29.5.07

Da natureza do peleguismo, ou a traição de classe como problema moral




A ideologia burguesa explica as desigualdades sociais com base na desigualdade natural entre os indivíduos. Há “vencedores” e há “perdedores”, tanto entre pessoas como entre países. Essa é uma “verdade” metafísica pétrea, eterna e imutável. O fato de alguém estar “por cima” ou “por baixo” na escala social é explicado pela presença ou ausência neste indivíduo de determinadas características essenciais definidoras de sua “personalidade”: iniciativa, talento, disposição; e talvez um pouco de sorte. A anarquia da sociedade burguesa é apresentada como uma meritocracia, ou ainda mais grosseiramente, como “a sobrevivência do mais apto”.

A explicação das desigualdades sociais com base em características individuais exime os responsáveis pela sustentação da ordem prevalecente de fornecer corretivos para as conseqüências mais bárbaras dos defeitos estruturais do sistema, uma vez que qualquer corretivo a ser cogitado (combate à pobreza), em se mantendo dentro dos parâmetros estabelecidos, resulta completamente estéril e paliativo. Ao mesmo tempo, essa explicação permite aos indivíduos isoladamente se absterem de questionar a ordem vigente, uma vez que sua própria posição, superior ou subalterna, está determinada pelos ditames de uma ordem social fundamentalmente imutável, porque “natural”.

Esse discurso vulgar reproduz na sociedade capitalista a disjunção peculiar a toda sociedade de classes pela qual as qualidades morais individuais estão dissociadas das posições de responsabilidade social diretiva. Isso é especialmente grave no contexto em que as responsabilidades estão hierarquicamente distribuídas numa estrutura vertical de comando alienado. Essa forma de organização torna possível uma situação em que os piores indivíduos estejam justamente nas posições de comando. Evidentemente, a correção para esse defeito estrutural não está em tentar eleger os “melhores” indivíduos para as posições de comando, mas em extinguir qualquer posição de comando vertical estruturalmente separada. Enquanto não se estabelecem formas horizontais de regulação social, as contradições mais desconcertantes são perpetuadas.

Passemos a uma dessas contradições. A consciência social das classes dominantes não determina mecanicamente o caráter moral dos indivíduos a elas pertencentes. Não se pode qualificar moralmente as pessoas em função de posições políticas (o mundo da luta política seria infinitamente mais simples se assim fosse). Há “bons” e “maus” burgueses, assim como houve “bons” e “maus” senhores feudais, senhores de escravos, etc. O que é “mau” não é o indivíduo subjetivamente, mas o sistema social ao qual ele está historicamente subsumido.

Um burguês não é “mau” por definição, nem o revolucionário é “bom” por definição. Esse tipo de compreensão maniqueísta primária alimenta as confusões do esquerdismo infantil que diluem a luta de classes no ódio de classes e degeneram a revolução em simples vingança; bem como serve de pretexto para o oportunismo traiçoeiro de ditadores ensandecidos e genocidas como os Pol Pot que a História registra.

O fato de um indivíduo defender posições ideológicas compatíveis com a dominação do capital não impede que esse indivíduo seja moralmente uma boa pessoa. É perfeitamente possível que esse indivíduo encoste a cabeça no travesseiro e durma com a consciência tranqüila, mesmo tendo durante o dia sustentado posições político-ideológicas peculiares a uma ordem social iníqua. É perfeitamente corriqueiro e “normal” o indivíduo acreditar honestamente que faz todo o possível para ser uma boa pessoa e melhorar a sociedade ao seu redor, sem contudo romper ideologicamente com a lógica da dominação do capital. Uma significativa parcela da burguesia, da classe dominante, da elite, não está sendo subjetivamente hipócrita, mal intencionada ou dissimulada quando defende o capitalismo. Está simplesmente defendendo as crenças nas quais foi educada desde a infância. O papel da ideologia é justamente o de produzir objetivamente o engano subjetivamente honesto.

