31.5.07

Reflexões sobre as eleições de 2006




A democracia burguesa é a ditadura de uma classe. As eleições são um mecanismo que permite a reciclagem dos grupos políticos que instrumentalizam o Estado para duas tarefas básicas: 1. proteger as relações de produção capitalistas opressoras e desumanas; 2. servir aos apetites venais e corruptos de claques arrivistas dedicadas a perpetuar-se no poder a qualquer custo.

O mecanismo de reciclagem dos aparatos da dominação burguesa está montado de tal forma que essa dominação não possa ser questionada. A ditadura burguesa não admite jamais que se questione o seu fundamento básico: a propriedade privada. Qualquer partido que defenda a socialização dos meios de produção está automaticamente excluído do processo eleitoral. Logo, trata-se de um processo que de saída necessariamente não contempla os interesses de classe dos trabalhadores.

O poder econômico e os meios de comunicação são o fator decisivo na definição da disputa. Em última instância, quem decide as eleições são as urnas eletrônicas. E nem os partidos nem o eleitor, o que é mais importante, tem a possibilidade de verificar a veracidade de um processo eleitoral eletrônico. É preciso confiar na Justiça Eleitoral a esse respeito, ou seja, na justiça da classe dominante.

A democracia burguesa funciona não apenas nas eleições mas na gestão cotidiana do Estado como a ditadura de uma classe, com a subserviência da grande mídia. A ditadura é exercida por meio do poder das Forças Armadas contra a favela. Por que é aceitável ver os canhões dos tanques de guerra apontados para os morros onde estão as favelas em que se escondem 11 fuzis roubados e não é aceitável ver o mesmo canhão apontado para os arranha-céus da Avenida Paulista, de onde o voraz mercado financeiro saqueia bilhões de reais do país todos os dias?

Como processo de reciclagem da hegemonia burguesa, as eleições não permitem alterações substanciais nos elementos estruturais do projeto nacional em curso. E esse projeto é atualmente um projeto anti-nacional. Não se discute mais qual a feição que se pretende dar à nação brasileira, mas qual a feição que mais agrada ao grande capital global. O único sujeito de fato no processo eleitoral é o capital. Há décadas o imperialismo deixou de fomentar golpes de Estado para sustar as revoluções e agora se utiliza das eleições para dar legitimidade ao regime.

Nessas circunstâncias, a margem de alternativas disponíveis é reduzidíssima. A condução da economia está a salvo da política. Ganhe quem ganhar, a política econômica é a mesma. Logo, a política eleitoral é monopólio da burguesia, pois apenas candidatos e partidos afinados com os interesses da burguesia podem vencer. A cada eleição, reduzem-se as margens de alternativa. Os candidatos disputam para ver quem cospe mais longe, como disse Itamar Franco.

A falta de alternativas decorre da conjuntura internacional: o imperialismo não admite nenhuma margem de independência real aos países periféricos. O brasileiro não vota. Quem vota é o capital, que elege todos os dias os seus preferidos. O governo de plantão deve ser o mais favorável possível ao imperialismo. Qualquer discussão sobre o processo eleitoral deve ter um eixo central: qual é o candidato do imperialismo?

Em 2006, Lulla é o candidato dos banqueiros. Em três anos de governo Lulla os bancos lucraram mais do que nos oito da era FHC. É o candidato da “estabilidade”. Independentemente da crise provocada pela revelação das formas de corrupção que definem a política burguesa, o sistema continua funcionando. A queda de Palocci não mudou nada. Pelo contrário, isso foi considerado um sinal de maturidade do “sistema democrático”. A queda do ministro da fazenda não mudou substancialmente o cenário, a não ser para o próprio ex-prefeito de Ribeirão Preto, rifado por Lulla de forma humilhante. Ao menos, teve a sorte de ser apenas defenestrado e não enfrentar o mesmo destino do alcaide de Santo André.

No início do governo Lulla, Palocci era apontado como um dos homens fortes do poder, juntamente com Dirceu e Gushiken. Hoje, nenhum dos três ocupa mais qualquer posição de comando significativa. E no entanto, o sistema não foi abalado. Não existe portanto o “núcleo duro do governo”. Dirceu e Palocci caíram, Gushiken está confinado a uma edícula do Palácio do Planalto, mas a economia não sofreu nenhum abalo com a queda dos mosqueteiros. O “núcleo duro” não era sequer homogêneo. Os três mosqueteiros se uniram todos por um, e Lulla despediu a todos. Todos por Lulla e Lulla por si mesmo.

