Nome original: Kingdom of heaven
Produção: Inglaterra (UK), Espanha, Estados Unidos, Alemanha
Ano: 2005
Idiomas: Inglês, Árabe, Alemão
Diretor: Ridley Scott
Roteiro: William Monahan
Elenco: Orlando Bloom, Liam Neeson, Eva Green, Martin Hangcock, Michael Sheen, Nathalie Cox, Eriq Ebouaney, Jouko Ahola, David Thewlis
Gênero: ação, aventura, drama, história, guerra
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
O diretor Ridley Scott é um dos poucos realizadores em atividade cuja obra cinematográfica se caracteriza por um eixo de preocupações constante. Ao longo de quase três décadas no cinema, onde aportou egresso da publicidade, o cineasta inglês deixou uma marca respeitável de mais de uma dezena de filmes, nos quais este escriba julga haver encontrado um certo fio de unidade temática. Talvez não um fio condutor suficientemente consistente para que seu criador seja chamado de “artista” ou de “autor” conforme as nomenclaturas usuais na crítica, mas com certeza peculiar o bastante para identificar uma “personalidade” em seus filmes.
Ridley Scott invariavelmente coloca um protagonista (ou um pequeno grupo de protagonistas) numa situação totalmente estranha ao seu ambiente social original, sob um pretexto qualquer que o(s) tenha levado a afastar-se (uma guerra, uma viagem a um país estrangeiro, ao espaço remoto ou em busca de auto-descobrimento, etc.), como forma de explorar os contrastes entre os diferentes ambientes humanos (ou naturais), as condições de existência que propiciam, os valores que neles vigoram.
É assim tanto em seus clássicos absolutos, “Alien – O 8o. Passageiro” e “Blade Runner”, como nos seus filmes mais subestimados: “Os Duelistas”, “Chuva negra”, “1492”; nos filmes muito ruins do tipo “Hannibal” e “Até o limite da honra” e nos medianos como “Tormenta” e “Falcão Negro em Perigo”; naqueles que são sucesso de crítica e público tais como “Telma e Louise” e “Gladiador” e naqueles em que o diretor foge totalmente ao estilo habitual, como “Os Vigaristas”.
Em todos esses filmes vemos uma espécie de “observatório humano” em ação, um “zoológico” em que os “animais humanos” são expostos fora de seu “hábitat”, em situações que realçam seus caracteres e os levam ao seu extremo, para de alguma maneira mostrar sua “verdade” mais profunda. São filmes de observação, mas não de tese, evitando expor formalmente essa “verdade profunda” dos personagens e deixando-a em aberto para interpretação do espectador.
Isso não significa que o diretor se mantenha inteiramente neutro e não faça escolhas morais/ideológicas. A escolha se manifesta no próprio estabelecimento do tema, o terreno mínimo em que se dará o diálogo. O “observatório humano” de Ridley Scott volta-se no momento para o fenômeno das Cruzadas. O episódio escolhido é o da reconquista de Jerusalém pelos muçulmanos, sob Saladino, em 1184. O efêmero domínio cristão sobre a Terra Santa, firmado com a vitória da 1a. Cruzada em 1096, esvai-se antes de completar um século.
Esse intervalo de tempo foi o suficiente porém para consolidar poderosos interesses materiais. Um reino cristão foi criado em Jerusalém, cópia dos reinos medievais europeus com suas hierarquias e relações, seus nobres e vassalos. O último rei cristão de Jerusalém, Balduíno IV (Edward Norton desperdiçado atrás de uma máscara), é doente de lepra e não tem condições de defender seu reino do avanço dos muçulmanos, liderados pelo grande sultão Saladino. A tarefa caberá ao herdeiro do trono, um certo Guy de Lusignan, casado com Sybilla (a belíssima Eva Green), a irmã do rei. Entretanto, ao invés de conselheiros sábios como Tiberias (Jeremy Irons, num papel decente depois de muito tempo), o cunhado do rei prefere Reinald de Chantillon (Brendan Gleeson, um dos meus atores preferidos, habitué dos épicos desde “Coração Valente”), um Templário fanático que não pensa em nada além de provocar os muçulmanos. “É um serviço que alguém tem que fazer”, ele parece dizer, ao chacinar os “infiéis” que encontra pelo caminho.
