 1984, obra impulsionada por uma história originalíssima, de profundo impacto e marcante influência no imaginário da época (influência que perdura até hoje), culturalmente representativa do último surto da Guerra Fria e embalada por uma narrativa de suspense bastante eficiente, elementos que o tornam um clássico. A partir desse sucesso inicial, Cameron desenvolveu uma carreira pouco prolífica, mas repleta de títulos que o tornaram sinônimo de ambição e inovação: “Aliens, o resgate”, “Segredo do abismo”, “O Exterminador II”, “True Lies”, “Titanic” e agora “Avatar” (tornaram-no também titular da minha lista pessoal de diretores preferidos, fato que não tem a menor importância, mas para quem ficou curioso aqui vai: Martin Scorcese, Ridley Scott, Oliver Stone, Tim Burton e David Fincher).

A curta filmografia de Cameron inclui os 2 filmes de maior bilheteria da história (o recorde de “Titanic” estava sendo superado por “Avatar” no momento em que este comentário era finalizado), fato este sim da maior relevância para os executivos de Hollywood e para a votação dos prêmios Oscar. E tal filmografia inclui ainda os marcos de mais duas revoluções na história do cinema, ou pelo menos dentro da atual fase da história:

- “Exterminador II”, primeiro exemplar de utilização maciça e bem-sucedida de imagens geradas em computador (conhecidas pela sigla em inglês “CGI”), que causou escândalo na época pelo seu elevado custo de produção (mais de U$ 100 milhões, marca esta tornada rotineira a partir de então).

- O próprio “Avatar”, filme quase inteiramente feito em CGI e concebido para ser apreciado em 3D.

O paradoxo da técnica

No que se refere à técnica cinematográfica, “Avatar” é indubitavelmente um salto adiante. As diversas revoluções técnicas do cinema citadas acima acrescentaram sucessivos aperfeiçoamentos à sua capacidade de funcionar como uma armadilha sensorial que suspende o espectador da sua relação com o mundo real e o arremessam no universo da fantasia. A sala escura, a tela gigante, a luz em que brilham os astros e estrelas, o volume ensurdecedor do som, a trilha sonora cuidadosamente arquitetada para conduzir as emoções, o ritmo da edição, a profusão dos efeitos especiais, ganharam nas últimas décadas a companhia das imagens em CGI e no caso em questão, da profundidade em três dimensões. Essas sucessivas inovações técnicas, nas quais aliás Cameron tem demonstrado inigualável aptidão, dotaram o cinema das ferramentas necessárias para reproduzir na tela as fantasias mais delirantes que o cérebro for capaz de criar.

Os elementos criativos que povoam a história de “Avatar” (colonização interplanetária, engenharia genética, controle da mente sobre outro corpo, raças de humanóides descendentes de felinos com 4 metros de altura e ossos de fibra de carbono, que moram numa aldeia-árvore e são capazes de se comunicar com animais e vegetais, que cavalgam em dragões e voam entre montanhas flutuantes) são lugares-comuns em vários nichos da ficção científica, como os contos da lendária revista de quadrinhos alternativos “Heavy Metal”. Claro que, para tornar o filme palatável para as grandes audiências, Cameron teve que retirar quase todo o sexo, violência, provocação política e amoralidade que caracterizam aquela publicação, retirando também a vulgaridade e futilidade em que os elementos acima costumam vir empacotados na revista. “Avatar” é Heavy Metal em embalagem da Disney.

A simplicidade quase banal da história e a falta de originalidade tem rendido a Cameron uma série de processos por plágio. Entretanto, a confiança do diretor em sua capacidade técnica o fez desdenhar impavidamente esses contratempos insignificantes e se dar ao luxo de se esbaldar com o brinquedo, dando livre curso a algumas das suas obsessões típicas já exploradas em filmes anteriores: o ambiente militar, a ética dos soldados, a parafernália tecnológica armamentista, os limites da ciência (e as criaturas bioluminescentes, como o absurdo “inseto-cóptero” que passeia no filme), etc.

“Avatar” representa a chegada ao patamar histórico em que qualquer coisa que pode ser imaginada pode também ser filmada de modo tecnicamente convincente, o que coloca em pauta uma outra questão: o hiper-realismo proporcionado pela técnica cinematográfica acrescenta credibilidade à fantasia ou destrói a sua fecundidade, já que não deixa nada ao espectador para ser livremente imaginado? Ou dito de outra forma, porque o cinema fantástico-hiper-realista deve ser considerado um avanço em relação ao teatro de bonecos, se este pode ser tão eficiente quanto aquele na sua tarefa fundamental, que é contar uma história?

O culto da novidade e da técnica como substitutos da vida é mais um sintoma da patologia social contemporânea, da qual “Avatar” é mais uma confirmação. Mas é uma confirmação invertida, pois a moral da história é justamente... a volta à natureza!

Esse paradoxo é o grande achado de “Avatar”. O homem adquire a capacidade de viajar pelo espaço, conservar-se vivo em sono criogênico, colonizar outros planetas, construir e reconstruir corpos por engenharia genética, controlar remotamente um outro corpo, etc., mas o seu objeto de desejo é retornar à mesma relação com a natureza que os índios praticam: caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira...

