8.5.07

"Fahrenheit 11/09” Segundo J.J. Rousseau - Parte 4




9. Resumo da ópera

No item 2, vimos como, na época da grande Revolução Francesa, os intelectuais militantes inspirados em Rousseau criaram o jornal “La Bouche de Fer” para permitir que o povo se expressasse e exercesse publicamente o poder de sua censura e de sua opinião sobre os negócios públicos. Os militantes do Círculo Social tentaram trabalhar na perspectiva de que o poder pertence a povo e em seu nome deve ser exercido. Assim também com relação ao poder da palavra. A palavra do povo deve se expressar com plena liberdade, para assim legitimar o debate público.

No item 3, observamos que a grande imprensa, no século XXI, se porta exatamente de modo contrário ao dos revolucionários franceses. A imprensa esconde a verdade e mostra ao público apenas o que não é relevante, não é importante, não é comprometedor, o que não é crucial para a manutenção do sistema estabelecido. Todas as informações verdadeiramente sensíveis ficam ocultas. O público é mantido na ignorância do que se passa em seu nome. Seu poder essencial de constituinte do corpo do soberano fica assim apartado de suas mãos. Pois sem as informações necessárias, não há como exercer esse poder.

No item 4, assinalamos o fato de que essa situação não pode se prolongar indefinidamente. Ocasionalmente, o dique ideológico do discurso dominante se rompe. A verdade vem à tona e expõe o caráter fraudulento desse discurso. O discurso da guerra contra o terror, que legitima a invasão do Iraque, é uma mentira clamorosa. O documentário “Fahrenheit 11/09” é uma violenta denúncia contra esse discurso mentiroso.

Nesse documentário se afirma que o Iraque não tem armas de destruição em massa, não tem relações com a Al Qaeda, seu povo odeia a ocupação estadunidense, as tropas de ocupação não estão lá para levar a “democracia”; pelo contrário, o único objetivo da invasão é o controle do petróleo. Todas essas afirmações dizem precisamente o contrário do que diz o discurso da grande mídia. Dizem o contrário de modo claro, transparente, direto e contundente.

Entendemos por isso que o documentário resgata a missão do que deve ser a imprensa independente. No item 5, relacionamos o procedimento de Moore ao do “Círculo Social”. O documentário “Fahrenheit 11/09” trabalha na mesma perspectiva do jornal “La Bouche de Fer”. Ele dá voz aos dois lados. Permite que ambos se mostrem inteiramente.

Moore trabalha com a razão e também com a emoção. O documentário mostra momentos de horror, de dor, de sofrimento, de desespero, mas mostra também o humor involuntário encenado pela gangue de farsantes que tomou o poder nos Estados Unidos, e mostra momentos de grande vitalidade da oposição estadunidense, momentos de esperança e alegre confiança na vitória futura.

O fenômeno de bilheteria representado por esse documentário é analisado no item 6 do ponto de vista do paradoxo que isso representa. A informação (“Fahrenheit 11/09”) se transforma em mercadoria, uma mercadoria cujo valor de troca não pode deixar de ser realizado pelo sistema. Mas cujo valor de uso consiste na condenação desse mesmo sistema. Por força de sua própria dialética, o sistema é obrigado a permitir que a informação circule, sob a forma de uma valiosa mercadoria. E com isso, renova as esperanças de quem deseja fazer com que a verdade cada vez mais venha à tona e circule.

Apesar dessas esperanças, nos questionamos no item 7 sobre o momento estratégico em que “Fahrenheit 11/09” vem a tona. Nos perguntamos se o documentário não terá sido tolerado e autorizado a circular tão somente em função da proximidade do momento de alternância entre as faces do sistema. A face agressiva sai de cena para abrir espaço para a face amigável. E isso nos é apresentado como uma grande vitória da oposição, com direito à festejar um documentário-manifesto.

O problema da falta de alternância real de poder nos Estado Unidos é abordado no item 8 por meio do exemplo das “teorias da conspiração”. O sistema não autoriza, não permite, não dá ouvidos a um questionamento que seja dirigido diretamente às suas bases essenciais. Ele permite tão somente que se questionem os seus representantes, no nível de sua honestidade pessoal, quando estes são acusados de conspiração contra o bem público. As teorias da conspiração circulam com relativa liberdade e encontram sempre quem acredite nelas.

