31.5.07

A Nova Ordem Mundial e as teorias da conspiração




A tese de que há uma conspiração em curso para estabelecer uma Ordem Mundial orquestrada nos bastidores por grupos restritos e fechados como judeus e maçons é uma antiga fantasia da direita. A persistência dessa fantasia no imaginário coletivo deve ser explicada pelo poder de sedução que ela exerceu e exerce sobre os setores mais atrasados da população (especialmente na Europa e nos EUA), sempre prontos a acreditar na existência de um misterioso “inimigo interno” e a odiar esse grupo oculto com todas as forças do preconceito. Dessa arraigada superstição popular a direita retira a pseudo-legitimidade de que se serve periodicamente para instalar regimes de força e perseguir elementos que fazem oposição ao sistema.

Essa tese da conspiração se sustenta com base em uma concepção de História altamente reacionária, na qual os únicos agentes que de fato intervém são os pequenos grupos (tanto os conspiradores fantásticos como os supostos “salvadores da pátria”), deixando às massas o papel de espectadores inermes. Essa idéia de uma suposta conspiração é portanto uma fantasia perigosa e para explicar sua influência é preciso contar um pouco de sua história e desfazer o fio da meada do obscurantismo onde ela se enraíza

No início do século XX, na Rússia, o regime czarista precisava de um bode expiatório para desviar a atenção das massas de suas candentes questões materiais. O bode expiatório ideal eram os judeus, o elemento estranho de origem asiática e religião herética ilhado num oceano de cristianismo embrutecido e fanático como era o da Rússia ortodoxa e de grande parte da Europa católica de então (e dos EUA puritanos de hoje). Para perseguir esse bode expiatório, o regime precisava de um pretexto, já que se tratava de uma minoria populacional numericamente importante. Ao contrário do mito do pequeno grupo de conspiradores secretos, os judeus eram uma massa de milhões de pessoas no Leste Europeu. Mesmo um governo altamente autoritário como o do Czar precisava de um pretexto minimamente forte para perseguir essa população.

Assim sendo, a Okrana (polícia secreta russa da época czarista, ancestral da KGB), lançou o mito dos “Protocolos dos sábios do Sião”, atribuindo aos judeus um plano de conquista mundial. Sião era o nome da fortaleza dos reis de Israel da época bíblica, situada no interior da cidade de Jerusalém. Os judeus no início do século XX estavam dispersos pelo mundo, uma vez que não existia o moderno Estado de Israel. O sonho de um “lar nacional judeu” tinha a forma concreta de um movimento político internacional denominado “sionismo”. A Okrana se aproveitou desse contexto para inventar a imagem fantástica de um grupo de conspiradores judeus, os tais “Sábios do Sião”, reunidos às escondidas para tecer sombrias estratégias de dominação mundial.

A origem do texto é um romance intitulado “Diálogos no inferno entre Maquiavel e Montesquieu”, escrito na França em 1864 por um comediante chamado Maurice Joly, contendo uma suposta conspiração tramada no inferno contra o 2º. Império, o regime de Napoleão III. Esse texto foi plagiado pelo anti-semita alemão Hermann Goedsche, que o publicou sob o pseudônimo de John Ratcliffe. Nessa versão os diálogos foram apresentados como sendo extratos de uma reunião secreta de sábios judeus. Esse plágio foi por sua vez traduzido para o russo pelo monge ortodoxo Sergei Nilus em 1903. A partir dessa versão a polícia secreta russa trabalhou para criar o mito dos judeus conspiradores.

Os tais planos apócrifos foram difundidos clandestinamente pela Okrana para servir perante a opinião pública como suposta evidência da conspiração. Os “Protocolos” ainda hoje circulam em edições piratas pelo mundo (às vezes ao lado do “Mein Kampf” de Hitler), pertencendo ao estranho submundo do folclore e das lendas urbanas modernas. Para quem se interessa pelo aspecto romanesco desse tipo de subcultura, indica-se o romance “O Pêndulo de Foucault”, de Umberto Eco. Neste caudaloso inventário do universo esotérico, podemos haurir saborosas informações sobre o pitoresco mundo de maçons, rosa-cruzes, templários, cabalistas, alquimistas, ordens iniciáticas e até macumbeiros e hackers, temperadas com refinado humor e monumental erudição, em embalagem de romance policial. Um autêntico biscoito fino literário, anos-luz à frente de embustes oportunistas e superficiais como o infame “Código da Vinci”.