A hipótese apocalíptica

Para explicar esse paradoxo, é preciso entrar na discussão sobre a relação do cinema com o contexto político-ideológico. Dentre os filmes de Cameron, “Avatar” é uma espécie de antípoda do primeiro “Exterminador”, pois se aquele contava com uma história poderosa e efeitos que hoje podemos considerar precários, este possui um visual absolutamente deslumbrante e uma história sofrível. Ponto para Pauline Kael? Depende.

A hipótese apocalíptica que explica a decadência artística do cinema pelo abuso da técnica dos efeitos especiais tem uma contraparte dialética que consiste no fato de que a extrapolação da corrida tecnológica para o cinema corresponde proporcionalmente à vigência dessa mesma corrida tecnológica na vida social em geral. Não é apenas o cinema que se tornou irreal, mas a vida real que se tornou cinematográfica, espetacular, fantástica, ilusória e instável, no contexto histórico do capitalismo plenamente mundializado, o que vale dizer, plenamente atravessado pela aceleração explosiva das suas contradições constituintes. Nesse sentido, o cinema mais espetacular e irreal pode ser também o produto ideológico mais típico e ilustrativo de determinados fenômenos sociais muito reais. Isso atualiza o valor crítico do cinema e da crítica de cinema, ainda que o cinema em questão venha à tela completamente despido de intenções críticas; e demonstra também a impossibilidade de se fazer crítica de cinema e de arte com alguma seriedade e coerência sem uma perspectiva crítica do conjunto da vida social.

O paradoxo técnica X natureza em “Avatar” o torna culturalmente significativo a ponto de merecer a qualificação de obra revolucionária, para além do aspecto cinematográfico e do recorde de bilheteria. Para avaliar esse significado cultural, é preciso relacionar sua narrativa aos discursos ideológicos em voga. A história do filme, que já foi descrita como “Pocahontas no espaço”, é um completo clichê: soldado se apaixona por nativa e se volta contra os colonizadores dos quais era parte. Essa mesma história já foi contada antes muitas outras vezes, merecendo destaque pela profundidade antropológica e paixão humanista um outro clássico do cinema recente: “Dança com lobos” (outro fato sem a menor relevância: primeiro filme que me fez chorar).

O que torna essa narrativa culturalmente significativa é o acréscimo da questão ambiental. O ambientalismo é o bom-mocismo do século XXI. É a causa que aparentemente unifica a todos, gregos e troianos (veremos que não é bem assim nas próximas seções deste texto), o que ajuda a explicar o sucesso do filme (e o recorde de bilheteria), para além do refinamento visual. Ao colocar de um lado a defesa da natureza e de outro a sua destruição, “Avatar” fornece ao público heróis para os quais torcer e vilões aos quais odiar, e não há nada que o grande público aprecie mais do que heróis virtuosos derrotando vilões odiosos. Sem isso, não há efeitos especiais que bastem para construir um sucesso artístico e comercial dessa magnitude. Mesmo sendo rasa, banal, repetitiva, pouco criativa, a narrativa central de “Avatar” fornece ao espectador uma experiência dramática gratificante, ou seja, boa diversão.

Gregos e troianos?

A consagração artística e comercial do ambientalismo em “Avatar” (através de uma overdose de técnica cinematográfica) representa ainda uma espécie de “vingança estética” contra a era Bush. O discurso dos vilões do filme é literalmente o mesmo dos sinistros personagens que povoaram os noticiários na década de 2000, os procônsules estadunidenses no Oriente Médio e os executivos rapaces da Enron, Halliburton, AIG, Lehman Brothers e Cia. O executivo que dirige a exploração do mundo de Pandora em “Avatar” diz que tudo o que importa para os acionistas é o balanço trimestral, a mesma obsessão dos especuladores trazidos à berlinda pela atual crise econômica. O coronel que chefia a milícia particular da empresa diz que se deve “combater o terror com terror”, a mesma coisa que os Estados Unidos fizeram no Iraque e no Afeganistão (e em Guantánamo ou em outras bases secretas nas quais torturaram “suspeitos de terrorismo”) ou que Israel fez contra Gaza.

Dando mostras do quanto está sintonizado com o sentimento anti-Bush ainda presente na opinião pública mundial, “Avatar” dá a pista dos próximos alvos da “guerra ao terror”, quando lembra que o protagonista, antes de ser mandado para o espaço, serviu na Venezuela, enquanto o coronel servira na Nigéria, ambos “coincidentemente” produtores de petróleo. Ao aterrissar em Pandora, o ex-fuzileiro paraplégico ainda acredita que na Terra as forças armadas estadunidenses estão “lutando pela liberdade”, sendo que a corrupção dos soldados no processo da colonização seria causada apenas pelo fato de estarem servindo como mercenários de uma empresa privada.

Algumas de suas falas poderiam ter saído da boca de um veterano do Iraque dos nossos dias de crise econômica e desemprego galopante nos Estados Unidos, quando diz que seria possível reparar sua espinha para que pudesse voltar a andar, “mas não nessa economia, não com essa pensão”. Gradualmente o protagonista muda seu ponto de vista sobre o mundo de onde veio, pois passa-se para o lado dos nativos. Supera-se também aos poucos a hostilidade mútua entre o soldado e os cientistas. A separação entre o homem de pensamento e o homem de ação, entre trabalho intelectual e trabalho braçal, típica da cultura estadunidense, também é vencida no filme, conforme o soldado se torna capaz de refletir (o videolog mostra-se uma ferramenta bastante útil, mas também perigosa) e os cientistas de se engajar numa rebelião contra a corporação.

