8.5.07

"Fahrenheit 11/09” Segundo J.J. Rousseau - Parte 1




1. Introdução

“É inútil distinguir os costumes de uma nação dos objetos de sua estima, pois tudo se prende ao mesmo princípio e se confunde necessariamente. Entre todos os povos do mundo, não é em absoluto a natureza, mas a opinião que decide a escolha de seus prazeres. Melhorai as opiniões dos homens e seus costumes purificar-se-ão por si mesmos. Ama-se sempre aquilo que é belo ou que se julga belo. É, porém, nesse julgamento que surge o engano, sendo pois necessário regulá-lo. Quem julga os costumes, julga a honra, e quem julga a honra vai buscar sua lei na opinião.” (J.J. Rousseau - “Do Contrato Social” Livro IV, Capítulo VII, Parágrafo 3º.)

Este trecho do Contrato Social de Rousseau expressa um problema da maior relevância paras as chamadas democracias modernas. Trata-se do problema da opinião pública, de como se forma ou se deforma essa opinião e de que riscos isso acarreta para a democracia. Rousseau aborda o problema em seu aspecto mais geral. Ele fala em opinião pública referindo-se ao que “o povo ama”. Esse conceito amplo envolve desde aspectos morais e comportamentais até os políticos.

Trata-se do juízo que o povo faz sobre os costumes em geral, no aspecto mais abrangente: sobre moral na vida privada, sobre as relações entre os gêneros, sobre moral sexual, relações entre pais e filhos, entre vizinhos, entre patrões e empregados. Trata-se também dos costumes mais “superficiais”: vestuário, hábitos alimentares, modo de falar, etc. Trata-se ainda dos aspectos estéticos, da arte de um povo, das artes públicas, da arquitetura, da pintura e da escultura, da música, do teatro e da poesia.

Em todos esses aspectos existe uma opinião pública dominante, um gosto, um padrão de referência estético e moral. Esse padrão dominante de juízo estético e moral determina com um peso esmagador os comportamentos e gostos considerados decentes e aceitáveis na sociedade. A grande maioria das pessoas leva suas vidas em função desses padrões de comportamento, permanecendo incapazes de expressar seus verdadeiros sentimentos, sua vida interior autêntica. Era contra a superficialidade, a artificialidade e a hipocrisia dos costumes e do gosto que Rousseau se rebelava.

O filósofo estava consciente de que quem determina esse padrão goza na verdade de um grande poder sobre a sociedade. O que Rousseau não poderia adivinhar é que no mundo do século XXI as opiniões e os gostos continuam manipulados e determinados por instâncias exteriores à sociedade. Existe hoje toda uma indústria cultural que determina os padrões de gosto estético e de comportamento aceitáveis.

Vive-se hoje uma ditadura da forma. A forma dos corpos, a forma dos objetos, a forma das músicas, das palavras, das idéias, tudo está rigidamente determinado por um esquema industrial massificado que impede a expressão autônoma. Dietas, academias de ginástica, revistas de moda, programas de TV, publicidade, filmes, músicas, esportes, tudo se une num turbilhão de imagens, convites, sugestões, solicitações, comparações, que moldam o comportamento coletivo.

O que é mais grave é que essa uniformização industrializada dos gostos e padrões tem também suas conseqüências políticas. O discurso político se funde e se amolda ao gosto dominante pelo efêmero, pelo fragmentado, pelo superficial. A notícia se transforma em mais um ramo do entretenimento, o jornalismo num jogo de aparências, a política num jogo de cenas, o discurso da razão de Estado em uma fraude escandalosa. Os governantes mentem e manipulam a opinião pública escancaradamente e ninguém se dá conta de que os poderes soberanos do cidadão estão sendo criminosamente usurpados.

A batalha pela verdade na cena pública deste século XXI é uma batalha política no sentido mais forte. Contra a farsa generalizada do predomínio dos grandes poderes, do grande capital, das grandes corporações, dos interesses ocultos, torna-se urgente romper o maciço dique ideológico do discurso dominante expresso pela grande mídia associada a esse grande capital. Como exemplo de caso desse contra-discurso, tomamos o filme “Fahrenheit 11/09”, do diretor estadunidense Michael Moore.

