31.5.07

Fragmentos sobre as eleições de 2006




1. A esquerda brasileira no contexto do “fim da história”

A conjuntura mundial se caracteriza por uma ofensiva armada e ideológica do imperialismo como nunca antes se viu. Essa ofensiva foi desencadeada a partir do fim do “socialismo real”. A queda do muro de Berlim removeu um obstáculo para o imperialismo e facilitou a destruição das condições de vida dos povos. A extraordinária conquista política e social da revolução que foi a expropriação da burguesia foi revertida em favor dos abutres do neoliberalismo. Os antigos estados socialistas são hoje protetorados militares do imperialismo estadunidense.

De maneira difusa, mas dispersa, os povos do mundo inteiro já ensaiam a reação contra a barbárie neoliberal. Ao contrário do que diz a tese do fim da história, a luta de classes continua presente como sempre esteve. As lutas não avançam por conta do atraso da consciência das massas. É preciso repisar a todo instante a “morte do socialismo”, para evitar que se perceba que a atualidade do programa socialista está mais viva do que nunca.

O Brasil protagonizou a sua versão particular do “fim da história”: a esquerda se converteu em defensora do capitalismo. Essa esquerda chegou ao poder com Lula em 2002. O seu método de governo não é o enfrentamento com o capital, mas a cooptação eleitoral dos setores mais pobres da população por meio de vários tipos de bolsa-esmola. Por sua vez os setores mais organizados da classe trabalhadora são cooptados pela absorção de suas organizações de luta (CUT, UNE, MST) no interior do aparato de Estado. As direções do movimento de massas estão atreladas à política burguesa de administrar os desequilíbrios do sistema por meio de políticas compensatórias. Até mesmo a Igreja, que já desempenhou um importante papel nas organizações populares do Brasil, hoje vota em Lula por medo da Opus Dei.

Ao cumprir esse papel de gestor “responsável” do capitalismo, Lula segura as lutas de toda a América Latina. E destrói todo o ativismo que emergiu das lutas com a promessa de “democratização do Estado”, “cidadania”, ética na política, etc. Desse papel de contra-exemplo de Lula decorre o respaldo que lhe oferece o imperialismo.

Entretanto, a burguesia brasileira, míope, impaciente e feroz como sempre, não espera o esgotamento natural da farsa lulista e parte para o ataque, decidida a recuperar o poder para seus esbirros preferenciais (PSDB/PFL e adjacências), desencadeando a crise do mensalão. A entourage de Lula se decompõe disparando denúncias a esmo. Lula não centralizou as facções e as contradições entre elas eclodiram sob a forma de denúncias de corrupção.

2. O governo Lula no contexto do projeto geopolítico imperialista

A taxa de crescimento dos principais países capitalistas vem decrescendo de década a década desde os anos 60. O crescimento deslocou-se para outras fronteiras capitalistas, como China e Índia, o que aponta a tendência de que em algumas décadas a China ultrapasse os Estados Unidos em volume do PIB. A interligação dos fluxos financeiros por conta da transnacionais não impede os desequilíbrios no interior de cada economia nacional capitalista.

A economia capitalista mundial de conjunto depende do consumo interno nos EUA. O estoque de títulos de dívida dos exportadores mantém o dólar valorizado, o que mantém o consumo interno aquecido. Os EUA dependem da China, mas não podem permitir que cresça demais. A continuidade do crescimento chinês depende de fornecimento de energia, o que obriga a burocracia de Pequim a acordos com o Irã. Os Estados Unidos tentam controlar o Oriente Médio, para controlar o crescimento chinês.

A Europa, a Rússia e a China não conseguem articular um projeto estratégico comum capaz de se contrapor à burguesia estadunidense. Ao mesmo tempo em que tenta impor a hegemonia política e militar sobre o mundo os EUA tentam contornar os problemas econômicos internos. O consumo interno, os gastos militares e a frouxidão fiscal tornam a economia estadunidense deficitária. O processo é insustentável a longo prazo e obriga os EUA a se impor por meio do controle das fontes de energia. Isso implica em mais gastos militares e desgaste político. O orçamento militar bateu na casa de 1 trilhão de dólares.

