6 – CONCLUSÃO?
A Revolução Russa de 1905 se coloca como preparação indispensável para a definitiva tomada do poder em 1917 pelas forças que lutavam resolutamente pelo socialismo. Os revolucionários foram derrotados em 1905, mas as lições organizativas aprendidas permitiram que os mesmos erros não se repetissem em 1917. A tomada do poder pelos bolcheviques em 1917, porém, deu origem a um regime político que por fim degenerou em algo totalmente distinto daquilo pelo qual os lutadores de duas Revoluções haviam se sacrificado. A permanência do stalinismo por quase todo o século XX foi um obstáculo decisivo para impedir que o movimento socialista se rearticulasse de modo eficaz para propor novamente um desafio aberto ao sistema global do capital.
Conseqüentemente, o esfacelamento do aparato stalinista em 1989-91 e principalmente, o recrudescimento das contradições capitalistas nas décadas seguintes, com os desajustes cada vez mais sérios no processo de acumulação, expresso no surto crescente de crises financeiras e numa nova ofensiva militar de recolonização imperialista da periferia do sistema; recolocam na agenda histórica a questão da luta dos trabalhadores pelo poder, o que redimensiona a importância de experiências como a de 1905.
A caracterização de Trotsky dos eventos de 1905 pode ser assim resumida: “ ‘Na Rússia do começo do século’, disse Trotsky, ‘a situação era diferente não somente da situação de 1789, mas também da situação de 1848, pois o impulso revolucionário iria nascer da própria classe operária. Com este impulso revolucionário esta classe iria enfrentar não somente o czarismo, mas também a burguesia liberal. Procuraria ainda a aliança com os camponeses e chegaria ao poder como classe em virtude da dinâmica da revolução democrática. O seu caráter permanente surge do fato de que com o proletariado no poder, não só deveriam ser executadas as tarefas democráticas que não foram cumpridas - o auxílio aos camponeses, a abolição da autocracia, a emancipação das idéias que foram reprimidas no Império Russo - mas também tarefas próprias de uma revolução socialista: estabelece assim a idéia genial de que a Rússia seria a vanguarda da revolução socialista internacional, que seria comprovada pelos acontecimentos posteriores’ (o livro de Trotsky foi redigido logo após a revolução de 1905).” (18)
Exatos cem anos depois desses eventos, em que medida essas conclusões podem ser consideradas válidas e aplicáveis no contexto da correlação de forças atualmente prevalecente? Em que medida está aberta ao proletariado a via para “a aliança com os camponeses” na tomada do poder em uma “revolução permanente” destinada a executar “as tarefas democráticas que não foram cumpridas (...), mas também as tarefas próprias de uma revolução socialista?”
Para responder a essas perguntas, é preciso assinalar as diferenças e semelhanças entre as duas épocas históricas. No presente, as duas Guerras Mundiais e a Guerra Fria reduziram o grupo de potências imperialistas em disputa pela hegemonia do sistema a uma única superpotência. Os Estados Unidos exercem sua supremacia de maneira incontestável nos terrenos econômico-financeiro, político, militar, diplomático e cultural. Gravitando em torno dessa potência hegemônica situam-se as potências secundárias como o sucateado Estado russo, a emergente China (sob uma burocracia stalinista-neoliberal) e potências econômicas sem condições de exercer um desafio militar ou uma alternativa político-estratégica, como Europa e Japão.
A centralização dos fluxos comerciais e financeiros em torno da hegemonia do dólar estadunidense não resolve as contradições materiais da acumulação capitalista, que, ao contrário, projetam o espectro da incontrolabilidade terminal do sistema sobre o conjunto do planeta em forma de crises explosivas. A crise tem contornos econômicos (bolhas especulativas e ciclos recessivos), ecológicos (poluição e destruição do meio ambiente), sociais (desemprego estrutural crônico, miséria, fome, doença, violência, ignorância), políticos (intervenções imperialistas de “guerra preventiva”), culturais (crise de legitimação da ideologia liberal) que apontam para a necessidade urgente da superação do sistema.
O caráter deletério desse sistema já o tornava um obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas sociais em 1905. Cem anos depois, em condições mais drásticas, tornam-no uma ameaça à própria sobrevivência da humanidade. Na expressão dramática de Rosa Luxemburgo, o presente nos coloca sob o signo da inescapável disjuntiva: “socialismo ou barbárie”. Enquanto o socialismo tarda, a barbárie campeia avassaladora. Qualquer vislumbre superficial no noticiário de qualquer veículo de comunicação de qualquer país em qualquer circunstância bastará para corroborar essa afirmação, pois mostrará sempre os diferentes rostos de uma mesma face, o horror que grassa sobre a humanidade. A fome, a peste, a guerra e a morte, os quatro cavaleiros do apocalipse que ceifam vidas incontáveis a soldo do capital.
