O crítico de cinema da Folha de São Paulo, Inácio de Araújo, apresentou há alguns anos uma interpretação interessante sobre o fenômeno dos “reality show” do tipo “Big Brother Brasil”. Segundo ele esse tipo de programa televisivo funciona como uma dramatização do clima de competição vivido dentro das empreses. O acirramento da concorrência entre as empresas produz a concorrência entre os funcionários no interior de cada empresa. Dentro de cada empresa, assim como em cada grupo do BBB, há uma surda disputa pelo prêmio/emprego, que é o de permanecer na casa/empresa, em face do risco do paredão/desemprego. A ameaça de desemprego paira como uma espada de Dâmocles sobre as cabeças dos perdedores, assim como nos programas televisivos o fuzilamento público os espera no inclemente paredão.
Este escriba endossa a tese aqui apresentada. O ambiente corporativo contemporâneo manifesta de fato aspectos doentios que o aproximam dos “reality shows” competitivos. Ao mesmo tempo que todos disputam virtualmente as mesmas vagas, ou seja, querem destruir uns aos outros, todos tem que encenar um show e trabalhar juntos, construindo o ambiente fictício de uma amistosidade forçada. Por trás da convivência forçada dos “bom dia”, “boa tarde”, “até amanhã”, vicejam a inveja, a intriga, as fofocas, a adulação, a traição, etc.
Todos esses ingredientes dramáticos que nutrem a fórmula dos “reality shows” competitivos emanam da encenação hipócrita e da paranóia competitiva que dominam o ambiente corporativo. O sucesso da fórmula televisiva está calcada na realidade, mas no que ela tem de pior. O espetáculo televisivo fornece ao espectador a simulação daquilo que é o seu maior medo, que é ser demitido/excluído da casa. Ao mesmo tempo, fornece também a maior fonte de esperança e ilusão, que é a ilusão da vitória do mais honesto, do mais sincero, do mais autêntico. O espectador gosta de ter a sensação de que pode controlar o jogo por meio do qual as pessoas podem ser incluídas ou ejetadas do mercado de trabalho. Essa sensação fictícia de controle substitui precariamente a sensação concreta de completa insegurança que vigora no mundo real.
A escolha do nome “Big Brother” para esta fórmula de programa adotada pela Globo acabou provando-se acertada, mas por motivos diferentes daqueles supostos pelos seus criadores. Na percepção superficial dos inventores do programa, o “Big Brother” é o espectador, que por meio das câmeras, devassa a intimidade dos participantes. Sem compreender a profundidade da opressão descrita na distopia de Orwell, entendem que o pior crime da sociedade totalitária é a invasão da privacidade.
Mais grave do que isso, o “Big Brother” de Orwell é na verdade o próprio sistema interiorizado pelos membros da sociedade como um imperativo de obediência cega e adequação. Adequação que o capitalismo impõe a todos aqueles que disputam vagas no mercado de trabalho. Disputa que por sua vez fornece, como vimos, o verdadeiro fundamento dramático dos programas de TV do tipo BBB.
O mercado de trabalho é um grande BBB. Quem está dentro disputa para não sair, quem está fora concorre para provar que merece entrar. Quem está fora precisa provar que é “adequado”, que “preenche o perfil”, que se “enquadra nas exigências”. A “arte” do BBB imita a vida corporativa. A vida corporativa imita o ridículo do BBB. O ridículo que às vezes beira as raias do surreal. O surrealismo kafkiano é a melhor descrição para a experiência ocorrida dentro da família deste que vos escreve.
Como qualquer família brasileira contemporânea, a família deste escriba também possui um desempregado. Como milhões de desempregados, o irmão mais novo deste escriba se vê obrigado a participar da via sacra de currículos, entrevistas, filas, dinâmicas, testes, avaliações. É preciso primeiro provar que se pode ser útil, viável, vendável, lucrativo, para ser aceito no circo do mercado de trabalho capitalista. Não importa aqui quanta gente esteja disponível para trabalhar e muito menos, o que é mais grave, quanta gente esteja precisando do trabalho dessas outras pessoas.