Cameron também subverte outro padrão típico da cultura estadunidense, retirando as mulheres do seu papel subalterno tradicional e dando-lhes funções decisivas, o que aliás é um dos traços mais marcantes da sua filmografia. Em todos os seus filmes há personagens femininas fortes, que não ficam atrás dos protagonistas masculinos, seja em inteligência ou desenvoltura. Em “Avatar”, temos a cientista-chefe e até a piloto de helicóptero, mas o destaque fica para a guerreira nativa, capaz de desafiar as tradições de seu povo para unir-se ao estrangeiro por quem se apaixonou.

Há outros traços “politicamente corretos” e pós-modernos em “Avatar”, como a concessão que se faz à religião, quando a “mãe natureza” se envolve pessoalmente no combate, enviando um exército de criaturas para enfrentar os humanos, ainda que se faça um esboço de explicação científica para a experiência mística de comunicação com a divindade-natureza vivenciada pelos Na'vi. A mesma concessão à religião, as mesmas boas intenções e o mesmo paradoxo de técnica X natureza comentado duas seções acima já foram vistos antes em “Final Fantasy”, tentativa pioneira e infeliz de substituir atores reais por CGI que fracassou estética e comercialmente. Prova de que é preciso algo mais do que boas intenções e propostas politicamente corretas para que um filme possa funcionar. “Avatar” oferece esse algo mais, expondo uma ilustração um pouco mais radical das contradições sociais.

“Cedo ou tarde, sempre temos que acordar”, aprende o fuzileiro. A operação de exploração mineral em Pandora é uma metáfora de todas as invasões imperialistas no planeta Terra. Repete-se ali o mesmo processo que se desencadeou sobre a América, a África e a Ásia, onde se destruíram povos, culturas e ecossistemas em busca de riquezas efêmeras, com a diferença de que, na batalha de Pandora, os nativos venceram. E o público que lotou os cinemas do mundo inteiro para dar a “Avatar” o recorde de bilheteria torceu pela vitória dos nativos. Eis uma novidade ideologicamente significativa, que sinaliza a vitória política do ambientalismo.

Entretanto, qual é a conclusão a que a vitória dos nativos pode nos levar? Devemos abandonar a tecnologia e voltar a viver como os índios? Será que “caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira...” devem ser o nosso ideal de felicidade e realização humana? Todo o progresso técnico realizado até hoje deve ser jogado fora, pois representa um pecado contra a inviolabilidade da mãe-natureza? Toda a ciência, a arte, a cultura, a humanização do mundo, o conforto, são inseparáveis dos males que o homem provocou?

Trabalho alienado e natureza

Para responder a essas perguntas, é preciso recorrer a uma perspectiva histórica concreta. Não existe tecnologia (nem arte, nem religião, etc.) que não esteja envolvida no contexto de determinadas relações sociais. O problema das agressões da nossa tecnologia contra a natureza não está na tecnologia em si, mas no propósito social que dirige a sua utilização. A tecnologia é apenas uma ferramenta a serviço de uma lógica social, que determina o que deve ser produzido e de que forma, e em proveito de quem. A lógica que dirige a utilização da tecnologia em nossa sociedade é a da acumulação de capital.

Portanto, não é “o homem” abstrato que agride a natureza, mas quem o faz é o homem histórico e concreto, o homem envolvido em relações de produção social e historicamente determinadas, o homem envolvido nas relações capitalistas (para as quais inconscientemente se dirige a condenação moral estetizada em filmes como “Avatar”). A relação destrutiva com a natureza (e portanto auto-destrutiva) posta em prática pelo homem é uma decorrência das relações de trabalho alienado. O paradoxo técnica X natureza que viemos debatendo se enraíza em contradições muito profundas, que requerem uma adequada contextualização antropológica e filosófica do trabalho alienado.

O trabalho é a atividade que diferencia o homem dos demais animais. O homem se torna humano por meio do trabalho, que se define como atividade previamente ideada, ou seja, consciente. Ao contrário dos demais animais, cuja atividade é inconsciente, instintiva, repetitiva e imutável, o homem altera o mundo com seu trabalho e ao fazer isso altera também a si mesmo. Por ser a única espécie capaz de alterar o mundo e a si mesmo, só o homem possui uma História propriamente dita, que é na verdade um desdobramento da história natural. O surgimento da espécie humana, com sua capacidade de trabalho, é um desenvolvimento de propriedades inerentes ao mundo natural, mas ao mesmo tempo representa o surgimento de um mundo novo, humano.

O trabalho constrói biologicamente o corpo do homo sapiens, com seu caminhar ereto, polegar opositor e cérebro superdesenvolvido, e cria o gênero humano como ser capaz de atribuir uma finalidade aos objetos e um sentido para as próprias ações. Ao satisfazer suas necessidades naturais (comer, vestir-se, abrigar-se, procriar) por meio do trabalho, o homem cria novas necessidades sociais, pois as satisfaz de modo humano. As características humanas do homem, a socialidade, a historicidade, a liberdade, a universalidade, a consciência, a linguagem, são produto do trabalho.