Voltando à política, os “Protocolos” serviram de pretexto para os “pogrooms” que mataram milhares de judeus na Rússia pré-revolucionária. Hitler foi um dos néscios que leu os “Protocolos” e acreditou neles, adaptando-os à sua estratégia política. Para Hitler, tanto o capitalismo como o comunismo eram “criações dos judeus para conquistar o mundo”. Atribuía-se aos banqueiros judeus a crise de 1929, que mergulhou milhões de alemães na miséria, o que demonstra a mais completa ignorância sobre o real funcionamento dos mecanismos da economia capitalista. Na outra ponta, num ato de escandalosa mistificação, atribuía-se a ameaça do comunismo mundial ao marginal judeu Karl Marx, como se sua teoria da História tivesse alguma coisa a ver com sua origem judia. Para que fique bem claro, Marx era filho de judeus não-praticantes assimilados adaptados à pequena-burguesia da cidade franco-alemã de Treves, tendo sido criado num ambiente familiar já totalmente laico.

Por mais que isso fosse absurdo, Hitler propôs o nazismo às massas alemãs desesperadas como alternativa ao capitalismo inglês e ao comunismo russo, ambos secretamente “judeus” na origem, segundo sua bizarra teoria. O nazismo seria a defesa de uma mítica “kultur” alemã ameaçada pela “civilization” industrial moderna. Para que este ponto também fique claro, o nazismo era financiado pelos grandes banqueiros e industriais alemães para conter a influência dos comunistas e social-democratas no movimento operário, oferecendo às massas uma ideologia militarista agressiva expansionista e chauvinista em embalagem de nacionalismo romântico alemão. Ou seja, era uma manifestação terminal do capitalismo em crise.

No pós-guerra, a política européia foi dominada pelo conceito de bem-estar social e pela política de concessões às massas, adotada para evitar os excessos do capitalismo liberal estadunidense, bem como a ameaça soviética e a emergência da revolução socialista no continente. Nesse contexto, as massas passaram a ser vistas como o verdadeiro sujeito da política democrática, o que representa um avanço, ainda que com limitações. Evidentemente, a direita nunca se conformou com essa situação.

Já nos anos 40 o austríaco Friedrich Hayek lançou seu manifesto “O caminho da servidão”, associando a idéia de socialismo com autoritarismo e repressão ao indivíduo e defendendo a volta ao liberalismo radical do fim do século XIX. Essa obra tornou-se o marco de referência do chamado “neoliberalismo”, a defesa intransigente do capitalismo “selvagem” ultra-liberal, individualista e egoísta, privatista, anti-social, anti-popular, anti-nacional, anti-sindical, anti-planejamento, anti-regulamentação, anti-ecologia e anti-tudo isso com uma substancial dose de autoritarismo e violência militar e policial contra manifestantes e opositores.

Foi com base nesse ideário que se organizou a Sociedade de Monte Pelerin (em referência à localidade Suíça em que se reuniam) dedicada a combater ideologicamente contra o socialismo em geral, o Estado de bem-estar social europeu, o terceiromundismo, o desenvolvimentismo latino-americano, a esquerda liberal estadunidense dos anos 60, etc., ou seja, contra toda idéia ou prática minimamente progressista, em nome do império da “mão invisível” de Adam Smith.

Ainda que todos pudessem ver por trás dos novos liberais a mão bem visível das grandes corporações e finanças internacionais empenhadas em reverter as conquistas sociais duramente obtidas no desastroso século XX, o mito do “livre mercado” readquiriu influência e hegemonia. Desde 1970 passou a realizar-se na aprazível estação de esqui suíça de Davos o encontro anual do “Fórum Econômico Mundial”, herdeiro direto da “Sociedade de Monte Pelerin”.

