Análise de conjuntura é um esporte arriscado. Ainda mais num momento em que, como disse o filósofo, quem adivinhar o que vai acontecer, é porque não está entendendo nada. Mesmo assim, é preciso correr o risco e tentar escapar da contradição, antecipando alguns dos cenários possíveis a partir da chamada “crise do mensalão”. Num momento em que a economia ainda não foi decisivamente contaminada, condenações e prisões não foram efetuadas, mudanças legais não foram feitas, etc.; o saldo da crise consiste apenas, por enquanto, na destruição moral do Partido do Trabalhadores.
Mais do que um simples desgaste na imagem do ParTido ou de algumas de suas lideranças, temos um processo irremediável de liquidação do acúmulo de forças historicamente concretizado pela legenda em seus 25 anos. O prestígio e a relevância duramente conquistados pelo sacrifício de milhares de militantes anônimos e ilustres foi erodido numa velocidade impressionante em três meses de lambanças fulminantes.
A decomposição do PT, do ponto de vista dos seus integrantes, comporta três tipos de saídas:
1a.) Saída pela Direita – O ParTido está hoje atravessado por duas tendências contraditórias violentamente inconciliáveis: a necessidade coletiva da instituição como um todo de preservar a sua unidade a qualquer custo e a necessidade individual de seus componentes particulares de dissociar sua imagem pessoal do destino da instituição, gravemente comprometido. A rigor, não há solução para essa contradição, e nesse sentido, não é exagero dizer que o partido está morto. Não é possível saber qual das duas tendências prevalecerá. É provável que o partido continue existindo como legenda, mas quantitativamente reduzido, qualitativamente neutralizado, brutalmente mutilado, politicamente combalido, ideologicamente ainda mais desfigurado (se é que tal coisa é possível) e eleitoralmente liquidado.
Do ponto de vista de quem alimentava um “projeto de poder” de décadas, tal perspectiva representa uma derrota monumental. Mas mesmo essa sobrevida abjeta é a única saída que resta para a direção constituída em torno do Campo Majoritário. Uma saída para a qual este grupo lutará até a morte. Esse grupo trata a legenda como seu latifúndio, estando disposto, para defendê-lo, a lançar mão de uma estratégia de terra devastada, ateando fogo ao patrimônio para não deixar nada ao adversário. Expostas as vísceras da corrupção e concretizado o dano mortal ao patrimônio moral espetacularmente desfeito, o que sobra é a luta de facções. Uma luta surda para reter o poder institucional sobre o que restou da a máquina partidária, já totalmente despida dos adornos da respeitabilidade histórica e da coerência ideológica.
O trunfo da “direita do PT” é o controle férreo sobre os sindicatos, a CUT, a UNE e mesmo o MST. Os setores organizados do movimento social se tornaram feudos da Articulação: confortáveis castelos nos quais seus burocratas podem se refestelar em berço esplêndido, à revelia do que acontece com as bases a quem deveriam representar. Ao mesmo tempo, são a trincheira de onde podem galgar posições mais elevadas, como a representação dos funcionários nos fundos de pensão (e hoje, a diretoria dos mesmos), completando seu aburguesamento por vias tortas. O preço a pagar para desfrutar dessas regalias é, como todo bom vassalo, sair a campo quando seu mestre manda, o que significa travar a guerra para sustar a real mobilização popular (o risco de “chavismo” que a direita delirante espreita no governo Lulla) e impedir qualquer processo concreto de lutas.
Tudo é aceitável para esse grupo, menos a rendição às cobranças da esquerda. Mudar a orientação do governo, a política econômica, etc., é uma opção que já desapareceu completamente do horizonte do núcleo dirigente, se é que algum dia esteve. É preciso apegar-se ao neoliberalismo com uma teimosia stalinista. Rifar a história do ParTido e desnudar a traição sem mais pudores e escrúpulos. Sem mais “Carta ao povo brasileiro”, mas com uma carta na manga, o aval da banca internacional para o governo que, em dois anos e meio, a título de pagamento da dívida, já entregou R$ 300 bilhões aos credores internacionais, seus verdadeiros suseranos. Com esquerdistas assim, quem precisa da direita?
2a.) Saída pelo Centro – Na tentativa de livrar a cara e tirar o seu da reta, setores degenerados e comprometidos pelas práticas da direção podem oportunisticamente optar por sair do partido e construir uma nova organização de mesmo tipo, destinada a resguardar suas chances eleitorais. Com o suspeitíssimo discurso de que “nós não tivemos nada a ver com o mensalão”, os santinhos do pau oco podem debandar em massa do ParTido.