As provocações de Chantillon desencadeiam a guerra contra o exército muito mais poderoso de Saladino (um dos mais importantes sultões da história), que vinha há tempos reagrupando o lado muçulmano para reconquistar Jerusalém. É nesse cenário que aparece Balian (Orlando Bloom, o ponto fraco do filme), filho do barão Godfrey de Ibelin (Liam Neeson, que está se especializando no papel do mestre-simpático-que-morre-logo-no-começo; vide “Ameaça fantasma”, “Gangues de NY” e este “Cruzada”). O filho bastardo do nobre embarca na viagem, apesar de alguma relutância (e assim temos o “observatório” em ação). Em Jerusalém ele procurará salvação para sua alma atormentada pelo suicídio da esposa; assim como o próprio Godfrey, ao ir até uma oficina de ferreiro para encontrar o filho bastardo, procurava se redimir do estupro com que o concebeu anos antes.
A acidentada viagem que conduz Balian do interior da França ao seu feudo em Ibelin, na Palestina cristã, lhe permitirá incorporar os valores da cavalaria (na impressionante cena do juramento perante um pai moribundo); fazer amizade com um nobre muçulmano (o que terá providencial utilidade em aventuras futuras); ser aceito na corte de Jerusalém (e no leito da rainha); experimentar o governo de seu pequeno território; e destacar-se como herói de guerra, paradoxalmente, defendendo o castelo do provocador Chantillon (em um plágio explícito da marcha de Faramir para a morte certa em “O Retorno do Rei”).
A trajetória de Balian, e não apenas a atuação de Orlando Bloom, constitui o ponto fraco do filme. O personagem parece deslizar pelos acontecimentos sem experimentar qualquer espécie de conflito, sem ser interiormente transformado por eles. A lenda de seu pai o precede e aplaina o caminho para que se torne um herói, como numa espécie de predestinação. Sem que se perceba como, ele é identificado com as idéias e as virtudes de seu pai, sem que vejamos onde as adquiriu. E, mais complicado que isso, ele se torna o defensor de Jerusalém, sem que se explique propriamente quando aprendeu a lutar, a comandar, a organizar defesas, contra-atacar máquinas de assédio, etc.
Ele sabe tudo isso simplesmente porque é o mocinho do filme, como está no “script”, não porque tenha adquirido tais conhecimentos ao longo dos acontecimentos. Pois os acontecimentos se sucedem num ritmo muito rápido, acidentado e desconexo, justapostos numa edição negligente. Sem consistência dramática por parte do roteiro e sem um ator de carisma suficiente (o gladiador de Russel Crowe esmagaria o cruzado de Orlando Bloom como um inseto), Balian funciona apenas como uma espécie de alter-ego neutro do espectador, que trafega pelo cenário, sem se afetar muito por ele.
Provavelmente, Ridley Scott estava mais interessado no contexto do que no personagem em si. Nesse ponto ele se sai melhor do que na condução frouxa da trama, mesmo sem chegar a ser brilhante. No aspecto técnico, ficamos na média das superproduções. Há toda uma reconstituição impressionante das batalhas, mas há também a tentativa vazia de poetizar a violência com cenas de luta em câmera lenta e violinos chorosos, completados por uma espécie de canto gregoriano, que não comovem mais ninguém. O que indica uma evidente saturação do gênero épico.
Isso contudo já era esperado. O que nos interessa aqui é como o filme lida com as questões ideológicas que mencionamos no título. Como se trata de um realizador de primeiro time, passamos longe, é claro, da armadilha do maniqueísmo vulgar de colocar os cristãos como “mocinhos” e os muçulmanos como “vilões”. Os dois lados choram por seus mortos. Em determinado momento o protagonista pergunta, a respeito da disputa pela cidade sagrada de três religiões: “Qual direito é mais sagrado? Quem tem mais direito?”. Os ecos dessa pergunta ressoam na atualidade, como uma lição aos fanáticos que ainda hoje se matam mutuamente na Palestina.
Há assim um certo equilíbrio e realismo na reconstituição histórica. Ao invés de tratar propriamente de uma Cruzada, o filme retrata uma anti-Cruzada de reconquista. Era uma questão de tempo até que os muçulmanos reconquistassem Jerusalém; tempo para que ascendesse ao sultanato um governante com a capacidade de Saladino. O mundo muçulmano era muito mais civilizado que a bárbara Europa cristã; desde o começo, as cruzadas foram uma empresa precária e condenada ao fracasso.