O governo Lulla não é um governo do PT, mas do próprio Lulla. Lulla está se descolando do PT. Lulla procura se construir como uma figura à parte do partido, o eterno diamante bruto, o operário que chegou lá. Seu lastro para o primeiro mandato foi a contenção dos movimentos sociais. Para o segundo mandato serão os programas assistencialistas e o apoio da Globo. Encaminha-se um movimento para dar ao governo Lulla um aspecto vitorioso: “estabilidade”, Copa do Mundo, cosmonauta brasileiro, minissérie global sobre JK, assistencialismo, etc.

O partido se tornou dispensável como formulador de política, já que basta a Lulla reproduzir as políticas “sugeridas” pelo imperialismo. O verdadeiro pilar do governo é o FMI e o Banco Mundial. O Fome Zero é o protótipo do tipo de política de contenção neoliberal elaborado pelo imperialismo para aplacar a revolta dos miseráveis nos países periféricos. As chamadas reformas neoliberais são urdidas em laboratórios do estrangeiro para serem aplicadas por governantes que se elegem e se reelegem com o respaldo das massas cooptadas pelo assistencialismo.

O governo Lulla é burguês e neoliberal. É uma forma de viabilizar a reestruturação recolonizadora do Estado brasileiro sem enfrentar a resistência do movimento social organizado. Lulla é indispensável para o imperialismo não apenas em nível nacional, mas também no contexto sul-americano. Seu governo continua desempenhando um papel importante como barreira de contenção dos movimentos sociais em nível latino-americano e mundial, na medida em que fornece um contra-exemplo à “subversão”, à “irresponsabilidade” e ao “populismo” de governantes que desenvolvem um mínimo de enfrentamento com o imperialismo, como Chaves e Evo Morales.

Voltando ao plano nacional, Lulla também é o candidato que detém o controle do PT, e por tabela, da CUT, da UNE e do MST. Essas quatro siglas são as mais importantes expressões organizativas da classe trabalhadora nos últimos 25 ou 30 anos no Brasil. Graças ao controle da Articulação, a corrente lullista, e de seus satélites, como PC do B, DS, FES, etc.; essas organizações funcionam como uma barreira que impede as mobilizações da classe trabalhadora de transbordarem para formas de luta efetivamente capazes de se contrapor materialmente à burguesia: greves e ocupações.

O controle de Lulla sobre os movimentos sociais foi o cacife que lhe permitiu ser aceito por setores da burguesia. O patrão é lullista. Sem o decisivo desempenho do PT no sentido de travar e desarmar as lutas sociais, o governo FHC e o projeto neoliberal no Brasil teriam sido varridos por massivas mobilizações. A burguesia sabe disso e por isso tolerou a eleição de Lulla. Pois essa eleição se deu sob o signo de um majoritário desejo de alternativas.

Esse disseminado desejo de alternativas confundiu a necessidade de lutar por mudanças com a possibilidade de obter mudanças pela via eleitoral. Tão logo se viu que a classe trabalhadora no Brasil estava desarmada, e não reagiria a nada, a burguesia tratou tentar de se livrar de Lulla, jogando no ventilador a sujeira rotineira do mensalão. Era inevitável que em algum momento do mandato de Lulla a trégua com a direita tradicional fosse desfeita. A dúvida era a forma como se daria o ataque. Surpreendentemente, o flanco aberto foi o da ética, não o da condução da economia. A ética foi apenas a última máscara perdida pelo PT, depois da reforma e da revolução.

Sem lutar por revolução nem por reformas, mas na prática aplicando as contra-reformas neoliberais, o PT se transformou num partido igual aos outros. Seu único programa é perpetuar-se no poder. Todos os partidos atuam em conjunto em favor do capital, mas cada partido tem sua base social e regional de origem. A origem do PFL é a oligarquia jurássica; a do PSDB é a banca da Avenida Paulista. A do PT é a burocracia sindical. A burocracia sindical nasce dos organismos de luta da classe trabalhadora para se transformar em engrenagem do sistema contra os trabalhadores.

A burocracia sindical se transformou num meio de vida. Os burocratas se transformaram em patrões. Isso alterou o caráter de classe do PT. O PT aparelhou o Estado e é isso que o PSDB não aceita, pois ambos disputam o mesmo butim. O PT não é um partido burguês de origem, isso é evidente, mas é um partido que adquiriu um importante cacife perante a burguesia pelo fato de trazer consigo um lastro nada desprezível, o seu controle sobre as organizações do movimento social. O PT tem esse importante trunfo a oferecer à burguesia, mas não é o partido preferencial da classe dominante.

A sua utilidade para a classe dominante pode ter se esgotado em um mandato de Lulla. O papel de contenção do movimento social pode ser representado também de fora do governo, impedindo que a reorganização do movimento se dê por fora dos órgãos “oficiais”, a CUT, a UNE, o MST, etc., ou seja, impedindo a construção da CONLUTAS ou da ANPE. O PT pode muito bem cumprir esse papel sem Lulla no governo, por isso a classe dominante já pode dispensá-lo.