O problema não é a conduta pessoal dos dirigente do sistema. Enquanto se discute se são honestos ou não (e de fato não são), o sistema continua funcionando com sua lógica excludente e opressora. As “teorias da conspiração” são necessárias para desmascarar farsantes como os da gangue de Bush. Mas são insuficientes do ponto de vista da necessária crítica abrangente e totalizadora ao sistema.

10. Considerações Finais

A questão da opinião pública se transformou no problema político por excelência. Nos nossos tempos, a política se transformou em política eleitoral. Os partidos políticos não estão mais trabalhando em nome de projetos e interesses disseminados na sociedade. Os partidos não são mais a expressão organizada desses interesses. São meros grupos de políticos dedicados a se perpetuar nos seus cargos.

A política se transforma em sinônimo de eleição. Quando se fala sobre o trabalho de um político, seja para criticar, seja para elogiar, isso assume o aspecto de uma fala eleitoral. Não se pode falar “gratuitamente” de um político. Só se pode falar de sua próxima campanha eleitoral, se tem ou não tem chances de se eleger. Quando se medem os índices de aprovação da gestão de um político, isso tem o sentido de uma pesquisa eleitoral prévia. A sua média de aprovação é tomada livremente como sua expectativa de votos numa eventual eleição.

No quadro desse esvaziamento do conteúdo da política, a figura das personalidades cresce e a do povo diminui. A política é feita por personalidades. Uma personalidade é o equivalente a uma celebridade vinda do mundo do entretenimento. Um político, um astro do rock, um atleta famoso, uma diva de Hollywood, todos são uma só e mesma coisa: celebridades. “Ama-se sempre aquilo que é belo ou que se julga belo.”

Nesse mundo governado por celebridades, onde fica o cidadão? Onde está o cidadão comum, que não é famoso, não é capa de revistas, não aparece na TV (senão para ser ridicularizado por “pegadinhas”)? O cidadão comum se torna um consumidor passivo de informações, mercadorias e idéias. Não lhe é dado o poder de se expressar, de influenciar, de decidir.

Diante de uma tal situação, o aparecimento de um filme-evento como “Fahrenheit 11/09” oferece um interessante contraponto. A obra de Michael Moore recoloca as coisas nos devidos lugares. A política não pertence aos políticos, pertence ao povo. A arena pública não pertence a celebridades, pertence ao público. Cada cidadão comum tem o direito de expressar sua voz. São esses cidadãos comuns que aparecem no filme, lado a lado com Bush, para que o espectador possa se comparar a um e a outro.

A comparação é evidentemente desfavorável ao político profissional. O filme mostra o quanto a política praticada por farsantes, à revelia do povo, degradou-se a ponto de se transformar na farsa grotesca de Bush & CIA. Ele expressa também o quanto é importante lutar para reocupar essa esfera. A esfera da opinião pública é importante demais para ser deixada aos “formadores de opinião” profissionais da mídia. “Quem julga os costumes, julga a honra, e quem julga a honra vai buscar sua lei na opinião.”

É no espetáculo fragmentário da televisão que a realidade está sendo costurada ao bel-prazer pelos poderes estabelecidos. É no contra-discurso da imprensa independente que essa realidade precisa ser reconquistada. “Melhorai as opiniões dos homens e seus costumes purificar-se-ão por si mesmos.” Se Rousseau estivesse presente no mundo de hoje e pudesse assistir “Fahrenheit 11/09”, aplaudiria de pé.

Daniel M. Delfino

12/08/2004

P.S. Filme comentado:

Nome original: Fahrenheit 9/11
Produção: Estados Unidos
Ano: 2004
Idiomas: Ínglês, Árabe
Diretor: Michael Moore
Roteiro: Michael Moore
Elenco: Ben Affleck, Stevie Wonder, George W. Bush, Al Gore, Condoleezza Rice, Donald Rumsfeld, Saddam Hussein, George Bush, Ricky Martin, Osama bin Laden
Gênero: documentário, guerra
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

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