A prioridade dos EUA é controlar o Oriente Médio e secundariamente disciplinar a América Latina. A instabilidade do capitalismo e o desgaste material das políticas neoliberais da década de 1990 produziram uma esquerdização das massas no quintal geopolítico estadunidense, que se traduziu pela eleição de governantes de perfil reformista, derrubada de governos neoliberais e consolidação de uma certa consciência anti-imperialista e anti-estadunidense de massa, ainda que de modo muito confuso, disperso e superficial.

Sem poder contar com as incompetentes burguesias nacionais latino-americanas para um projeto de formatação das instituições a ser imposto de uma vez só a todo o continente, nos moldes da União Européia, que seria a ALCA, Washington negocia diretamente com os sucessivos abortos de governo nacional latino-americanos a sua submissão a Tratados de Livre Comércio (TLCs) individuais. Os Estados Unidos negociam unilateralmente com cada um dos países, impondo-se pelo seu peso avassaladoramente desproporcional na negociação.

Os governos constituídos na esteira da esquerdização das massas são obrigados a se equilibrar sobre o fio da navalha, cumprindo as ordens de Washington, mas produzindo alguma encenação para conter a insatisfação popular latente. O modo como isso é feito varia de país para país. A Venezuela possui o petróleo, cujos preços em alta permitem a Chavez fazer algumas concessões às massas, sem cumprir com o que seria a tarefa fundamental de qualquer revolução bolivariana digna do nome: romper com os Estados Unidos, deixar de fornecer petróleo e deixar de pagar a dívida externa.

No Brasil, o governo de Lula expressa a falência política da burguesia brasileira. Os quadros da burguesia não conseguem mais administrar o próprio país, tal o grau de repúdio popular. A bem da continuidade da rapina neoliberal, é preciso recorrer a um elemento estranho para impedir que a população se revolte. Lula cumpre o papel de impedir que os movimentos sociais se organizem para reagir aos ataques, pois os principais sindicatos e entidades estão sob controle da burocracia petista.

Lula não dispõe do petróleo como Chavez, por isso é obrigado a se beneficiar da alta conjuntural dos preços das commodities no mercado mundial para lastrear a precária estabilidade da economia, que segue no geral asfixiada por juros estratosféricos. Enquanto isso, montam-se operações assistencialistas para garantir o voto das camadas mais pobres da população, sob a forma de diversos tipos de bolsa-esmola. O Brasil distribui esmola para os mais pobres e entrega o grosso da produção de riqueza à especulação internacional.

Essa política estrangula o horizonte do capitalismo nacional, obrigando a burguesia a superexplorar o proletariado. A superexploração se dará pela via de novas (contra)reformas neoliberais, cortando investimentos públicos, atacando a previdência, rebaixando os direitos dos trabalhadores. O governo Lula cede à oligarquia, à burguesia agrária, aos industriais que pedem gastos em infra-estrutura; e extorque os setores organizados da classe trabalhadora.

O governo faz o marketing de que governa para os mais pobres distribuindo bolsa-esmola. Mas na prática, esmaga os setores médios da classe trabalhadora. O governo é obrigado a esticar o cobertor para cobrir ora os pés, ora a cabeça, mas nunca deixa de pagar aos banqueiros. O governo ataca as categorias organizadas, para fazer a mediação com a burguesia.

Lula e Alckmin são iguais, mas diferentes. Lula tem a função de cooptar o MST, a UNE e a CUT. Cooptadas as direções, o movimento de massas está paralisado e não reage ao neoliberalismo. Alckmin representa o neoliberalismo sem mediações, numa conjuntura em que não haja necessidade de cooptar as direções, porque o movimento está desmoralizado. A definição entre Lula e Alckmin depende do cálculo da burguesia de qual é o perfil mais adequado para o próximo governo.