Num sistema econômico de reprodução social como o capitalismo, que absurdamente separa a esfera da produção da esfera das necessidades humanas, imensos potenciais produtivos permanecem desperdiçados, ao mesmo tempo em que imensas carências humanas permanecem desatendidas.
Tome-se o caso particular deste meu irmão, “my little brother”, personalidade complexa e multifacetada, dotado de inúmeros talentos e campos de interesse, capaz de se desenvolver em qualquer uma destas profissões: nutricionista, preparador físico, locutor, desenhista artístico ou publicitário, designer e arquiteto. Por falta de meios, de oportunidade, de acesso e de recursos financeiros, não pode ingressar numa faculdade e desenvolver seu talento em nenhuma dessas áreas, permanecendo incapaz de se provar socialmente produtivo.
O fato de que um indivíduo com tal variedade de aptidões e teoricamente, de opções, não consiga encontrar “colocação no mercado” é um problema que primariamente diz respeito apenas à nossa família, isso é óbvio. Mas o fato que milhões de outras pessoas em milhões de outras famílias permaneçam incapazes de desenvolver seus talentos e viver com base em sua capacidade de produzir revela um defeito estrutural do sistema capitalista de reprodução social.
Independentemente de suas aptidões, capacidades e interesses, o desempregado é simples mão de obra barata, exército industrial de reserva, que cumpre a função de pressionar para baixo o valor da força de trabalho empregada. Como todo desempregado, “my brother” faz qualquer negócio. Vive de serviços temporários, braçais, desqualificados, precários. Na luta pela sobrevivência, “my little brother” entrou num “Big Brother”.
Participando de um programa de seleção corporativo, my brother foi informado das regras para entrevista: apresentar-se em traje social, barbeado, não fumar, não mascar chiclete, não usar gíria, não usar tatuagem nem piercing. Foi obrigado também a expor por escrito e oralmente porque se considera qualificado para a vaga. Teve que descrever o ambiente de onde veio, o que os membros da família fazem, como se ocupa de suas horas vagas. O sistema não admite dissonância, originalidade, autonomia, gosto próprio, individualidade, pois exige acima de tudo adequação.
Em princípio é fácil admitir que qualquer empresa tem o direito de estabelecer as exigências que quiser para admitir seu pessoal. Essa é a fria lógica do mercado. Visto que a oferta de vagas é menor do que a procura por elas, sempre haverá gente que se encaixe no padrão exigido. Esse padrão pode ser arbitrariamente fixado no nível que a empresa considerar adequado. Não importa se trata-se de um cargo de gerência ou de um trabalho braçal. Na ficção corporativa, desaparece a distinção entre a necessidade real e a aparente. Se a realidade não se encaixa no BBB corporativo, pior para a realidade. O show deve continuar.
A corporação vai assim expondo o tipo de profissional que deseja: bem articulado, estruturado, obediente, prestativo, disciplinado, sobretudo discreto. Conhecimento de idiomas foi considerado desejável. O perfil requerido pela empresa parece emergir diretamente das páginas dos manuais de auto-ajuda. Manuais e revistas que ensinam as fórmulas mágicas por meio das quais qualquer desempregado pode se tornar o profissional do século XXI. Esse profissional fictício é um soldado corporativo obediente, devotado ao trabalho, dedicado à empresa, capaz de receber metas e se desincumbir delas sem questionar, como uma máquina, um computador que recebe instruções e produz resultados. Um engravatado anônimo e indiferenciado na multidão, descartável e substituível, porém dócil, adaptado, formatado e bem comportado.
As corporações vivem a ficção de que estamos num mundo formal, bem ajustado, funcional, onde os objetos correspondem aos modelos, os processos se desenvolvem de acordo com o manual, tudo acontece conforme foi previsto, as regras são cumpridas e todos estão satisfeitos. É o que dizem os manuais de auto-ajuda, as tranqüilizadoras ficções lidas pelos executivos. Todo aspirante a uma vaga no BBB corporativo precisa rebolar e encenar essa sorridente e bem comportada ficção.