O calendário indica o transcurso do ano de 2005 e mostra que o mundo está 100 anos atrasado em relação às questões que o século XX deixou pendentes para a tarefa da emancipação humana. “Nestas condições se verifica a natureza histórica da Revolução de Outubro, no sentido de que iniciou um período de revolução socialista mundial, é mais vigente do que nunca. (...) A própria crise do capital gera uma massa enorme de desempregados e miseráveis que constituem uma fonte de permanente de revoltas sociais. Estamos portanto, em pleno século XX, que começou com a Revolução russa e ainda não terminou. A virada do século será testemunha de crises, guerras e revoluções inéditas na história contemporânea.” (19)
Os levantes populares recentes na América Latina como, os da Argentina, Equador, Bolívia, bem como a “revolução dos subúrbios” do novembro quente parisiense, mostram que uma população exasperada pelo fiasco estrepitoso das políticas neoliberais colocou-se frontalmente contra a política burguesa, sob a revolucionária consigna de “que se vayan todos!”. Diante de uma tal mobilização, as perguntas formuladas acima sobre a permanência da atualidade histórica das formas de luta descortinadas ao proletariado pelas heróicas experiências de 1905, devem ser respondidas com um categórico “sim!”
Derrubar governos e incendiar automóveis são apenas os primeiros passos desarticulados de um processo totalmente incerto. O socialismo não se constrói por especulação, mas por articulações concretas. As novas formas dessas mediações concretas ainda não despontaram. Os velhos partidos e velhas palavras de ordem estão prostrados, semi-mortos, insepultos, como o próprio cadáver de Lênin. Mostram-se reiteradamente incapazes de responder ao desafio. Não há renovação, reconstrução, rearticulação, em bases adequadas às novas circunstâncias.
Os “soviets do futuro”, as novas mediações organizativas dos produtores associados, ainda aguardam na forja da História. Esperam para receber a matéria-prima rejuvenescida dos novos revolucionários e revolucionárias e para envergar a têmpera das novas palavras de ordem.
No entanto, há que se resgatar o eco das lutas de 100 anos atrás.
Todo poder aos soviets!!
Daniel M. Delfino
21/08/2005
CRONOLOGIA
28/01/1904 – Começa a guerra russo-japonesa.
03/01/1905 – Greve na metalúrgica Putilov se transforma em greve geral em Petrogrado.
09/01/1905 – “Domingo Sangrento”, massacre de manifestantes pela guarda do Czar.
06/1905 – Agitações nacionalistas na Polônia sob domínio russo.
27/06/1905 – Termina a revolta dos marinheiros do encouraçado Potemkin, que se refugiam na Romênia.
23/08/1905 – Tratado de Portsmouth, fim da guerra com o Japão
07/10/1905 – Greve dos ferroviários se alastra e precipita greve geral em Petrogrado e Moscou.
13/10/1905 – Forma-se o Soviet (conselho) dos representantes operários de Petrogrado.
17/10/1905 – O Czar promete uma Constituição com algumas concessões democráticas.
28/10/1905 – Esmagado o motim em Kronstadt, base naval vizinha a Petrogrado.
03/12/1905 – Leon Trotski, líder do soviete de Petrogrado, é preso pela repressão.
16/12/1905 – Fim do soviete de Petrogrado.
OBS: o calendário russo da época czarista era ainda o sistema juliano, visto que a ortodoxia russa recusou o calendário gregoriano da Igreja Católica. O calendário Juliano não tem anos bissextos, o que o torna menos preciso. Ao longo de séculos, isso originou um atraso de 13 dias em relação ao calendário gregoriano. As datas aqui apresentadas pertencem ao calendário russo ortodoxo.
(voltar)
NOTAS
(1) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 328 (voltar)
(2) Joel Carmichael, “História resumida da Revolução Russa”, p. 30 (voltar)
(3) Joel Carmichael, “História resumida da Revolução Russa”, p. 32 (voltar)
(4) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 332 (voltar)
(5) Joel Carmichael, “História resumida da Revolução Russa”, p. 33 (voltar)
(6) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 335 (voltar)
(7) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 336 (voltar)
(8) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 336 (voltar)
(9) Leon Trotski, citado por Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 339 (voltar)
(10) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 342 (voltar)
(11) Lenin, citado por Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 332 (voltar)
(12) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 347 (voltar)
(13) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 328 (voltar)
(14) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 347 (voltar)
(15) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 347 (voltar)
(16) Leon Trotski, “Resultados y perspectivas”, p. 167 (voltar)
(17) Santiago Mas “La revolucion de 1905 em Rusia”, p. 352 (voltar)
(18) Jorge Altamira, “Natureza da Revolução de Outubro”, p. 2 (voltar)
(19) Jorge Altamira, “Natureza da Revolução de Outubro”, p. 5 (voltar)
(voltar)
Nenhum comentário:
Postar um comentário