A única incerteza existente nessas eleições está na indefinição da burguesia quanto a essa questão. A burguesia brasileira não precisa mais da candidatura Lulla? Pode optar sem maiores conseqüências entre Lulla e Alckmin? Seja qual for a resposta, isso mostra que a burguesia está muito bem servida. Já a esquerda ainda está muito débil e desarticulada.

No contexto da decomposição do patrimônio político do PT como direção de luta da classe trabalhadora, as alternativas que se apresentam são ainda extremamente débeis. O PT continua como direção política da classe, visto que continua sendo a sua opção eleitoral majoritária. Isso porque o conjunto da classe ainda confunde luta política com luta eleitoral. E por isso ainda considera o PT como sua única alternativa. O fato de que o PT esteja morto para as lutas da classe ainda não é uma percepção majoritária. Isso só pode ser percebido no momento em que a luta de classe impuser a formação de novas direções. Por enquanto, as organizações políticas que se apresentam como alternativas ao PT pela esquerda ainda não romperam com os métodos cutistas e petistas e perpetuam as ilusões da classe trabalhadora nas instituições burguesas.

O PSOL é uma aberração. Este partido foi construído de cima para baixo, a partir de um grupo de parlamentares. Ao contrário do PT, que surgiu como resultado de um processo de lutas, que desaguou em vitórias eleitorais, o PSOL surge já pronto a partir dos mandatos de parlamentares eleitos pelo PT. O fato de que uma importante franja de organizações de esquerda e de ativistas se aglutine em torno do PSOL expressa uma característica da época atual, marcada pela ausência de ascenso e de enfrentamento. Na falta das lutas diretas, a única referência que desponta é a luta eleitoral, e isso explica o crescimento do PSOL.

Esse processo mostra o quanto foi profunda a deseducação da vanguarda nos anos passados sob a direção organizativa do PT. A simples aparição de um nome dotado de certo apelo eleitoral como o de Heloisa Helena parece suficiente para que se funde um partido em torno dele. A fundação desse partido se dá sem um debate aprofundado sobre caráter do partido, seu programa e as formas de luta adequadas às necessidades da classe trabalhadora no atual momento histórico. Tamanha debilidade decorre certamente de um fator objetivo, a falta de um ascenso, mas também de um importante fator subjetivo: a capitulação de todas essas organizações e ativistas ao processo eleitoral.

Os setores que se organizam em torno do PSOL, seja como eleitores, seja como projeto de militância, não vislumbram outra forma de luta política que não seja a participação eleitoral. Imaginam que essa é a única forma de dialogar com a consciência das massas e de colocar em pauta um programa de esquerda. Essa falta de imaginação os torna reféns do oportunismo eleitoral da direção do PSOL e também do PSTU/PCB, que estão interessados sobretudo em obter, manter ou ampliar mandatos parlamentares.

Os setores que conformam a frente de esquerda fogem à principal tarefa colocada pela realidade, que é a de organizar a luta contra os virulentos ataques do capital no próximo governo neoliberal. De maneira contraditória, colocam a formação de uma frente eleitoral de esquerda como pré-requisito fundamental para qualquer diálogo em torno das tarefas comuns. Com isso esquecem que as eleições acabam em outubro, e que a unidade fundamental é aquela que deve ser construída para as lutas. O importante é estar unido nas lutas, não nas eleições. A organização continua existindo depois das eleições, portanto não pode viver como se as eleições fossem tudo.

Qualquer projeto de unidade eleitoral deve estar subordinada antes de mais nada às lutas da classe trabalhadora. Sem essa prioridade, a unidade eleitoral acaba por funcionar como uma forma de legitimar o projeto eleitoral burguês. Em mais uma gritante contradição, as organizações de esquerda reunidas na frente eleitoral se esquivam da necessidade de aproveitar o principal conteúdo positivo do desgaste do governo Lulla, qual seja, o descrédito na democracia representativa. A prática de eleições regulares a cada dois anos acabou por trazer o inevitável desgaste do sistema. A democracia representativa exige que o eleitor seja representado e impede que represente a si mesmo. É esse desgaste que deveria servir como ponto de partida para a propaganda da esquerda.

A descrença na “democracia” representa um grave perigo do ponto de vista do regime. Antes que se organize uma ofensiva contra o regime, a burguesia desencadeia uma correspondente contra-ofensiva para reanimar a população a votar e neutralizar a ameaça.