O que restou das cruzadas foi sua lenda. O termo “cruzada” se tornou sinônimo de qualquer empreitada heróica disponível. George Bush diria que está em uma “cruzada” para implantar a democracia no Iraque. Logo, o termo é ambíguo desde o começo. Um filme como “Cruzada” terá a óbvia tarefa de resgatar o conceito dessa ambigüidade em que jaz. É nesse ponto que Ridley Scott faz sua escolha, a de uma cruzada como utopia da “convivência pacífica entre os povos”. Ele defende porém essa idéia sem muita convicção, e quando o espectador percebe que é disso que se trata, já é tarde demais para se interessar pelo filme.
Ridley Scott teve em “Cruzada” a ocasião perfeita para discutir política, moral e religião, relacionando os eventos de quase um milênio atrás aos dilemas contemporâneos. A guerra aos infiéis foi vendida pela Igreja como uma forma de se redimir pecados, com a boa obra de reconquistar a Terra Santa. Nisso se misturavam interesse econômicos, poder político e ideais morais. Um cruzada é uma viagem de transformação moral/pessoal, em meio a uma guerra entre povos de civilizações diferentes, em nome de valores religiosos, que se prestam porém a utilizações político/econômicas. Basicamente, um resumo da história da humanidade. Portanto, um tema perfeito para o nosso “observatório”.
Escaldado porém pelo fracasso de Oliver Stone em “Alexander”, o diretor inglês preferiu “jogar na retranca”, e acabou produzindo um filme sem intensidade e sem paixão. Se “Alexander” peca pelos excessos, “Cruzada” peca por omissão. Não apenas a edição é preguiçosa, mas o roteiro se ressente da falta de compromisso com o tema. Ridley Scott tem sua visão de uma cruzada “politicamente correta”, mas se abstém de defendê-la com garra e deixa os personagens soltos ao sabor das convenções hollywoodianas mais banais.
Quando Balian se torna o defensor de Jerusalém, o que entra em cena é o plebeísmo vulgar do cinema estadunidense convencional. Ele é o “homem comum” que subverte as hierarquias para lutar por uma cidade onde todos podem rezar por qualquer fé que seja. Onde todos podem ser iguais, etc., no espírito do estadunidismo mais rasteiro. A transformação tardia do cruzado relutante em general encontra o espectador já desinteressado por uma utopia sem vigor. O ferreiro-que-se-torna-cavaleiro condiz mais com uma comédia como o leve e divertido “Coração de cavaleiro” do que com um épico sobre as cruzadas.
Temos então um filme esteticamente bem construído, mas dramaticamente superficial e sem alma. Um filme sem paixão política, religiosa e nem mesmo romântica. Todo um universo a ser explorado, o do fascínio das mulheres orientais sobre os homens do ocidente, fica em segundo plano, mesmo quando temos em mãos uma rainha de Jerusalém interpretada por uma atriz de beleza estonteante e de talento comprovado (os dois ítens podem ser observados em “Os Sonhadores”, onde Eva Green atua praticamente todo o tempo seminua). A rainha Sybilla representa uma mulher com o raro poder de decidir. Mas também nesse caso, Balian parece estar apenas colhendo o que seu pai plantou. Quando a sugestão de um romance ardente é esvaziada pelo desenrolar da trama, Sybilla acaba desaparecendo lamentavelmente como uma espécie de Madalena arrependida.
Mas cabe ainda à Sybilla, antes de seu eclipse, o esboço de uma importante discussão, que entretanto não se concretiza, quando ela sintetiza magistralmente as diferenças entre as moralidades muçulmana e cristã: submeter-se ou decidir. A palavra “Islã” em árabe significa algo como “submissão”, indicando que o fiel deve submeter-se inteiramente à sua fé, entregando todos os aspectos de sua vida a seu Deus. Já o livre-arbítrio do cristão existe apenas para que ele enfrente o desafio de escolher o bem e com isso tornar-se digno da obra de seu Deus.
Temos aí, em uma chave religiosa, o contraste embrionário entre duas ideologias, duas versões da civilização que são a matriz daquilo que chamamos de “ocidente” e “oriente”, o que poderia ser tema de caudalosos ensaios antropológicos e historiográficos. Qual deles é superior? A antítese fica no ar para ser desenvolvida pelo desenrolar das escolhas concretas dos personagens.
A Jerusalém de Balduíno, Godfrey, Tiberias e Balian é uma espécie de reino iluminista “avant la lettre”, onde cristãos, judeus e muçulmanos podem rezar em paz em seus respectivos locais sagrados. Essa parece ser também a visão de Saladino, que somente permitia a sobrevivência do enclave cristão no oriente como uma espécie de concessão, condicionada ao “bom comportamento” (que os cristãos não tiveram), à espera da ocasião propícia para a reconquista final. Quando sobrevém sua vitória, o sultão dá o exemplo, abstendo-se de afogar a cidade num lago de sangue, como os primeiros cruzados fizeram com a população muçulmana.