Analisamos o filme nos diversos aspectos em que ele representa uma tentativa de “regular o julgamento” do povo e de “purificar seus costumes”. Trata-se de uma tarefa pedagógica, socrática, de um “abrir os olhos” de quem estava cego para ver. Consideramos o procedimento de Michael Moore em seu trabalho representativo do método propugnado por Rousseau, ou seja, de fazer com que se expresse a vontade geral, a opinião pública, de maneira pura e direta. “Fahrenheit 11/09” dá voz aos dois lados e deixa que se expressem, para que o público forme sua opinião. Nada mais democrático que isso.

As questões que nos propomos a responder tendo como exemplo este filme e sua repercussão, estão expostas a seguir. Cada uma norteia, respectivamente, os itens de 2 a 8.
- Qual é o papel da imprensa numa sociedade democrática?
- De que maneira a grande imprensa está cumprindo seu papel?
- Como se legitima a prática da imprensa independente?
- O que torna o procedimento de Michael Moore eficiente?
- Como se pode analisar o paradoxo de um filme político ser sucesso comercial?
- O projeto de Michael Moore é meramente eleitoral?
- Qual a legitimidade e a fragilidade das assim chamadas “teorias da conspiração”?

2. O Círculo Social

Durante as jornadas da Revolução Francesa um grupo de intelectuais militantes inspirados em Rousseau, chamado “Círculo Social”, editou um jornal chamado “La Bouche de Fer” (A Boca de Ferro). Esse nome foi inspirado num verso da “Eneida” de Virgílio, que dizia: “Oculi centum, oraque centum, ferrea vox” (cem olhos, cem bocas e voz de ferro). Esse verso foi interpretado pelo “Círculo Social” no sentido de que o povo deve estar sempre atento (cem olhos), manifestar sua vontade (cem bocas) e fazê-lo de maneira firme (voz de ferro). “La Bouche de Fer” se propunha a ser portanto o vigilante e porta voz do povo.

O jornal teve 104 números, todos de conteúdo fortemente polêmico e amplamente participativo. Os editores lançavam as questões ao público, recebiam as respostas em forma de cartas e essas cartas eram publicadas sem restrições, constituindo o corpo do jornal. Tratava-se portanto de uma experiência radical de liberdade de expressão. Enquanto empreendimento coletivo, o jornal corporificava materialmente o ideal societário de Rousseau. Em “La Bouche de Fer”, o povo expressava diretamente a si mesmo. Os dirigentes do empreendimento não estavam “acima” dos leitores e colaboradores, mas ao seu lado e a seu serviço.

Fiéis à sua maneira ao legado de Rousseau, os dirigentes do jornal evitavam transformar a especialização funcional (sua condição de editores) em pretexto para verticalização hierárquica (criação de uma elite dirigente separada e superior). Agiam assim de acordo com o espírito da obra de Rousseau, que insistia na necessidade de recusar todas as formas usurpadoras de autoridade representativa e restituir diretamente ao povo seus poderes soberanos. Seja a autoridade do Estado, ou a da Igreja, da Escola, de qualquer espécie de instituição; todas não passam de usurpações se não estiverem fundadas diretamente na participação coletiva da totalidade de seus membros constituintes, na sua condição de cidadãos, de partes do corpo do soberano.

3. A farsa da grande mídia contemporânea

Um exemplo como “La Bouche de Fer” constitui uma notável exceção na história da imprensa, em sua relação com a função pública dos órgãos de informação. No século XXI, a imprensa se transformou, de porta voz do povo, em instrumento de sua manipulação. Ao invés de expressar os pensamentos do povo num debate genuinamente democrático, a imprensa se limita a funcionar como alto-falante para o os interesses dos poderosos. A imprensa é um veículo da ideologia dominante. Por seu intermédio, os interesses da classe dominante são apresentados como se o fossem de toda a sociedade.

A imprensa do século XXI pode ser definida como uma realização invertida de seu conceito. Ao invés de mostrar, ela esconde. Seu método de trabalho não é a livre expressão, mas a censura. A imprensa se define não pelo que expressa, mas pelo que deixa de expressar. “O editor não decide o que entra no jornal, mas o que fica de fora”, reza um célebre ditado das redações de jornal. O editor constitui a sentinela avançada da ideologia dominante, evitando rachaduras no maciço dique do discurso apologético. Toda informação comprometedora deve ser mantida oculta, toda opinião radical deve ser exilada, tudo que represente perigo para a continuidade e a normalidade do funcionamento do sistema deve ficar fora de alcance do povo.