3. Dificuldades para o desenvolvimento das lutas

A crise estrutural do capital se manifesta num momento em que a tendência de queda da taxa de lucro não pode ser contornada senão por meios francamente destrutivos: especulação financeira, complexo industrial militar, narcotráfico, etc. O capitalismo precisa se tornar cada vez mais agressivo e se impor cada vez mais por meio da força. O gigantismo militar dos EUA expressa o desequilíbrio do sistema.

Não há mais espaço disponível para contornar as contradições capitalistas e impedir a eclosão das crises. Não há como enfrentar parcialmente o capitalismo. É preciso quebrar a lógica do capital. A luta anti-capitalista deve assumir a perspectiva da totalidade. Para fazer avançar a consciência, é preciso alçar as lutas parciais ao plano do enfrentamento global contra o capital.

A burguesia administra ideologicamente o sistema de modo a manter a classe trabalhadora sob controle, por meio da divisão entre os setores da classe, medo, preconceito, etc. Nos EUA o setor dos trabalhadores imigrantes desenvolveu um importante enfrentamento com o sistema. Para contornar essa mobilização, as leis contra os imigrantes dividiram esse setor em três frações: os “nacionalizáveis”, os temporários e os ilegais a serem criminalizados e expulsos.

No Brasil o foco do ataque é dirigido aos setores organizados da classe, mas entre um setor organizado e o setor mais miserável há uma faixa intermediária que não tem expressão política. A classe trabalhadora está fragmentada e desprovida de instrumentos de unificação de suas lutas. Os mecanismos da democracia burguesa permitem reciclar a insatisfação de maneira que nunca deságüe em contestação ao regime.

A crise vai se aprofundar e tende a estourar em algum momento. Até que chegue esse momento, as lutas ainda são minoritárias. Faltam mediações para desenvolver o enfrentamento. O obstáculo para o desenvolvimento das lutas não é nem mesmo a patronal, pois antes disso as direções se enfrentam com os anseios da base. O desafio do setor organizado é revolucionar os aparatos sindicais e reconquistar os organismos de representação da classe para as lutas.

O setor organizado está apático mesmo para as lutas mínimas; que dirá então para a luta geral. A consciência dos trabalhadores está dominada pela idéia de concorrência. É preciso travar a luta ideológica e reverter a crença de que o trabalhador pode “vencer na vida” através da concorrência capitalista.

4. Limitações da frente de esquerda e plausibilidade do voto nulo

A frente eleitoral PSOL/PSTU/PCB não obedece aos três critérios básicos que uma candidatura deve respeitar para receber apoio da esquerda: o respaldo do movimento de massa, o caráter categoricamente socialista do programa e a independência de classe na campanha.

Começando pelo final, a campanha da frente não preserva nenhuma nesga independência de classe. Ao contrário do que o PSTU propunha, não é uma “frente classista”, mas uma “frente de esquerda”, como se pudesse haver organizações com um programa de esquerda fora do campo da classe trabalhadora. Haverá dinheiro da classe dominante, personalidades da burguesia, apoios da oligarquia na campanha da frente. Haverá segundo turno e o PSOL votará em Lula. Heloísa Helena discursa contra o MLST e exige a sua punição na “forma da lei”, reivindicando integralmente o Estado burguês. Não há portanto uma clara demarcação classista na campanha.

A frente somente se formalizou devido à interferência da justiça burguesa, que impôs a verticalização das candidaturas. Do contrário, o PSOL faria alianças com PDT PSB, PPS, PV, com caciques do PMDB, com oligarquias regionais, com o diabo a quatro, de modo a viabilizar a eleição de alguns parlamentares. Isso não aconteceu e o PSOL foi centralizado pelo TSE.