O trabalho é a forma especificamente humana, social e histórica, de metabolismo com a natureza. Cada ser humano está em relação com a natureza por meio de seu corpo físico, cuja existência precisa ser mantida, mas essa relação não se dá de forma imediata, pois é social e historicamente mediada pelo trabalho. O uso de recursos naturais para produzir alimentos, vestimentas, moradias, utensílios, etc., não é feito separadamente por cada indivíduo, mas coletivamente por meio da formação social da qual este indivíduo faz parte. Ou seja, o homem somente se relaciona com a natureza indiretamente, por meio de sua relação com os outros homens, com o meio social no qual desempenha algum tipo de papel produtivo e de onde recebe uma cultura.

A humanidade do homem não está dada de modo imediato na realidade histórica, ou seja, cada homem não está imediatamente unificado com a sua humanidade, da forma como estão os animais. Cada animal é imediatamente idêntico a sua espécie e capaz de fazer tudo que a espécie é capaz. O homem, ao contrário, se encontra separado de sua espécie, da sua humanidade, seu ser genérico, por conta da condição histórica da divisão da sociedade em classes e do trabalho alienado.

Assim que o trabalho se torna capaz de produzir um excedente em relação às necessidades sociais, surge uma classe social que se apropria desse excedente. Ao longo da história desenvolve-se uma luta entre as classes proprietárias e as classes trabalhadoras pela posse desse excedente do trabalho social. O controle do excedente pelas classes proprietárias transforma o trabalho numa atividade alienada, ou seja, estranha para a maior parte dos seres humanos. O homem se separa de seu ser genérico, sua humanidade, ao não poder determinar o que fazer com seu tempo de trabalho e ser forçado a trabalhar para outro. O homem se aliena da atividade do trabalho, dos produtos do trabalho, da sua relação com os outros homens, que aparecem todos como elementos externos e opressivos sobre o indivíduo; e se aliena também da natureza.

Capitalismo e destruição da natureza

Se a relação com a natureza se dá primordialmente por meio da relação social e histórica de trabalho, o trabalho alienado leva a uma relação também alienada com a natureza. Na sociedade de classes, a natureza se apresenta ao homem como ambiente externo e objeto estranho a ser controlado, dominado, usufruído e descartado, conforme os interesses da classe dominante. A natureza deixa de ser o “corpo inorgânico do homem”, como a definiu Marx, e se torna propriedade privada. Na condição de propriedade privada, a natureza pode ser usada e abusada de maneira irresponsável, pois a necessidade coletiva é desconsiderada em favor dos interesses privados.

Na sociedade capitalista, que é a forma mais recente da sociedade de classes, a natureza mais do que nunca aparece como estranha ao homem, como puro objeto de manipulação, fonte supostamente inesgotável de matéria-prima e repositório dócil para os infinitos subprodutos da ação humana (lixo e poluição). O capitalismo simplesmente ignora que a natureza não é inesgotável nem pode suportar indefinidamente os dejetos que lhe atiramos. A lógica do capital considera apenas o curto prazo, o balanço trimestral das empresas, a cotação diária da bolsa de valores, e simplesmente despreza a sobrevivência da espécie. Como disse um autorizado representante da burguesia, o economista inglês John M. Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”.

O trabalho excedente apropriado pela burguesia é a fonte da imensa acumulação de riqueza social que tem se multiplicado desde o início da Revolução Industrial, ponto de partida do capitalismo propriamente dito. Parte dessa riqueza social apropriada pela burguesia é consumida improdutivamente em luxo e parte tem que ser necessariamente reinvestida na continuidade da produção.

Acontece que não basta ao capitalista apenas manter a produção nos mesmos patamares do ciclo anterior de realização do capital, pois ele é forçado a produzir sempre mais mercadorias com o emprego de menos força de trabalho, para reduzir seus custos, aumentar seu lucro e vencer os concorrentes na competição por mercado. Essa é a única forma de realizar mais capital. A reprodução ampliada do capital é a força motriz que comanda as ações de burgueses e conseqüentemente também dos proletários na sociedade capitalista. Essa é a fonte material da ideologia do crescimento econômico (que não é sinônimo de desenvolvimento humano), do culto cego ao progresso e à novidade, que impulsiona um modo de vida voltado para o imediato e desprovido de sentido, em que os objetos se tornam sujeitos e os homens objetos.

Essa lógica social da reprodução ampliada origina uma espiral infinita de aumento da produção de mercadorias. Esse aumento da produção não leva em consideração as necessidades humanas e sim a possibilidade de lucro. A sociedade capitalista cria o paradoxo de uma gigantesca capacidade produtiva usada para gerar objetos absolutamente inúteis, como bombas atômicas e bens de luxo, ao mesmo tempo em que mais de 1 bilhão de pessoas passa fome.

