Nome original: Charlie and the Chocolate Factory
Produção: Estados Unidos
Ano: 2005
Idiomas: Inglês
Diretor: Tim Burton
Roteiro: Roald Dahl, John August
Elenco: Johnny Depp, Freddie Highmore, Dadiv Kelly, Helena Bonham Carter, Noah Taylor, Missi Pyle, James Fox, Deep Roy, Christopher Lee, Adam Godley, Franziska Troegner, AnnaSophia Robb, Julia Winter, Jordan Fry, Philip Wiegratz
Gênero: aventura, comédia, família, fantasia
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Nas raras vezes em que membros do antigo conselho do Duplipensar.net puderam se encontrar pessoalmente, entre milhões de assuntos, a conversa invariavelmente vinha a fazer uma parada no tópico “reminiscências de infância”. E dentre as reminiscências destacadas invariavelmente vinha à tona a versão dos anos 70 da “Fantástica fábrica de chocolates”. Nesses momentos, este escriba era obrigado a conter-se e desconversar, encabulado, por nunca ter visto o filme. O que é injustificável, em face da diferença de idade quase insignificante dentro do grupo. Esse “clássico da sessão da tarde”, o filme da infância de muita gente (entre os quais, ao que tudo indica, meus colegas membros do Conselho), constitui mais uma das imperdoáveis lacunas da cultura cinematográfica deste que vos escreve.
A observação mais intrigante guardada dessas conversas era a sagaz conclusão, anunciada triunfalmente em tom peremptório: “os oompa-loompas são imigrantes ilegais!” Tal observação dos colegas foi guardada para averiguação, para ser ratificada assim que se pudesse ver o tal filme. Na falta dessa oportunidade, eis que a curiosidade pôde ser saciada com a nova versão da história, apresentada pelo diretor Tim Burton. Na impossibilidade de cotejar este filme com a versão anterior (e muito menos com o livro de onde ambos se originaram), não acrescenta muito repetir aqui o que o conjunto da crítica tem dito, que vai na direção de que a nova versão é mais fiel ao livro. É mais produtivo ater-se ao registro pessoal, que leva a endossar a conclusão de que sim, de fato, os oompa-loompas são imigrantes ilegais.
Nesta linha de interpretação, a “Fantástica fábrica” de Tim Burton traz algumas lições interessantes sobre a dinâmica do capitalismo contemporâneo. Nas primeiras cenas, temos o cenário da Inglaterra dos anos 70, em processo de desindustrialização. As economias dos países centrais do capitalismo deixavam de ter seu centro nas fábricas e passavam para os serviços. A produção como tal era terceirizada geograficamente, ou seja, deslocada para os países periféricos, como os chamados tigres asiáticos e os sul-americanos. Em certo momento, Willy Wonka demite seus empregados ingleses, mas curiosamente, a fábrica continua funcionando.
É aí que entram os oompa-loompas. Assim como os robôs, que tiram o emprego do pai do protagonista Charlie Bucket, os trabalhadores ilegais, disponíveis em abundância devido ao êxodo dos países miseráveis, contratados por salários irrisórios e desprovidos de direitos, são a nova fonte de mais-valia inesgotável do capitalismo pós-moderno. Willy Wonka não transfere sua fábrica para o Brasil, ele transfere os oompa-loompas para Londres. O pai de Mike TV, professor de geografia, replica que não existe uma Loompalândia, ao que Wonka responde com indiferença.
Do ponto de vista do capitão de indústria, o protótipo do burguês clássico do Capital de Marx, os povos bárbaros são todos inferiores e intercambiáveis, inclusive minúsculos em estatura, pois só existem como fonte de força de trabalho. Willy Wonka não é, porém, um capitão de indústria clássico, já que pertence a um período mais “pós-moderno”. Não sem certa razão, os críticos quiseram comparar o Wonka de Johny Depp, com seus efeminados trejeitos e falsetes, a esse peculiar exemplar de aberração pós-moderna, o mais do que excêntrico soberano de “Neverland”, Michael Jackson. Ao que Depp e Tim Burton replicaram, com ironia, lembrando que Wonka, ao contrário de Jackson, odeia crianças.
Wonka odeia crianças, mas sabe ganhar dinheiro com elas. A promoção que esconde cinco convites para um tour pela fábrica em barras de chocolate Wonka é um sucesso mundial. As cinco crianças escolhidas pelo acaso (ou nem tanto) de comprarem a barra de chocolate premiada terão direito a um passeio pela fábrica, com um adulto responsável como acompanhante. Em tempos de “Big Brother Brasil” e outros concursos para celebridades instantâneas, a lógica de um concurso ao final do qual uma das crianças será premiada com um presente especial, é já algo bastante familiar para audiência. Na época do livro e do primeiro filme, esse tipo de evento devia aparecer como uma excitante novidade.