A ocasião para essa vitória seria fornecida pelas provocações inconseqüentes da dupla Chantillon/Lusignan, os Osama/Bush da época. Os fanáticos são sempre minoria, como esses dois, mas são capazes de precipitar os acontecimentos que põem tudo a perder. Pelas mãos de tais elementos, o idealismo das cruzadas se converte em disfarce grosseiro para ambições materiais inconfessáveis. A política de Chantillon/Lusignan (e de Osama/Bush) é orientada pelo fanatismo.
Insinuar que um exército que marcha com a bandeira da cruz de Cristo pode ser derrotado é blasfêmia. A todo momento, é a vontade de Deus em ação. Lutar é vontade de Deus, fugir é vontade de Deus. Cada lado interpreta a história a seu favor, invocando a vontade de Deus. Logo, as providências mais óbvias podem ser desprezadas em nome do “in hoc signo vinces”. Lusignan leva o exército de Jerusalém para a batalha sem cuidar do abastecimento de água (no que é contestado por Balian, o estrategista improvável).
Mais adiante, com a cidade já cercada e diante da morte iminente, o bispo sugere converter-se ao islamismo para salvar a pele e arrepender-se depois. Exemplo típico da moralidade católica, salvar as aparências e a pele e jogar os princípios pela janela. “Sorry for the people”, diz o bispo, com seu tipo peculiar de realismo rasteiro. Balian, a essa altura um cruzado convicto, descarta a apostasia e o perjúrio, como já havia antes descartado, coerentemente, a conspiração como meio de chegar ao poder.
À Saladino, com sua sabedoria de beduíno do deserto, bastou esperar que os cristãos fossem destruídos pela própria estupidez, para com isso cumprir a promessa feita aos seus próprios fanáticos. Nada expressa melhor essa estupidez do que a imagem do rei cristão humilhado com chapéu de burro em frente às muralhas da cidade que lhe cabia defender. É curioso ver os cristãos em inferioridade em Jerusalém, no mesmo momento em que, “mutatis mutandis”, a “cruzada” de Bush faz areia em Bagdá.
O naufrágio do estúpido idealismo cristão dos fanáticos Templários contra o sóbrio realismo de Saladino se anuncia desde o início. Já os problemas do idealismo do próprio Balian se manifestam num plano mais sutil. Balian age como um idealista quando, em nome de seus princípios, descarta participar de uma conspiração que lhe daria o comando de Jerusalém e ainda por cima lhe daria a mão da bela rainha Sybilla. Aqui nas quebradas da zona leste paulistana onde reside este escriba, o sujeito que deixasse escapar tal oportunidade sairia inapelavelmente estigmatizado com a irremovível pecha de “vacilão”. Nem mesmo o fato de que ele tenha chegado a chefiar Jerusalém, e de terminar o filme cavalgando ao lado de Sybilla, remediaria essa situação, pois tudo já havia sido posto à perder.
Ao colocar o idealismo acima da politicagem, Balian dá expressão ao dilema básico de toda política: agir com uma moralidade que o adversário não exercita. Balian age com escrúpulos que seu adversário (Guy de Lusignan) nem sequer cogita. Isso constitui simultaneamente a fraqueza e a força de toda política praticada com “boas intenções”. Na política de Balian, os fins não justificam os meios. Ao recusar “um pouco de mal por um bem maior”, como sintetizou Sybilla, ele objetivamente condenou a cruzada ao fracasso. Ele estava errado?
Cabe aos espectadores do “observatório” julgar. O diretor, coerente com a linha imprimida ao longo de sua obre, não o condena nem absolve. Jerusalém cai, mas seu defensor termina cavalgando ao lado da rainha. Em direção à outra cruzada? Talvez, pois o final ambíguo insinua essa possibilidade. Uma possível resposta está em que, para Balian, o “reino dos céus” (“Kingdom of heaven”, o título do filme em inglês), não está em Jerusalém, nem em lugar nenhum, mas na mente e no coração. Essa é a solução de Ridley Scott, pessoal, individualista e minimalista, diante dos desafios que as cruzadas contemporâneas nos colocam. Uma solução insuficiente, como o próprio filme.
Daniel M. Delfino
10/05/2005
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