É para isso que há mais de dois séculos se repete à exaustão a balela de Adam Smith: se cada um lutar por seu próprio sucesso pessoal, a “mão invisível” faz com que “automaticamente” o resultado dos esforços individuais produza o “bem coletivo”. Cada um por si e Deus por todos. Os ideólogos que defendem a ordem dominante criam sucessivas elaborações que se reduzem basicamente a esse raciocínio. Alguns com mais sofisticação e competência, outros com mais grosseria e dogmatismo. Alguns, inclusive entre os ideólogos, com honestidade e “boas intenções”; outros com pérfida dissimulação e má fé.

O fato que se procura estabelecer é que a ideologia determinada pela posição de classe não pode ser tomada como base para o julgamento moral individual, sob pena de cair em equívocos como os do maniqueísmo vulgar citado. A transformação social conseqüente (revolução) não passa pela destruição pessoal de indivíduos, mas pela destruição política de determinadas relações sociais deletérias. Se o sistema como um todo é moralmente ruim, a moralidade pessoal dos indivíduos a ele subsumidos manifesta-se inevitavelmente como uma variável aleatória, ou seja, como injustiça.

É injusto que sejam sempre os piores indivíduos a ocupar as posições de comando. Mas o problema é ainda mais profundo, pois não basta tentar selecionar os “melhores”. Há indivíduos moralmente bons e ruins em todos as faixas do espectro social/ideológico. É natural que um burguês defenda o capitalismo; não se deve condená-lo moralmente por isso e sim combatê-lo politicamente. A tese levantada nessa discussão prévia é muito facilmente defensável; o debate a respeito chega a ser ocioso ou redundante. Mas ele foi necessário para que se pudesse chegar ao ponto que diz respeito propriamente ao título deste artigo.

Não existe bom burguês nem mau burguês. O burguês é por definição socialmente nefasto (inclusive para si mesmo), embora possa ser no plano pessoal moralmente bom. Mas a recíproca não é verdadeira. O “revolucionário” não é por definição um elemento de avanço social, quando adota uma conduta pessoal reprovável. O “revolucionário” de caráter pessoal moralmente degenerado deixa de ser socialmente progressivo e passa a ser também socialmente nefasto (e conseqüentemente, deixa de ser revolucionário), mas com agravantes numa série de aspectos que merecem exame.

Não se trata simplesmente de condenar os dirigentes políticos que, tendo partido de posições sociais originalmente revolucionárias (ou quase), passam a adotar métodos de intervenção peculiares à esfera alienada da institucionalidade do Estado burguês (nomear e favorecer parentes e amigos, pagar mensalão para comprar votos, etc.). A questão é mais grave, pois diz respeito ao próprio conceito de “participação” no ambiente essencialmente degenerado da institucionalidade vertical hierárquica alienada em que se pretende intervir.

Para se ter uma postura conseqüente com aquilo que foi denominado acima de “revolucionário”, não se pode admitir qualquer forma de “participação” em qualquer ambiente da institucionalidade (Estado, Escola, etc.) que não aponte inequivocamente para a transformação radical dessas esferas num sentido humano e emancipador. Isso evidentemente exclui de saída qualquer justificativa mesquinha para a estratégia oportunista de “administrar o sistema” ou transformá-lo “gradualmente”.

Que dizer então de medidas abertamente anti-sociais, como as que visam revitalizar as margens de lucro dos capitais especulativos mundiais à custa do saque aos trabalhadores da periferia, por meios variados tais como reforma da previdência (sic), reforma sindical e trabalhista (sic), reforma universitária (sic), privatizações, PPPs, etc.?

Se no que diz respeito ao plano social da intervenção política tal forma de “participação” na esfera essencialmente corrompida da institucionalidade vertical hierárquica alienada do Estado burguês é conceitualmente inadmissível; no plano subjetivo da moralidade pessoal essa atuação tende a se revestir dos contornos mais problemáticos. Ao burguês, como vimos, é perfeitamente admissível e mesmo corriqueiro que raciocine em termos da manutenção da ordem, com paixão e honestidade. Mas o que dizer do “revolucionário” que, conhecendo a ordem desde o ponto de vista oposto, ou seja, de quem é por ela explorado e rebaixado em sua humanidade; uma vez convocado a participar do jogo político oficial, se torna um defensor dessa mesma ordem?