Quanto ao motivo de tudo isso, a vaga pretendida por meu irmão; o prestigioso cargo em função do qual ele se submeteu ao ridículo e surreal espetáculo do BBB corporativo: repositor de estoque.
Daniel M. Delfino
30/04/2004
Este escriba endossa a tese aqui apresentada. O ambiente corporativo contemporâneo manifesta de fato aspectos doentios que o aproximam dos “reality shows” competitivos. Ao mesmo tempo que todos disputam virtualmente as mesmas vagas, ou seja, querem destruir uns aos outros, todos tem que encenar um show e trabalhar juntos, construindo o ambiente fictício de uma amistosidade forçada. Por trás da convivência forçada dos “bom dia”, “boa tarde”, “até amanhã”, vicejam a inveja, a intriga, as fofocas, a adulação, a traição, etc.
Todos esses ingredientes dramáticos que nutrem a fórmula dos “reality shows” competitivos emanam da encenação hipócrita e da paranóia competitiva que dominam o ambiente corporativo. O sucesso da fórmula televisiva está calcada na realidade, mas no que ela tem de pior. O espetáculo televisivo fornece ao espectador a simulação daquilo que é o seu maior medo, que é ser demitido/excluído da casa. Ao mesmo tempo, fornece também a maior fonte de esperança e ilusão, que é a ilusão da vitória do mais honesto, do mais sincero, do mais autêntico. O espectador gosta de ter a sensação de que pode controlar o jogo por meio do qual as pessoas podem ser incluídas ou ejetadas do mercado de trabalho. Essa sensação fictícia de controle substitui precariamente a sensação concreta de completa insegurança que vigora no mundo real.
A escolha do nome “Big Brother” para esta fórmula de programa adotada pela Globo acabou provando-se acertada, mas por motivos diferentes daqueles supostos pelos seus criadores. Na percepção superficial dos inventores do programa, o “Big Brother” é o espectador, que por meio das câmeras, devassa a intimidade dos participantes. Sem compreender a profundidade da opressão descrita na distopia de Orwell, entendem que o pior crime da sociedade totalitária é a invasão da privacidade.
Mais grave do que isso, o “Big Brother” de Orwell é na verdade o próprio sistema interiorizado pelos membros da sociedade como um imperativo de obediência cega e adequação. Adequação que o capitalismo impõe a todos aqueles que disputam vagas no mercado de trabalho. Disputa que por sua vez fornece, como vimos, o verdadeiro fundamento dramático dos programas de TV do tipo BBB.
O mercado de trabalho é um grande BBB. Quem está dentro disputa para não sair, quem está fora concorre para provar que merece entrar. Quem está fora precisa provar que é “adequado”, que “preenche o perfil”, que se “enquadra nas exigências”. A “arte” do BBB imita a vida corporativa. A vida corporativa imita o ridículo do BBB. O ridículo que às vezes beira as raias do surreal. O surrealismo kafkiano é a melhor descrição para a experiência ocorrida dentro da família deste que vos escreve.
Como qualquer família brasileira contemporânea, a família deste escriba também possui um desempregado. Como milhões de desempregados, o irmão mais novo deste escriba se vê obrigado a participar da via sacra de currículos, entrevistas, filas, dinâmicas, testes, avaliações. É preciso primeiro provar que se pode ser útil, viável, vendável, lucrativo, para ser aceito no circo do mercado de trabalho capitalista. Não importa aqui quanta gente esteja disponível para trabalhar e muito menos, o que é mais grave, quanta gente esteja precisando do trabalho dessas outras pessoas.
Num sistema econômico de reprodução social como o capitalismo, que absurdamente separa a esfera da produção da esfera das necessidades humanas, imensos potenciais produtivos permanecem desperdiçados, ao mesmo tempo em que imensas carências humanas permanecem desatendidas.