Em segundo lugar, o programa da frente não foge dos marcos da democracia burguesa. O PSOL fez um apanhado de ilusões da pequena burguesia, de que deixar de pagar dívida vai gerar emprego, etc. Com isso tenta capitalizar as ilusões daquela parcela do eleitorado de Lula de 2002 que pensava que seu programa era um enfrentamento com a política econômica neoliberal de FHC.

O mais curioso é que H.H. tem um programa e o PSTU diz que tem outro para enganar seus militantes e a periferia que gravita em seu redor. A todo momento, diante das declarações escandalosas de HH e de seu vice César Benjamin em torno de pontos do programa que não tem nada de socialistas, o PSTU é obrigado a descer até a vanguarda e apagar o incêndio, soltando boletins e comunicados para preservar a aderência dos ativistas à campanha.

A verdade é que dentro do PSTU a frente com o PSOL foi imposta goela abaixo da militância pela direção. Os próprios comitês de campanha da frente não são unificados. A unidade de fato deve ser fruto da realidade, não da vontade das organizações. A luta de classes é o único fator capaz de impor a unidade. O momento atual é de fragmentação. Não há lutas de massa nem mobilizações de massa. Há uma ruptura limitada, restrita à vanguarda, misturada a muito desencanto e ceticismo. A frente expressa de forma distorcida o atual estado de atraso do movimento operário brasileiro.

A subjetividade da classe está muito atrás dos programas que realmente expressam suas necessidades objetivas. A frente pouco contribui para fazer avançar a subjetividade das massas até o grau de consciência necessário. As sucessivas campanhas eleitorais das últimas duas décadas alimentaram as ilusões em Lula. Chamar o voto em H.H. significa começar tudo de novo.

E isso dá conta do terceiro aspecto da discussão, ou seja, a ausência de um respaldo do movimento de massas às candidaturas da frente de esquerda. Essa frente é produto não de um ascenso e sim de um estado de refluxo, em que as forças de esquerda estão degeneradas por um longo período de acomodação às instituições burguesas. O PSOL é a perna eleitoral e o PSTU a perna sindical de uma mesma burocracia degenerada por décadas de convívio à sombra da Articulação no PT e na CUT. O acordo PSOL/PSTU expressa uma simbiose entre o eleitoralismo do PSOL com Heloísa Helena e o aparatismo do PSTU na CONLUTAS.

Diante desse quadro, fica claro que a frente de esquerda não cumpre critérios que poderiam justificar o apoio à sua campanha. Se a frente não cumpre esses critérios, haveria outras alternativas eleitorais disponíveis? Que dizer então do PCO? O programa eleitoral do PCO não é o programa do movimento, nem sequer o programa de um partido, é o programa de uma pessoa, o sr. Rui Costa Pimenta, dirigente máximo e semi-divino da organização. Um programa não é apenas a retórica, mas a prática. A prática da PCO não é socialista. O PCO é correia de transmissão da Articulação no movimento sindical.

Não havendo opções eleitorais, resta o voto nulo como forma de dialogar com os setores da vanguarda do movimento que também não vêem mais alternativas. Em toda política há o risco de se comprometer. Seja com o sectarismo, seja com a capitulação, não há como não levar tiros no processo. O que importa é romper com a postura instrumental e utilitária com as eleições. Os revolucionários não podem se pautar pelas eleições burguesas. Se as eleições fossem mudar alguma coisa, a burguesia não colocaria uma urna em cada esquina.

Votar nulo não significa romper a unidade da classe. Não é o voto nulo que expressa passividade, mas a escolha de um candidato. Há a passividade dos que votam nulo porque estão céticos e decepcionados com a corrupção e “os políticos” em geral. Mas essa passividade não é pior do que a daqueles que comparecem obedientemente ao circo das cabines eleitorais para lá depositar o voto útil.

Daniel M. Delfino
02/08/2006

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