Em lugar da crítica, da reflexão, da opinião, do debate, de onde podem surgir alternativas ao modelo dominante, circula a mediocridade. A imprensa se abstém de mostrar fatos politicamente comprometedores por medo de represálias dos poderosos. Seu compromisso não está com o povo, mas com as elites políticas e econômicas cujo predomínio depende da permanência da apatia generalizada.

A identidade entre os interesses dos poderosos e o conformismo da imprensa se manifesta também como uma determinação estrutural oriunda de seu funcionamento comercial. A imprensa se organiza sob a forma de empresas. As empresas existem para gerar lucros. O lucro das empresas de mídia vem da venda de espaço para anunciantes. Logo, a renda que sustenta essas empresas vem dos anunciantes, não do público.

Apenas obliquamente a imprensa deve obedecer a algum imperativo de utilidade social. Apenas como pretexto. A informação que fornece ao público é uma mera atração que faz com que esse público se exponha aos anúncios dos publicitários. Enquanto modalidade de atração, a notícia é funcionalmente idêntica ao entretenimento. Do ponto de vista do anunciante, único ponto de vista que conta, é indiferente se o público foi atraído por notícias sérias ou por diversão. Desse modo, a notícia acaba se tornando também essencialmente idêntica ao entretenimento, em seu conteúdo, deixando de ser séria.

4. A temperatura em que a verdade se dissolve

Eventualmente, porém, a verdade vem à tona e o dique da ideologia dominante se rompe. Um exemplo contemporâneo desse fenômeno é dado pelo documentário “Fahrenheit 11/09”, do diretor estadunidense Michael Moore. O filme nada na contramão da mídia, opondo-se de maneira brilhante e polêmica ao tratamento que foi dado ao Presidente George W. Bush desde sua controvertida “eleição” em 2000 até o recente atoleiro de sua guerra no Iraque.

O título do filme expressa de saída uma proposta conceitual que o torna pertinente ao tema em discussão. Esse título foi parafraseado do livro “Fahrenheit 451” do escritor Ray Bradbury. Este livro é uma ficção científica que tem como tema uma distopia, uma hipotética sociedade totalitária futura. Nessa sociedade, a leitura de livros é proibida. Os livros são um perigo para qualquer regime ditatorial, pois podem fazer com que o povo aprenda a raciocinar por si mesmo e questione o sistema. Para evitar esse perigo, em “Fahrenheit 451”, os livros são queimados publicamente. A temperatura em que o papel pega fogo espontaneamente é de 451º na escala Fahrenheit, usada nos países anglo-saxônicos.

Ao invés de uma temperatura, Michael Moore usa uma data. 11 de Setembro é a data em que a verdade se dissolve e se instala o império da mentira. Em 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos foram vítimas de atentados praticados por terroristas islâmicos que levaram sua guerra santa ao coração do império que combatem. A partir desse dia, a verdade desapareceu e instalou-se a mais completa confusão. Uma confusão orquestrada e politicamente interessada. Desmistificar essa confusão é o que Moore se propõe em seu documentário.

O atentado serviu como pretexto para que o Presidente George W. Bush declarasse uma “guerra ao terror”, tanto no plano externo como no interno. No plano externo, Bush invadiu países soberanos à revelia do Conselho de Segurança da ONU, derrubou governos, instaurou regimes fantoches, usurpou a independência das populações e seu direito fundamental à auto-determinação, concedendo todo o poder aos interesses imperiais das mega-corporações petrolíferas estadunidenses.

No plano interno, Bush decretou o “Patriot Act”, uma lei que autoriza as agências de segurança interna a prender e interrogar cidadãos estadunidenses e estrangeiros sem mandado judicial, espionar grupos políticos divergentes, infiltrar agentes em qualquer espécie de organização da sociedade civil, etc. Criou-se um clima de pesadelo nos Estados Unidos, onde se pode ser espionado pelo Estado a qualquer pretexto. As liberdades civis mais fundamentais são diariamente violadas.

O mais impressionante é que esse decreto foi aprovado pelos congressistas sem que estes o tivessem lido. A denúncia desse fato constitui um dos momentos altos do filme. Michael Moore circula em torno do prédio do Congresso num carro equipado com alto-falantes e lê para os congressistas o texto do decreto. Esse ato expõe ao ridículo e demonstra de maneira cabal a falsidade da alegação dos congressistas de representarem o povo. A histeria prevalece sobre a razão e o povo abre mão de suas liberdades para as entregar ao Leviatã-Bush.