O que dizer dos líderes sindicais e políticos dos trabalhadores que se tornam defensores desse mesmo capitalismo, na sua variante mais cruel e predatória, o imperialismo financeiro globalizado, empenhando-se nas medidas exigidas pela especulação a ponto de afundar na lama da corrupção parlamentar? Que espécie de qualificação moral merecem os que assim procedem?

Uma coisa é combater políticos tradicionais, que são simples ladrões sem nenhum projeto de sociedade (a não ser a manutenção do banditismo institucionalizado que em essência é o que define o capitalismo). Mas outra bastante diferente é combater aqueles que, tendo partido da oposição ao capitalismo, querem nos convencer de que não há alternativa ao sistema, de que o melhor que se pode fazer é humanizá-lo, de que “ser de esquerda hoje” é aperfeiçoar o mercado (FHC já dizia: “a esquerda sou eu”); com o argumento de que fizeram “autocrítica”, deixaram de ser “dogmáticos” e “dinossauros”.

Como aceitar que indivíduos que foram (e em alguns casos, com o mais inacreditável e ultrajante despudor, ainda dizem ser) socialistas, marxistas, revolucionários, esquerdistas, etc.; adotem cinicamente tais argumentos abertamente oportunistas? Aqui não temos uma simples mudança de posição teórica, mas uma falência moral escandalosa. São indivíduos que sabem o que estão fazendo. Saltaram para o lado oposto da trincheira e, em benefício de seus novos senhores, sabem neutralizar as armas que usavam. Sabem acabar com uma greve, manipular uma assembléia, desmobilizar uma luta, isolar os opositores, censurar o debate. Sabem o que é o oportunismo, o burocratismo, a “tratoragem”, etc.

Sabem, mas estão lá, num Partido que se diz “dos Trabalhadores”, nos sindicatos, nos grêmios, no MST, nos movimentos sociais, “representando” os trabalhadores, os estudantes, “o povo”. A pergunta aqui pertinente é como estes indivíduos conseguem encostar a cabeça no travesseiro e dormir, ou como conseguem se olhar no espelho e suportar a visão da própria face, depois de cada mentira, cada traição, cada manipulação, cada roubo.

Trata-se aqui de uma questão das mais espinhosas, que está na própria origem da filosofia. O indivíduo que conhece a verdade, a virtude e a beleza necessariamente os pratica? Sócrates acreditava erradamente que o homem, conhecendo o bem, praticaria o bem. Ele mesmo viveu o suficiente para ver alguns de seus discípulos se tornarem maus políticos. E não só foi condenado à morte por isso como aceitou estoicamente a pena. Não obstante, Platão, inconformado com a injustiça imposta ao mestre, persistiu no engano, com uma obra de qualidades literárias cujo poder de sugestão permanece inigualado.

Coube a Aristóteles mostrar que não existe um bem absoluto, mas o bem é sempre relativo a um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos, consistindo a ética “realista” na tentativa de edificar o reino do bem para o maior número possível de indivíduos. Tal era o horizonte limitado que se podia vislumbrar no incipiente universo social da antiguidade clássica. O capitalismo leva ao paroxismo essa disputa entre os indivíduos; cabe ao socialismo construir-se como uma ordem em que a realização de cada um dependa da realização do outro, e não de sua negação.