As organizações reunidas em torno de uma possível frente de esquerda (PSOL, PSTU e PCB) se prestam ao serviço sujo de soldar o que restou do prestígio das instituições, referendando-as e legitimando-as por meio da participação eleitoral. As organizações de esquerda deveriam incidir sobre os setores do eleitorado que se decepcionaram com Lulla, mas não para convencê-los a votar em HH, porque ela vai “ensinar a nossos filhos que é errado roubar”; e sim para mostrar que a degeneração de Lulla e do PT começou quando abandonaram a perspectiva da luta transformadora.

A prioridade dos trabalhadores deve ser a luta direta. As eleições não mudam a vida. Só faz sentido optar por determinada candidatura se o seu processo de construção estiver respaldado por um poderoso movimento de massas fortemente mobilizado, organizado e ativo. Não é isso que estamos vendo. As candidaturas da frente de esquerda foram construídas burocraticamente, de modo auto-proclamatório, sem estar subordinadas ao movimento.

Essa grave deformidade, como foi dito, expressa por um lado o momento de refluxo da luta de classes no país Há um retrocesso do movimento operário: só funcionários públicos e empregados de empresas estatais fazem greve. A precarização do trabalho é o maior obstáculo para a mobilização. É necessário superar a desarticulação do proletariado.

Por outro lado, a deformidade dos projetos em discussão expressa também as deficiências dos partidos de esquerda. No Brasil os partidos se reconstroem ao sabor da macro-conjuntura. Não há continuidade histórica das siglas por mais do que uma ou duas décadas. Os aparatos partidários se apresentam e se reciclam oportunisticamente como portadores de ocasião dos projetos em vigor em cada momento determinado. Esse método de funcionamento gelatinoso contaminou inclusive a esquerda. A frente de esquerda foi formalizada graças à própria burguesia, que impôs a verticalização da coligações eleitorais.

A luta pela queda da verticalização das candidaturas era uma disputa pelo tempo de TV, pela possibilidade de formar palanques com o PMDB, que agora se inviabilizou. A falsa polarização vai ser reeditada: o PSDB é a direita e o PT a esquerda. O prato requentado vai ser servido, mas já com gosto azedo, com prazo de validade vencido.

A política burguesa usualmente se discute em termos de “quantos votos tal partido espera obter”. Daí a importância fundamental de se desmascarar a existência da luta de classes. Não existe no momento uma consciência socialista de massas estabelecida. As eleições são uma maneira de colocar a luta de classes em discussão. Nesse contexto, a solidariedade de classes deve ser reconstruída. Diante desse quadro, é relativamente positivo que surja um referencial pela esquerda.

É possível que surja uma frente de esquerda alinhando PSTU/PSOL, mas com importantes deformações:
-sem discussão de programa.
-unidade imposta pela verticalização.
-candidatura construída a partir de encontros de cúpula.
-falta de unidade orgânica nas lutas (falta de um ascenso popular não deve ser desculpa: o dever dos socialistas é justamente educar os ativistas e a vanguarda no debate, para que estes possam educar as massas).

Cabe aos lutadores socialistas apoiar todas as iniciativas de reorganização, mas sem abrir mão da perspectiva crítica radical. É preciso dizer a verdade para pessoas que não estão preparadas para ouvi-la.

A necessidade maior é de que a unidade seja construída de maneira orgânica entre as organizações que se colocam no campo da esquerda. A unidade entre os partidos de esquerda está sendo construída de maneira cartorial e cupulista. A reorganização via PSOL/PSTU é eleitoreira e aparatista, não empalma com o movimento, não se constrói pela base, não oferece a possibilidade de controle sobre os mandatos eletivos. O programa da frente popular está sendo construído de cima para baixo e com um perfil que não é socialista, é reformista, ultra-rebaixado, defensivo, resignado.

As organizações de esquerda não podem viver a reboque das eleições a cada dois anos. O que importa é o programa socialista. O caráter do poder socialista é o controle social da produção e da esfera da regulação. É preciso superar a desunião por meio de bandeiras concretas. O todo não é a simples soma das partes, a justaposição das organizações; o todo é o movimento da classe.

O que o movimento dos trabalhadores pode esperar das eleições? Habilitar-se para o exercício de cargos no interior do aparelho do Estado (sindicatos inclusive)? Ou transformar a sociedade. A participação eleitoral, a partir da realidade objetiva, deve servir para combater o sistema, não para construí-lo. O pólo dos trabalhadores deve colocar-se desde sempre como campo autônomo, para impulsionar conquistas sim, mas sempre como campo autônomo/oposto. A questão não é avançar gradualmente ou não, participar das instituições ou não, é como manter o objetivo da transformação social mais abrangente.

Fazer propaganda pelo voto nulo é muito fácil. O difícil é convencer alguém a votar em PSOL/PSTU/PCB.

Daniel M. Delfino
07/09/2006

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