No passeio pela fábrica, o que menos importa é o conhecimento do processo real de como se produz chocolate. O que esta fábula da produção capitalista revela não é o segredo da mais-valia, mas o mecanismo de sua ocultação por trás da ideologia. O segredo da produção capitalista é manter a produção em segredo. Na sociedade do espetáculo, a produção não existe. Os produtos surgem prontos nos supermercados. Eles brotam empacotados e reluzentes nas prateleiras, aptos a fornecer todos os prazeres e realizar todos os sonhos. As engrenagens que movem o mundo são as da psicologia e da publicidade, não da engenharia e da mecânica. A propaganda não é apenas a alma do negócio, é o próprio negócio. A imaginação é tudo, querer é poder.
A dialética da ocultação se manifesta na overdose da exibição. O chocolate da fantástica fábrica jorra de uma cachoeira, para fluir por um bosque onde tudo é comestível. Daí somos conduzidos pelos oompa-loompas para os cenários mais improváveis e agraciados com os mais impagáveis números musicais. Nesta requintada receita cinematográfica junta-se a capacidade tecnológica do cinema atual de realizar as mais insanas fantasias visuais com o talento imaginativo de um diretor bastante peculiar, acrescida da comprovada competência da já tradicional equipe que o cerca; tudo isso a serviço das idéias críticas de um livro visionário.
Toda essa exuberância visual está a serviço de um experimento, destinado a provar qual das crianças é merecedora da herança de Wonka. Nesse experimento fracassam sucessivamente os concorrentes que apresentam as fraquezas morais que o fabulista literário deseja criticar. Nesse conjunto de fraquezas está um inventário das ameaças que cercam a infância: a gula, o mimo excessivo de pais que satisfazem todas as vontades (pelo menos os que podem pagar por isso), o espírito de competição, a hipnose da televisão (bem como videogames ou internet). As crianças que apresentam esses defeitos são sucessivamente castigadas pelos meios mais bizarros e excluídas da competição.
Nessa seleção do vencedor está a essência do filme, a lição que a história pretende ensinar. O vencedor da competição é justamente aquele que é apresentado logo no começo como alguém sem nenhuma qualidade especial: nem mais bonito, nem mais inteligente, nem mais habilidoso que qualquer criança. A única qualidade de Charlie Bucket é a de ser apegado a sua família. Nesse momento, há um curto-circuito: o filme propõe uma abordagem levemente crítica da alienação mercantilista da sociedade contemporânea, ao mesmo tempo em que tenta reabilitar a família como um pilar para valores morais positivos? Há aí uma contradição aparente. Nas décadas em que o livro e o filme original foram concebidos, ser crítico era ser contra a família.
Na virada dos anos 70, a crítica à família era uma atitude progressista. A família era mais uma das instituições da sociedade burguesa-ocidental-cristã-patriarcal a ser demolida pelos ventos libertários da contracultura e da revolução dos costumes. O pátrio poder dos pais sobre os filhos era o protótipo de onde derivavam todas as formas de poder autoritário: o do professor, do patrão, do padre, do policial, do governante, etc. Estava em voga a emancipação das mulheres em relação aos homens, assim como a dos jovens, adolescentes e crianças em relação aos pais. Essa crítica guarda ainda hoje algo de sua validade, mas ela precisa ser relativizada e contextualizada. A família nuclear burguesa permanece um mito a ser desconstruído e substituído por relações mais autênticas, pautadas em compreensão e afeto. As crianças moralmente degradadas do filme são justamente as vítimas desse modelo de família opressivo e asfixiante.
Entretanto, onde a família tradicional opressiva entrou em decomposição não foi por escolha consciente e emancipada dos seus membros, mas por uma degeneração das condições de existência. Nos países pobres e nas famílias proletárias, como os Buckets do filme, a sobrevivência da família como instituição é em certos casos um fator positivo de estruturação que impede a infância e a adolescência de derivarem sem rumo para a ociosidade, a mendicância, e o crime. A família, quando estruturada, mantém liames básicos do indivíduo com certas promessas civilizatórias, como educação e emprego. Quando esses liames se rompem, o indivíduo não encontra autonomia e sim barbárie.
Os Buckets do filme são um exemplo de família estruturada, pois o pequeno Charlie convive não apenas com seus pais, mas também com seus avós paternos e maternos. É claro que se trata de uma fábula, que carrega nas cores emocionais, mostrando uma pobreza estóica e enobrecedora (e velhinhos adoráveis e divertidos), mas o que importa é o modelo. Ao escolher o vencedor, Willy Wonka escolhe quem teve aquilo que ele próprio não teve, uma família afetuosa. Como se trata de uma fábula, repetimos, também há espaço para que o fabricante de doces se reconcilie com seu pai dentista.
O que fica, além do final feliz (e do delírio visual) é um retrato bastante fiel dos perigos que cercam a infância na nossa época, tão profundos e disseminados quanto o gosto por chocolate e o corolário que o acompanha, as inevitáveis cáries...
Daniel M. Delfino
20/07/2005
P.S. Finalmente está explicado o misterioso monólito negro de “2001”!
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