De volta ao debate contemporâneo, impõe-se a conclusão de que não se pode confiar pessoalmente em governantes. É preciso ter garantias materiais mais seguras do que as entusiasmadas profissões de fé “revolucionárias” dos candidatos à direção política. A falha não está apenas no caráter das pessoas, mas no sistema de representação política vertical hierárquico alienado. No caso das direções políticas traidoras, não resta dúvida de que, se o Inferno de Dante fosse escrito hoje, não haveria círculo de danação profundo o bastante para dar conta da punição dessa classe de réprobos. Mas também não basta condená-las moralmente, pois é preciso combater politicamente o sistema que lhes dá a oportunidade de agir (e de trair). O sistema político representativo como tal está falido. Enquanto houver representação, haverá, do lado de quem é representado, alienação, e de quem é representante, a traição. Ou pelo menos, a possibilidade da traição, a qual, nos leva a concluir a experiência recente, não é um risco nada desprezível.

Para ilustrar esse ponto, é conveniente retornar às questões da conjuntura. Às vésperas da eleição de Lulla, era curioso observar as profecias dos corifeus da direita de que o governo do PT seria tomado por radicais e extremistas. Temia-se que houvesse um grande ascenso popular de lutas sociais. Que os sindicatos, o MST, os estudantes, entusiasmados pela vitória do PT, partissem para a ofensiva. Sabiam que o núcleo duro da direção do PT era confiável (para vergonha deste), mas tinham medo dos diversos setores à sua esquerda, dentro e fora do partido. Os analistas da mídia obviamente viam essa possibilidade como um pesadelo. Tentavam então amedrontar os eleitores da “classe média” com esse discurso dos “radicais” escondidos como ameaça à estabilidade do futuro governo.

Dois anos depois, não é difícil perceber que não foram os setores à esquerda do PT, dentro e fora do partido, que afundaram o governo na crise e acabaram com a tão preciosa “estabilidade”, mas os seus aliados à direita. Cada vez que Lulla apela “ao povo” e ameaça levantar a cabeça contra as elites, é o empresariado que corre em seu socorro, em defesa daquela mesma “estabilidade”. Quanto ao povo, são os setores mais atrasados e despolitizados que atendem ao apelo presidencial e oferecem seu voto à reeleição.

No que diz respeito ao movimento social, que está totalmente aparelhado pelo PT, os lutadores autênticos estão isolados. Luiz Marinho passou sem cerimônia da presidência da CUT para o Ministério do Trabalho. Vai fazer no governo o mesmo que fazia na Central sindical, ou seja, trair os trabalhadores. De modo geral, os dissidentes à esquerda, dentro e fora do PT, foram enquadrados por métodos de direção burocrática dignos do stalinismo mais brutal. Foram expurgados, como os do PSOL, por ocasião da “reforma da previdência” (sic), ou, com muito mais autenticidade, os do PSTU, há mais de dez anos, por ocasião da luta pelo Fora Collor.

Já que estamos falando em critérios morais, é pertinente lembrar que a luta seleciona os melhores. A história saberá discernir quem estava nos enfrentamentos diretos, ao lado do povo, de quem foi apanhado com dólares nas cuecas. Tudo seria bastante diferente se em lugar da pantomima lullista, estivéssemos experimentando de fato um grande ascenso das massas, se os movimentos sociais tivessem partido de fato para uma grande ofensiva em busca da reparação de injustiças históricas e de conquistas sociais. Nesse caso teríamos sim uma guerra aberta entre o governo e a mídia por questões de princípios. Por medo da classe dominante, da qual a mídia é porta voz, de que a situação histórica do país fosse fundamentalmente alterada num sentido favorável às classes subalternas.

Como não estamos num governo popular, o que temos é uma guerra entre um aparato partidário/sindical pelego e traidor e uma mídia sempre voraz na defesa dos privilégios da elite predadora. Não uma guerra por princípios, mas uma luta sem princípios, onde todas as vilezas e baixarias são aceitáveis.

Por falar em princípios, terminemos com Maquiavel. Na política burguesa, como consta no “Príncipe”, os fins justificam os meios. Na política revolucionária, porém, há meios que são contraditórios com os fins. A lição de Maquiavel é o ponto de partida para se alcançar a compreensão realista de como funciona a política. Não pode ser usada como uma receita a ser posta em prática por quem se proponha justamente a transformar e abolir a política.

Daniel M. Delfino
10/07/2005

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