Nesse fórum reúnem-se empresários e economistas convidados entre os mais poderosos homens de negócios e os mais influentes acadêmicos e ideólogos comprometidos com o aprofundamento do domínio do sistema do capital no planeta, para traçar estratégias com vistas ao aperfeiçoamento de seu império. Evidentemente, dão a isso o nome de busca por um “capitalismo humano” ou “socialmente responsável”, requisitando para o convescote o prestígio de governantes da periferia colonizada, como Lulla, convidado de honra em mais de uma ocasião, ou Bono Vox, pedinte de luxo sinceramente empenhado em obter migalhas para os países pobres, como o perdão de suas dívidas.

A partir de 1989-91, com o colapso do mal-denominado “socialismo real”, o neoliberalismo pôde cantar vitória, anunciar triunfalmente o fim da História e lançar o catecismo da política pós-moderna, o “Consenso de Washington”, sumário das receitas neoliberais de desregulamentação e abertura das economias nacionais ao novo imperialismo globalizado. Sintomaticamente, a expressão “Nova Ordem” empregada por Bush sênior para batizar a nova época foi cunhada por Hitler (não pela banda de música new wave britânica “New Order”).

O nome de Nova Ordem Mundial é dado ao período da História aberto com a década de 1990. Juntamente com o neoliberalismo, tornou-se hegemônica a idéia de globalização, um conceito mais “amigável”, que envolve um aspecto de ampliação dos intercâmbios e da diversidade cultural, num cenário de revolução tecnológica das telecomunicações, da internet, etc. Tanto o neoliberalismo como a “globalização” são aspectos secundários de um fenômeno antigo, já bastante conhecido, o do imperialismo, pelo qual os interesses do grande capital se transformam em pauta principal da política externa expansionista e agressiva dos grandes Estados capitalistas.

O “Consenso de Washington” colocou o neoliberalismo na moda e desde então o seu programa se impõe na política de qualquer nação ou partido, do Brasil de Lulla à Arábia Saudita fundamentalista, da China “comunista” à Alemanha social-democrata. Sob esse aspecto, não faz sentido falar em disputa secreta entre grupos de conspiradores que querem conquistar o mundo. Não há disputa, porque o mundo já foi conquistado. “Tá tudo dominado”, diz a gíria. Contra o domínio de uma classe social internacional restrita de personificações do grande capital há uma miríade de grupos que tentam se articular para fazer oposição.

Na década atual, a crença em teorias da conspiração transplantou-se da esgotada Europa para os supersticiosos e obscurantistas EUA. Hoje é Bush quem diz que a Al Qaeda planeja destruir o mundo. Ou conquistá-lo, tanto faz. O que importa é que sob essa justificativa ele pode matar dois coelhos com uma só paulada, declarando “guerra ao terror” e satisfazendo tanto a indústria armamentista (por meio das guerras de pilhagem imperialistas disfarçadas de expedições “preventivas”) como a indústria petrolífera (escolhendo preferencialmente países ricos em hidrocarbonetos para enquadrar no “eixo do mal”).

De outra parte, os críticos de Bush enxergam na sinistra entourage que o cerca os contornos de um grupo de conspiradores. Fazem parte do folclore político estadunidense as sociedades secretas que se formam nas prestigiosas universidades freqüentadas pela elite econômica do país, como a “Skull & Bones” de Yale, da qual Bush foi membro. Atribui-se a essas sociedades a capacidade de traçar planos de dominação, alçando seus membros a cargos de grande poder e influência decisiva, como de fato aconteceu com Bush. A existência de grupos como esses, desde a própria maçonaria, é um sintoma decadente da tentativa da burguesia de emular o fascínio das antigas ordens cavalheirescas da nobreza, inventando para sua própria classe símbolos e distinções de exclusividade. Esnobismo e cafonice.