Mas seu destino não seria a reconstrução da esquerda e sim a construção da “terceira via” de um outro partido do mesmo tipo. Há dentro do PT um grande número de quadros que dependem mortalmente do aparato do Estado, em quantidade suficiente para formar uma nova agremiação partidária. Esses quadros, totalmente desligados de suas bases sociais e de suas origens militantes, transformaram a política representativa burguesa em profissão e saída pessoal para suas vidas, de modo que não cogitam em hipótese alguma voltar ao lugar de onde vieram. Ou, na pior das hipóteses, precisam dos mandatos parlamentares para reter a imunidade que a acompanha e manter-se a salvo de prováveis investigações criminais.
Concretizada a opção pela ruptura, a saída pelo centro pode se subdividir em duas vertentes, objetivamente equivalentes embora formalmente distintas: a criação de um ou mais novos partidos, uma série de clones da nave mãe à pique, meia dúzia de pequenos “mini-PTs” de peso social reduzido e limitada influência política; ou uma possível migração relativamente desorganizada de certas lideranças e correntes petistas em direção a organizações tais como o PC do B ou do PSB. O que seria natural, dada a absoluta identidade essencial entre o PT atual e a prática deteriorada desses partidos burocratizados, aparatistas, aparelhistas, cupulistas, de retórica vagamente “esquerdista” e programa caricaturalmente “reformista”.
Tal saída é evidentemente patética, totalmente superestrutural e descolada da dinâmica da base e das exigências concretas da luta social, mas pode seduzir os setores mais distraídos ou fanáticos do eleitorado petista e religiosamente ligados a determinados caciques do partido. Essa saída é de todas a aposta mais problemática e mais minoritária e a menos provável. Não aponta nenhum caminho de mudança e não sinaliza nenhum movimento concreto para seus militantes e simpatizantes, senão o de irem para casa.
3a.) Saída pela Esquerda – Os militantes sinceros, diretamente envolvidos nos processos de luta em curso, terão a tarefa de se reorganizar, aglutinar, repensar, discutir, debater, convidar, sinalizar, propor, elaborar, construir; enfim, retomar a iniciativa. Por um lado, o momento é totalmente desfavorável. Objetivamente, a Articulação dirige todos os movimentos sociais organizados, como dissemos acima, impedindo que as lutas tomem seu curso mais natural, que seria o encaminhamento das legítimas reivindicações populares pela via de seus canais institucionais reconhecidos, construídos justamente para isso.
Cabe pois à esquerda construir novos canais, que não necessariamente se deixarão determinar pelos estreitos limites da institucionalidade burguesa, o que pode significar a possibilidade concreta de finalmente conquistar as históricas reivindicações populares.
Como em todo recomeço, existe a possibilidade de descartar os erros, livrar-se do peso que representa a convivência de décadas com os oportunistas que afundaram o ParTido, e sob certo aspecto, começar tudo do zero. Nesse novo momento, todas as opções antes bloqueadas pelas formas de atuação institucionais adotadas passam a estar novamente disponíveis. O espaço para a inovação criadora está novamente aberto.
Esse espaço de construção vazio está por hora negativamente preenchido por uma série de importantes questões.
O destino da reorganização em curso é o de formar um novo partido? A disputa eleitoral ainda é uma forma de luta viável? Uma nova aposta na via eleitoral não iria desaguar em nova decepção, ou ainda, numa vitória da direita de pedigree? Ainda há margem objetiva para aperfeiçoar o capitalismo no Brasil e tentar num futuro remoto distribuir os frutos desse hipotético crescimento? O processo de recolonização permitirá alguma margem de manobra mínima que seja para políticas sociais? A penetração do imperialismo no país é profunda a ponto de não poder ser mais enfrentada? As conexões econômicas materiais do país com o restante do continente são um pilar que sustenta o sistema ou uma ponte para a identidade social que viabiliza a rejeição massiva ao neoliberalismo já verificada em diversos países da América Latina? Existe massa crítica para impulsionar um processo de ruptura?
Se todas essas questões não bastassem, ainda é possível adicionar alguma pimenta ao tempero. Basta mencionar as opções à esquerda do PT que efetivamente já existem como oposição, questionando-as: o PSOL não corre o risco de, na falta de definição programática que o caracteriza, tornar-se o desaguadouro natural para as deserções que encetarem a “saída pelo centro”? O PSTU reúne condições de aglutinar um processo inerentemente aberto, abrangente, diversificado, desigual e possivelmente caudaloso como o da “saída pela esquerda”?
Por meio dessas questões, talvez possamos entender o que está se passando, ou, do contrário, correr o risco de adivinhar o que vai acontecer.
Daniel M. Delfino
04/08/2005
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