Tome-se o caso particular deste meu irmão, “my little brother”, personalidade complexa e multifacetada, dotado de inúmeros talentos e campos de interesse, capaz de se desenvolver em qualquer uma destas profissões: nutricionista, preparador físico, locutor, desenhista artístico ou publicitário, designer e arquiteto. Por falta de meios, de oportunidade, de acesso e de recursos financeiros, não pode ingressar numa faculdade e desenvolver seu talento em nenhuma dessas áreas, permanecendo incapaz de se provar socialmente produtivo.
O fato de que um indivíduo com tal variedade de aptidões e teoricamente, de opções, não consiga encontrar “colocação no mercado” é um problema que primariamente diz respeito apenas à nossa família, isso é óbvio. Mas o fato que milhões de outras pessoas em milhões de outras famílias permaneçam incapazes de desenvolver seus talentos e viver com base em sua capacidade de produzir revela um defeito estrutural do sistema capitalista de reprodução social.
Independentemente de suas aptidões, capacidades e interesses, o desempregado é simples mão de obra barata, exército industrial de reserva, que cumpre a função de pressionar para baixo o valor da força de trabalho empregada. Como todo desempregado, “my brother” faz qualquer negócio. Vive de serviços temporários, braçais, desqualificados, precários. Na luta pela sobrevivência, “my little brother” entrou num “Big Brother”.
Participando de um programa de seleção corporativo, my brother foi informado das regras para entrevista: apresentar-se em traje social, barbeado, não fumar, não mascar chiclete, não usar gíria, não usar tatuagem nem piercing. Foi obrigado também a expor por escrito e oralmente porque se considera qualificado para a vaga. Teve que descrever o ambiente de onde veio, o que os membros da família fazem, como se ocupa de suas horas vagas. O sistema não admite dissonância, originalidade, autonomia, gosto próprio, individualidade, pois exige acima de tudo adequação.
Em princípio é fácil admitir que qualquer empresa tem o direito de estabelecer as exigências que quiser para admitir seu pessoal. Essa é a fria lógica do mercado. Visto que a oferta de vagas é menor do que a procura por elas, sempre haverá gente que se encaixe no padrão exigido. Esse padrão pode ser arbitrariamente fixado no nível que a empresa considerar adequado. Não importa se trata-se de um cargo de gerência ou de um trabalho braçal. Na ficção corporativa, desaparece a distinção entre a necessidade real e a aparente. Se a realidade não se encaixa no BBB corporativo, pior para a realidade. O show deve continuar.
A corporação vai assim expondo o tipo de profissional que deseja: bem articulado, estruturado, obediente, prestativo, disciplinado, sobretudo discreto. Conhecimento de idiomas foi considerado desejável. O perfil requerido pela empresa parece emergir diretamente das páginas dos manuais de auto-ajuda. Manuais e revistas que ensinam as fórmulas mágicas por meio das quais qualquer desempregado pode se tornar o profissional do século XXI. Esse profissional fictício é um soldado corporativo obediente, devotado ao trabalho, dedicado à empresa, capaz de receber metas e se desincumbir delas sem questionar, como uma máquina, um computador que recebe instruções e produz resultados. Um engravatado anônimo e indiferenciado na multidão, descartável e substituível, porém dócil, adaptado, formatado e bem comportado.
As corporações vivem a ficção de que estamos num mundo formal, bem ajustado, funcional, onde os objetos correspondem aos modelos, os processos se desenvolvem de acordo com o manual, tudo acontece conforme foi previsto, as regras são cumpridas e todos estão satisfeitos. É o que dizem os manuais de auto-ajuda, as tranqüilizadoras ficções lidas pelos executivos. Todo aspirante a uma vaga no BBB corporativo precisa rebolar e encenar essa sorridente e bem comportada ficção.
Quanto ao motivo de tudo isso, a vaga pretendida por meu irmão; o prestigioso cargo em função do qual ele se submeteu ao ridículo e surreal espetáculo do BBB corporativo: repositor de estoque.
Daniel M. Delfino
30/04/2004
Nenhum comentário:
Postar um comentário