Como se não bastasse o absurdo social desse desperdício e do desvio de capacidade produtiva, isso ainda é feito de uma forma tal que compromete a capacidade da natureza de suportar o impacto das ações humanas. O consumo de matérias-primas e de fontes de energia, o esgotamento da fertilidade do solo, o acúmulo de lixo, a poluição da terra, do ar e das águas chegaram a um nível tal que já ameaça a continuidade da vida. O efeito estufa, a elevação do nível dos mares, as secas e inundações, as tempestades e furacões, a escassez de água potável, as ondas mortais de frio e calor, a desertificação, a extinção em massa de espécies animais e vegetais, a multiplicação de vírus e bactérias mortais, etc.; tudo isso são conseqüências da ação irracional do capitalismo sobre a natureza.

Superação da alienação

Na natureza, a cada ação corresponde uma reação igual e contrária. Os desastres naturais não são resultado de castigo divino, mas reações naturais aos desequilíbrios provocados pelo capitalismo. Esses desastres atacam justamente as populações mais vulneráveis, os pobres, os pequenos camponeses, os moradores das periferias das metrópoles, os segmentos mais desprotegidos da classe trabalhadora, que somente acessam uma fração insignificante das riquezas geradas pelo trabalho social.

Os desequilíbrios não podem ser corrigidos sem uma ruptura com a lógica do capital. O capital é uma força social inerentemente incontrolável e submete ao seu controle todas as demais relações sociais. Não é possível impor restrições às atividades das grandes corporações capitalistas. Não existe Estado ou legislação capaz de impedir essas corporações de seguir explorando a natureza de forma irracional. Não existe pressão dos consumidores capaz de forçar as empresas a produzir de forma ambientalmente responsável A competição entre as empresas e a corrupção das instituições que teriam o papel de fiscalizar suas atividades abrem as portas para novas transgressões a cada remendo imposto pela pressão social.

Para restaurar o equilíbrio natural e reverter os graves danos já causados é preciso ao mesmo tempo reverter a lógica que dirige o emprego das forças produtivas sociais, direcionando-as para o atendimento das necessidades humanas. É preciso estabelecer racionalmente o que a humanidade precisa produzir e de que forma isso pode ser produzido sem afetar a capacidade do planeta de seguir fornecendo indefinidamente os recursos de que necessitamos. Ao invés de produzir a infinidade de objetos inúteis em que estamos entulhados, o trabalho social passaria a produzir aquilo de que os seres humanos realmente precisam para viver. Isso por si só já teria grande impacto na reversão dos danos ambientais.

Mas isso só é possível com o fim do trabalho alienado, ou seja, com a conquista do controle dos trabalhadores sobre seu tempo e seus instrumentos de trabalho. Para isso é preciso romper com a propriedade privada dos meios de produção e com a divisão da sociedade em classes. Somente uma humanidade sem classes pode se relacionar de forma racional com seu trabalho, direcionando seu tempo e recursos para produzir aquilo que realmente é necessário e considerando o equilíbrio da natureza e a continuidade da vida. Ao mudar a relação do homem com o trabalho, muda-se também a relação com a natureza.

Para a natureza é indiferente que o planeta seja habitado por seres inteligentes ou por bactérias, pois o planeta seguirá seu curso em torno do sol, quer sejam os homens os seus passageiros ou sejam os microorganismos. Para o homem, entretanto, a preservação de certas condições indispensáveis para a sua sobrevivência, como ar respirável, água potável, terras férteis, temperaturas suportáveis, etc., deve ser resultado de sua ação consciente e coletiva. Essa ação passa necessariamente pela revolução social, pela superação da lógica do capital e pela construção do socialismo, único regime capaz de devolver ao homem o controle sobre seu trabalho, sua humanidade e sua relação racional e sustentável com a natureza.

Quando até mesmo um filme de Hollywood coloca em cena heróis em luta contra uma típica empresa imperialista, isso representa, como dissemos uma vitória política do ambientalismo. Mas o ambientalismo tal como é praticado pelas ONGs e movimentos ecológicos padece de um sério limite, que é o mesmo limite em que se encerra o filme "Avatar", ou seja, uma defesa abstrata da natureza e um repúdio também abstrato da técnica e da "civilização industrial" Ora, o problema da humanidade não está no excesso de técnica, mas no fato de que toda a tecnologia existente é propriedade de uma minoria de capitalistas, ao invés de servir à maioria, que são os trabalhadores.
Cedo ou tarde a humanidade terá que acordar, como o protagonista de "Avatar" Ou a classe trabalhadora se levanta e destrói o capitalismo ou o capitalismo destruirá o planeta.



Daniel M. Delfino
01/03/2010

9.2.10

Saia justa no centro do Espetáculo




O espetáculo e os fatos

No clássico “Sociedade do Espetáculo”, de 1967, Guy Debord identifica um salto de qualidade nos mecanismos de mistificação ideológica, por meio do qual se criou uma esfera que concentra em si toda a representação do mundo, substitui a representação real, impede a manifestação do real e impõe o domínio da falsificação. É a essa esfera que Debord denomina espetáculo. Não se trata de uma simples explosão quantitativa do volume de produção e influência da indústria cultural e dos meios de comunicação, mas da conformação de toda uma estrutura que permeia de alto a baixo as relações sociais, da cultura até a política.