No clima de “caça às bruxas” assim ressuscitado, o pensamento divergente se associa automaticamente ao “inimigo” público. A escritora Susan Sontag, nos dias imediatamente posteriores ao atentado, expressou a opinião de que os terroristas que seqüestraram os aviões e se precipitaram contra os prédios foram muito corajosos. Por ter dito isso, foi banida da televisão e da mídia em geral. Não é permitido associar uma qualidade positiva, a coragem, ao inimigo. O inimigo é essencialmente mau.

A histeria patriótica dos primeiros dias após o 11 de Setembro de 2001 arrefeceu. Mas a grande mídia continua sendo monoliticamente chauvinista e acrítica em seu tratamento aos atos do governo. Em “Fahrenheit 11/09” um âncora de TV aparece para dizer “meu país está em guerra, portanto eu quero que ele ganhe”. E ai de quem perguntar: “Como assim? Que guerra é essa? Em nome de quê essa guerra está sendo feita? O que dá direito ao meu país de invadir outro país, matar, destruir?”. Essas perguntas não podem ser feitas. Como diz a “pop-star” Britney Spears, “é preciso confiar no Presidente”.

5. Os dois lados da moeda

Contra esse monolitismo acrítico, Michael Moore aparece para dar voz ao outro lado. A grande mídia dá voz apenas ao lado dos poderosos. Dos políticos e grandes empresários. Diariamente, Bush e seus assessores aparecem na televisão, dão suas declarações e são ouvidos como se fossem a emanação da verdade. Moore não aceita esse predomínio de um dos lados e apresenta a outra versão. Ele dá voz ao povo, aos pequenos, aos de baixo. Ele mostra os soldados estadunidenses no Iraque, mostra as mães desses soldados nos Estados Unidos, mostra a população do Iraque e seu sofrimento, mostra os investigadores que trabalharam nos atentados de 11/09, mostra os protestos dos eleitores criminosamente impedidos de votar contra Bush em 2000, etc.

Michael Moore reproduz assim o procedimento do jornal revolucionário “La Bouche de Fer”. Em seu documentário todos estão igualmente representados e expressam suas opiniões. O dono da câmera não se mostra superior a ninguém. Ele apenas faz seu trabalho e deixa que os dois lados se expressem. Os dois lados sim, porque o documentário também mostra Bush. Também permite que Bush se expresse. E o que Bush tem para expressar? Nada.

A completa falta de reação de Bush quando recebe a notícia dos atentados mostra o quanto o político é um mero ator (de péssima qualidade), um boneco, um fantoche a serviço de interesses inconfessáveis e idéias anti-democráticas. Ele é colocado ali para servir de anteparo para críticas, de objeto de ódio coletivo dos seus opositores. E enquanto isso, o sistema que ele representa continua afundando suas garras imperiais sobre o país e o mundo. Num momento de “espontaneidade”, num jantar para milionários, rentistas e executivos de mega-corporações, Bush diz “vocês são minha base”. É para eles, portanto que Bush governa.

O fato de que Moore tenha conseguido essas imagens, a imagem do momento em que Bush recebe a notícia dos atentados, a imagem do jantar para a elite, as imagens das férias do Presidente (que antes dos atentados, não “trabalhava”), é por si só uma realização importante. O simples fato, aliás, de que este documentário tenha sido produzido, permite discutir um tema secundário, mas não irrelevante, vinculado à política da informação. Trata-se da questão da liberdade de imprensa.

Michael Moore é um opositor notório do Presidente George W. Bush. Denunciou sua eleição como ilegítima, atacou-o em livros e criticou-o ao longo de todo seu mandato. No entanto, Moore consegue imagens de Bush para editar um documentário. Ele consegue acesso a essas imagens. Isso é algo a ser destacado. Evidentemente, não é preciso muito trabalho para expor ao ridículo um indivíduo limitado como Bush. Basta dar-lhe corda para que se enforque, e Moore o faz.

Esse fato ilustra até onde se pode ir com base no postulado da liberdade de informação, liberdade de expressão, corolários das liberdades burguesas. No trabalho da grande mídia, essas liberdades são letra morta. Funcionam como seu contrário. Mas quando alguém da mídia independente, como Moore, se utiliza do seu direito à liberdade de informação, ele consegue. Ele tem acesso a documentos, imagens, depoimentos, e pode publicá-los. Isso é algo de muito relevante, que expõe a ambigüidade e a fragilidade da ideologia burguesa, pois ela pode voltar-se assim contra si mesma.

Daniel M. Delfino

12/08/2004

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