Por sua vez, os defensores de Bush, como Olavo de Carvalho, invertem o debate pela direita, defendendo a tese da vigência de um plano secreto da “Internacional social-democrata” de destruir a liberdade no mundo com a complacência da “mídia comunista”, e colocando Bush e seus asseclas como paladinos da liberdade e dos valores cristãos. Tal escárnio seria risível se não fosse pernicioso.

Os grupos vigilantes “anti-conspiração” situam seus respectivos adversários à direita ou à esquerda e se colocam a postos para denunciar e combater os “conspiradores que pretendem dominar o mundo”, formulando porém um falso problema. Tentar desvendar quem é que conspira para conquistar o mundo, se é a esquerda ou a direita, sem dar nome aos bois, ou seja, às classes sociais por trás de cada projeto, não contribui para esclarecer a dinâmica real que determina a reprodução social em sua processualidade material globalmente articulada.

Para todos os efeitos práticos, o Fórum Econômico Mundial é o que de mais parecido existe com um grupo dedicado a exercer a dominação mundial, dado o sucesso do programa neoliberal inclusive entre os partidos social-democratas da “Internacional conspiradora” de Olavo de Carvalho e inclusive com entusiástica aprovação de sua “mídia comunista”. Entretanto, nem mesmo isso justifica a tese da teoria da conspiração. Essa tese atribui aos Hitlers, Hayeks, Osamas e Bushs da vida a capacidade de comandar de fora o funcionamento da vida econômica e política mundial, o que é impossível. A única força hoje hegemônica no cenário global é a lógica do capital, objetivamente determinante e essencialmente impessoal, ainda que não prescinda de convenientes personificações, que podem ser conspiradoras ou não.

O capital é um sistema de organização do trabalho social baseado na produção de um excedente não controlado pelo trabalhador. O imperativo da produção de excedentes pode ser obtido tanto pela coerção do mercado capitalista como pela ditadura dos gerentes burocráticos do regime pós-capitalista stalinista (que se mal-denominava “socialismo real”). Em ambos os casos trata-se de capital. O que define esse sistema é a vigência da subordinação estrutural do trabalho.

Essa subordinação econômica se completa pela subordinação política da classe trabalhadora aos interesses da elite de proprietários dos meios de produção, que exerce cerrada tirania nos locais de trabalho e mistificadora hegemonia política por meio de periódicas eleições em que se revezam políticos mercenários (inclusive oriundos de “Partidos dos Trabalhadores”). Nessa sociedade rigidamente vertical e hierárquica há um setor dirigente claramente identificável que não precisa conspirar secretamente para tentar governar o mundo, porque já o faz abertamente.

Entretanto, até mesmo o setor dirigente composto pela burguesia internacional também é ele próprio escravo das determinações da lógica do capital. Sob o sistema do capital, nem mesmo a classe dominante é um sujeito de fato. A burguesia é apenas um pseudo-sujeito, pois somente dispõe de algum poder material efetivo na medida em que suas ações são compatíveis com o verdadeiro sujeito, o capital.

O capital impõe uma acumulação de excedentes sempre crescentes. Essa lógica da acumulação sempre crescente esbarra em limites internos e externos inelimináveis que determinam estruturalmente o sistema do capital. Quanto mais se aprofunda a dominação do sistema, em abrangência extensiva e intensiva, mais se agudizam suas contradições. As contradições do sistema colocam os setores dirigentes em conflito uns contra os outros e contra os setores subalternos, como atestam as devastadoras Guerras Mundiais do século XX e o ar envenenado de guerra comercial (e de poluição), realpolitik, cinismo generalizado, decadência cultural e rebelião das massas nos dias de hoje.

O sistema é inadministrável, por mais que conspirem para mantê-lo em funcionamento. Sua derrubada não será obra de grupos de conspiradores reunidos secretamente, mas da ação das massas organizadas democraticamente em nível mundial em torno das demandas históricas dos proletários, explorados e oprimidos.

Daniel M. Delfino
31/12/2005

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