A característica central do mundo do espetáculo é a falsificação. O inautêntico se impõe como verdade e bloqueia a aparição do autêntico. Todas as relações sociais trazem a marca da encenação, do inautêntico, do falsificado. O fetichismo da mercadoria se concretiza como império da imagem, da narrativa e da encenação. Tudo é performance e nada é ação. De cada um se espera que cumpra o seu papel.

A ruptura com a ordem espetacular exigirá a ação coletiva e a afirmação de indivíduos reais capazes de estabelecer relações autênticas. As rupturas parciais, que não afetam em profundidade a ordem do capital, acabam sendo assimiladas pela lógica do espetáculo. Os fatos são deglutidos pelos factóides. A função do espetáculo é sobrepor-se ao fato e torná-lo incompreensível, ou pior do que isso, inacessível à consciência.

O recente fato acontecido na faculdade Uniban e sua transformação em espetáculo expõe/oculta várias camadas de falsificação nas quais estão enredadas as relações sociais na atual etapa histórica de capitalismo mundializado e em plena crise estrutural.

No dia 22 de outubro de 2009 uma estudante do curso de turismo da faculdade Uniban, do campus de São Bernardo, foi vítima da agressão de centenas de colegas por estar usando um vestido curto. Geisy Arruda foi cercada por gritos, xingamentos, ameaças de estupro, e teve que sair da faculdade escoltada por policiais. As cenas da agressão vazaram para a internet e se tornaram domínio público. O incidente ganhou as proporções de um escândalo e se transformou em assunto nacional.

As engrenagens da indústria cultural digeriram implacavelmente mais esse incidente, encaixando-o por fim no script pré-fabricado da moça-pobre-injustiçada-que-consegue-15-minutos-de-fama-e-desaparece. Conforme o interesse do público na celebridade-mercadoria do momento arrefece, um novo episódio-escândalo-entretenimento passa a ser demandado para se tornar o assunto público. Por conta de mecanismos como esse, é provável que o destino de mais essa celebridade instantânea seja o mesmo de outros “famosos descartáveis” que retornam para o anonimato de onde nunca deveriam ter saído tão logo o interesse do público é dirigido para outro foco. Por trás do giro interminável das máquinas desse show de horrores e espuma sem conteúdo, se desenvolvem tendências que revelam mutações no estado ideológico da sociedade. São essas tendências que devemos examinar mais atentamente.

O fato e o contexto

No momento da sua maior audiência, as proporções do escândalo na Uniban foram amplificadas pela atitude da própria direção da faculdade, que puniu a vítima com a expulsão. A maioria dos alunos apoiou a expulsão, mesmo os que não participaram da agressão. A repercussão negativa contra a expulsão foi geral. A resposta contou com pressões vindas até do Ministério da Educação, que forçou a faculdade a voltar atrás e readmitir a estudante. Mas o estrago já estava feito. A Uniban já havia ganho o apelido de “Unitaliban”, por ser intolerante, ou “Unibambi”, por não gostar de mulheres com roupas curtas. Empresas começaram a recusar currículos de estudantes vindos dessa faculdade (e coloca-se a seguinte interrogação: os currículos provenientes da Uniban estão sendo recusados porque o incidente mostrou que os seus estudantes e dirigentes são intolerantes? Ou porque mostrou que seus estudantes se parecem com a vítima em questão? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?).

Vejamos mais de perto o que é de fato a Uniban. Trata-se de um simulacro de faculdade em que se vende uma mercadoria, um simulacro de educação superior, produto certificado por um diploma, cujos compradores acreditam que servirá como via de acesso para uma carreira, uma profissão na qual se projetam as esperanças ilusórias de sucesso material e acumulação de riqueza (capital em reprodução ampliada), processo que é apresentado como sendo o ápice da realização humana, ou seja, o ideal de felicidade em nossa época.

Os clientes da loja de diplomas da Uniban são oriundos da pequena-burguesia e de estratos superiores da classe trabalhadora. Eventualmente, alguns filhos de camadas mais baixas do proletariado conseguem ingressar também na faculdade, à custa de grande esforço pessoal e familiar. É o caso da própria Geisy, moradora de um bairro periférico de Diadema, filha de pais trabalhadores braçais e ela própria balconista de uma loja. Quanto à burguesia, esta evidentemente tem suas vagas garantidas nas instituições universitárias públicas, nas quais ainda se pratica algo semelhante ao ensino superior real, e nas quais um número muito menor de integrantes das classes subalternas consegue penetrar.

Todos enxergam a faculdade como uma via para a ascensão social, não porque a instituição universitária oferece algum conhecimento real sobre o mundo, mas porque fornece um verniz de “formação profissional” devidamente certificado pelo diploma, que é na realidade o objetivo final. Os professores, as aulas e o conhecimento em si são na verdade obstáculos que se interpõem entre os compradores (supostamente estudantes) e o vendedor (supostamente uma faculdade) numa transação comercial ordinária. Isso tudo é sintetizado por uma piada célebre nas faculdades particulares: “os alunos querem comprar o diploma, a faculdade quer vender, e o professor é o obstáculo no meio do caminho”.

