(Comentário sobre o filme “Cidade baixa”)
Nome original: Cidade baixa
Produção: Brasil
Ano: 2005
Idiomas: Português
Diretor: Sérgio Machado
Roteiro: Karim Ainouz, Sérgio Machado
Elenco: Lázaro Ramos, Wagner Moura, Alice Braga, José Dumont, Tinho Bahia, Harildo Deda, Fernando de Freitas, Luís Olho de Gato, Andréa Elia, Felipe Ferreira
Gênero: drama
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
O cinema brasileiro do chamado “ciclo da retomada” da produção, iniciado em 1995 com o lançamento de “Carlota Joaquina”, tem encontrado dificuldades para ser hoje o que era o Cinema Novo na década de 1960, ou seja, uma legítima expressão da vida brasileira nas telas. Poucos filmes dessa safra, tais como “Lavoura Arcaica”, “Cidade de Deus”, “O Invasor”, “Amarelo manga”, “Madame Satã”, entre outros, alcançam esse resultado. Muitos se perdem na tentativa de encontrar a dose certa de estética hollywoodiana necessária para nos render o “cobiçado” primeiro Oscar de filme estrangeiro; outros se contentam com a busca de resultados fáceis na bilheteria por meio de concessões preguiçosas às fórmulas de entretenimento televisivas, como comédias românticas, shows da Xuxa, etc.
Nesse contexto, é muito bem-vinda uma raridade como “Cidade Baixa”, que aposta no caminho muito mais difícil do cinema que busca por aquela expressão autêntica. O autêntico aqui significa despido de qualquer tipo de artificialidade. Cinema em estado puro, sem frescura, crítico sem ser panfletário, realista sem ser chocante, contundente sem ser sensacionalista, sensual sem ser vulgar, documental sem deixar de ser divertido. Simplesmente natural.
Já dizia Tolstoi que, para ser universal, o artista deve retratar sua aldeia. A aldeia aqui no caso é a Bahia. Mais do que um bom exemplar de cinema brasileiro, trata-se de “cinema baiano”. E continuando nas contraposições, é um cinema regional sem ser estereotipado. A Bahia é aquela localidade muito especial no qual as categorias sociológicas têm que ser viradas de ponta-cabeça, ao avesso, projetadas num espelho invertido, esticadas e contorcidas; para dar conta de exprimir mesmo precariamente traços da realidade.
Em idioma “tucanês”, os protagonistas do filme, Deco e Naldinho seriam “micro-empresários do transporte fluvial” (e no caso de Deco, “praticante de esporte amador”), e Karina, uma “profissional do ramo de entretenimentos noturnos”. Na real, Deco e Naldinho, amigos de infância, são biscateiros, sobem e descem o rio levando mercadoria de Salvador para o interior, quando há serviço; e quando não há, transportam prostitutas de Salvador para os navios dos gringos ancorados no porto, ou se viram com lutas de boxe (arranjadas) e até com pequenos assaltos. Karina é uma das prostitutas com as quais os dois cruzam no caminho, e que literalmente adere aos dois.
Deco e Naldinho são amigos, mas são também rivais por causa de Karina. São rivais por causa dela, mas dividem a prostituta com a clientela. Não há julgamentos e falsa moralidade em jogo. As coisas são como são.
“Sexo e violência”, seria um clichê para descrever o filme de maneira imediatista e superficial. “Triângulo amoroso” seria o nome mais óbvio para a relação entre os protagonistas. Mas é preciso lembrar que estamos na Bahia. E a última coisa que se pode fazer para tentar entender a Bahia é encaixá-la em fórmulas. Aqui as relações têm outro valor. Não há formalidade. A vida tem outro ritmo. O tempo passa de maneira diferente. As coisas vão e vem, ao sabor do vento, da correnteza do rio, das ondas do mar, do sol e da chuva, do que dá na telha.
O difícil é captar esse espírito com as lentes de uma câmera. Obter a dose certa de distanciamento e de aproximação, o andamento mais rápido ou mais lento da trama, o entrar e sair dos elementos da narrativa. Respeitar o ritmo dos acontecimentos. Causar impacto sem ser agressivo, expor os personagens sem julgá-los. Se foi dito que o filme procura ser “simplesmente natural”, essa simples naturalidade aparece em “Cidade Baixa” como resultado de uma complexa operação de lapidação e refinamento. A precisão dessa operação se expressa inclusive no inacabamento de um final aberto.
O filme tem começo, meio e fim, e ao mesmo tempo não tem. Os acontecimentos estão lá, se passam diante da câmera, que vai embora como chegou, sem pretensões. É apropriado dizer que estamos diante de um recorte na vida de pessoas que pertencem a um determinado setor da sociedade brasileira. Mas isso não é feito no tom ou na intenção de dizer que esse setor é mais feliz ou mais infeliz, vive melhor ou pior do que a média da pequena-burguesia paulistana, público-padrão para esse tipo de espetáculo. É feito apenas na intenção de dizer que vivem.
Cada um faz o que quer e ninguém tem nada com isso. A vida é pobre, mas é barata. Dinheiro se arranja aqui e ali, numa briga, num rolo, num serviço, e se gasta logo adiante, numa cerveja, num boquete. De bar em bar, de transa em transa, de golpe em golpe, a vida vai passando. Não há certo nem errado, não há crime nem honestidade, não há leis nem regras, não há planos nem estratégias. Não há negação, não há repressão, não há falsa moralidade. Mas há lealdade, há paixão, há vitalidade. Os corpos mandam na mente, se atraem e se repelem, lubrificados por algumas poucas palavras.
Biscateiros e prostitutas. Assassinato, drogas, gravidez indesejada, suicídio, assalto a mão armada, são os acidentes de percurso da trama. Esse é o ambiente da cidade baixa. Briga de galo, briga de bêbado, briga de amor.
Axé, saravá!
Daniel M. Delfino
10/09/2005
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