A irritação dos estudantes da Uniban com a sua colega se deve ao fato de que a repercussão negativa desvalorizou a mercadoria em que estão empenhando seu tempo e dinheiro, o ambicionado diploma, que agora se transformou em uma mancha em seus currículos. Por isso houve grande apoio dos estudantes à tentativa de expulsar Geisy por parte da reitoria, a qual, por sua vez, estava também tentando preservar a atratividade da mercadoria que está vendendo, movimento que acabou saindo pela culatra.

Quanto a Geisy Arruda, o incidente a arremessou no redemoinho da indústria de celebridades, o mundo das revistas de fofocas e programas de TV que vivem de expor a intimidade (combinada com o exibicionismo calculado) de modelos, artistas de TV, esportistas, empresários, políticos, arrivistas, aventureiros, alpinistas sociais e oportunistas de todos os tipos. A indústria do entretenimento é sempre bastante ágil na busca de carne fresca para oferecer ao apetite do público. Geisy foi cotada para revistas masculinas, filmes pornô e desfiles de escola de samba.

Do ponto de vista do público espectador do espetáculo, Geisy deve fazer exatamente o que a indústria espera que ela faça, ou seja, aproveitar sua exposição na mídia para faturar. Se alguém fica famoso, é porque quer ganhar algum dinheiro em cima disso, raciocina o público. A narrativa-padrão em que o episódio está sendo encaixado inverte a ordem dos fatos, transformando a vítima em autora de alguma espécie de golpe. A estudante teria provocado o incidente propositalmente para obter algum tipo de notoriedade, a partir da qual poderia extrair algum lucro. O investimento da mulher em seu corpo-mercadoria (academia, salão de beleza, roupas e acessórios) deve obter seu retorno. Não há outro comportamento a se esperar da mulher que não o de encontrar alguma forma de vender seu corpo (ver textos do blog maçãs podres de 5, 8 e 15 de novembro de 2009 – http://nucleogenerosb.blogspot.com/).

A lógica da mercadoria e a ética de Big Brother

O instinto comercial e o pragmatismo explicam as reações da comunidade da Uniban a posteriori e também a interpretação do público sobre o comportamento de Geisy. Mas o que explica o fato em si na sua origem, ou seja, a agressão que vazou para a internet e se transformou em escândalo? Por que Geisy foi hostilizada a ponto de precisar de proteção policial? O que há de tão extraordinário no vestido curto? Não se trata do mesmo tipo de traje que todos estão acostumados a ver nas ruas? E mais, não estão todos acostumados a ver mulheres com muito menos roupa a cada minuto na televisão? Os estudantes da Uniban são simplesmente machistas? São talibans ou bambis que não gostam de mulheres com pouca roupa? A juventude retrocedeu para antes dos anos 60, antes da chamada “revolução sexual”, e se tornou conservadora?

Essas hipóteses são parcialmente verdadeiras, mas o conservadorismo puro e simples não explica todo o fenômeno. Há algo mais sinistro do que puro e simples conservadorismo tradicional em cena. Esse exemplo de proto-fascistização da juventude não é um fato isolado, e é produto de certos aspectos peculiares da situação histórica em que vivemos e suas correspondentes narrativas ideológicas.

A forma-mercadoria é a célula básica da sociabilidade burguesa e matriz de todas as relações sociais. O sexo é também uma mercadoria, algo que as mulheres devem vender (tornando-se atraentes, ao custo de grande sacrifício, e ao mesmo tempo seletivas, repelindo os homens, exigindo provas de compromisso e viabilidade material em troca de oferecer seu corpo aos vencedores) e os homens devem comprar (prometendo casamento, fidelidade e estabilidade material, provando que são economicamente capazes de prover um lar de contos de fadas). Toneladas de moralismo religioso, ideologia romântica e hipocrisia social costuram essa relação entre matrimônio e patrimônio, colaborando para a imposição do consumismo como razão de viver, elemento fundamental do conformismo geral que anestesia os trabalhadores na sociedade capitalista.

No mundo da vendabilidade universal, as mercadorias devem ser trocadas pelo seu valor equivalente. Essa lei absoluta da esfera da circulação foi de alguma forma transgredida pela estudante de turismo ao expor seu corpo daquela forma, o que explica a reação das demais concorrentes no mercado. Geisy teria supervalorizado seu corpo-mercadoria, buscando se sobressair na competição por meios espúrios. Ela “apelou” ao usar o traje que foi pivô da agressão, e foi punida por ter saído do seu “devido lugar”. A lógica social que motivou a agressão mistura repressão sexual, machismo, discriminação (elementos do velho conservadorismo) e uma nova espécie de ética mercadológico-comportamental. Esse fascismo de mercado aparece no nível das consciências por meio de uma “ética de Big Brother”, e aqui nos referimos não ao personagem do “1984” de Orwell, mas ao do programa de TV (embora este seja indubitavelmente uma das faces contemporâneas daquele).

O Big Brother da TV sintetiza a concorrência entre os indivíduos na competição por exposição no mercado. Os participantes do jogo são julgados pelos espectadores, que aprovam ou rejeitam as estratégias por meio das quais os jogadores tentam se destacar: há os “bad boys”, os “santinhos”, os “manipuladores”, etc. Os critérios pelos quais os espectadores julgam essas estratégias para escolher os vencedores do show são os mesmos pelos quais esses mesmos espectadores são julgados numa dinâmica de grupo ou numa entrevista para vaga num emprego. É preciso ser ao mesmo tempo firme e humilde, ousado e contido, autêntico e comedido, etc. Uma série de exigências comportamentais contraditórias desafiam os participantes, sempre em busca de um equilíbrio impossível entre estratégias de competição simultâneas e mutuamente excludentes. O Big Brother da TV é a forma dramática condensada do ambiente das agências de emprego (ver o texto “My Big Brother” – http://politicapqp.blogspot.com/2007/05/my-big-brother-o-crtico-de-cinema-da.html em que se desenvolve essa interpretação e se dá o devido crédito ao autor).

A geração de universitários educados pelo Big Brother vivencia as faculdades particulares como uma ante-sala da empresa, com visual de shopping center e códigos morais de agência de emprego. Existem regras por meio das quais os estudantes-clientes devem “vender seu peixe”. Dentro dessa lógica, Geisy teria adotado a estratégia de se vender como mulher-que-tem-o-controle-sobre-seu-corpo-e-faz-com-ele-o-que-quiser. Essa estratégia lhe foi negada pelas demais estudantes, que se sentiram lesadas na concorrência.

O script do fascismo de mercado

A mulher que usa um traje nos moldes do fatídico vestido vermelho é socialmente interpretada tanto pelos homens como pelas outras mulheres como estando “disponível para o sexo”. E aqui é irrelevante determinar se esse estereótipo é ou não compatível com a pessoa em questão. Não importa se Geisy tem um comportamento sexual livre (o qual no caso das mulheres é socialmente valorado de forma negativa e estigmatizado com epítetos como o de “vagabunda”, “vadia”, “galinha”, “puta”, etc.) autêntico e saudável ou se apenas deseja aparentar que o tem. Não importa se se trata de um comportamento real ou de simples aparência, mesmo que a aparência signifique a opção por uma estratégia de exposição que é também uma expressão de alienação e desejo de aparentar algo que não é (um padrão de beleza e comportamento que por sua vez constitui uma submissão a imperativos sociais de dominação impostos sobre as mulheres). Não importa porque não se pode conceder aos seus agressores o direito de reprimir aquilo cuja aparência não lhes apraz.

Isso seria o mesmo que dizer que ela mereceu a agressão, porque provocou, assim como as mulheres que são estupradas provocaram os criminosos por despertarem seu desejo; ou os torcedores que são vítimas dos elementos fascistas nas torcidas organizadas mereceram apanhar porque foram pegos “vacilando” com a camisa de uma agremiação rival no campo esportivo; ou ainda os jovens “emos” mereceram ser agredidos pelos carecas do ABC porque se atreveram a adotar um determinado visual que não os agrada; e assim por diante. Não se pode ser tolerante com a intolerância e o fascismo, e nesse sentido a reação das organizações de esquerda e movimentos de defesa das mulheres foi correta ao organizar manifestações de repúdio contra a faculdade Uniban (embora a compreensão real das organizações de esquerda sobre os elementos psicossociais profundos aqui discutidos seja nula).

Voltando pois ao incidente. As demais estudantes da Uniban negaram a Geisy o direito de se vestir como lhe aprouver. Ela não tem esse direito porque pertence a um estrato mais baixo da classe trabalhadora, porque é filha de migrantes nordestinos, porque não se encaixa no padrão de beleza ariano-anoréxico vigente, porque não é uma autêntica patricinha sarada e malhada, mas alguém que “indevidamente” ousa aparentar sê-lo. O fato de que ela queira aparentar sê-lo é sem dúvida uma expressão da miséria cultural da qual ela é produto e da falta de alternativas da juventude, mas nem por isso os seus agressores tem o direito de perseguí-la, pois isso expressa uma degradação muito mais perversa. Além de tudo, trata-se também de preconceito de classe e racismo. Geisy se atreveu a aparentar distintivos de inserção social que são vedados a sua classe social. Ao proceder dessa forma, ela supervalorizou sua mercadoria no cenário do Big Brother universitário capitalista.

Para que fique bem claro, repetimos o que viemos dizendo nos parágrafos anteriores: a agressão partiu de colegas do sexo feminino (conforme os relatos mais detalhados que circularam depois do escândalo – ver por exemplo http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2088/artigo156256-1.htm). Depois que as mulheres perseguiram Geisy, vieram seus namorados e afins, e depois desses toda a massa que apenas gosta de ver o circo pegar fogo e aproveita qualquer ruptura da rotina para expressar desejos reprimidos e vontade de destruição (“estupra ela”, “vamos estuprar”, gritavam).

As mulheres reprimiram em Geisy aquilo que não tem coragem de expressar através de si mesmas, ou seja, o comportamento sexual livre insinuado pelo vestido vermelho. A transformação do recalcamento psicológico individual em força social repressiva é o mecanismo essencial da psicologia de massas do fascismo. Esse mecanismo hoje está a serviço de um pragmatismo mercadológico mesquinho que enquadra a juventude (uma força social contestadora décadas atrás) no roteiro dramatúrgico barato dos reality-shows, livros de auto-ajuda e manuais de administração de empresas, entre outras formas abjetas da apologética vulgar do capital. A seguir, cenas do próximo capítulo.

Daniel M. Delfino
09/02/2010