Em 1971, já consumido pelo câncer que iria matá-lo neste mesmo ano, o filósofo húngaro Gyorgy Lukács expressou uma necessidade vital para a esquerda mundial: alguém deveria escrever um novo “Capital”. Depois uma vida de luta contra o terror stalinista, de quase 70 anos de intensa militância intelectual, de haver resgatado a dimensão filosófica da obra de Marx, de ter fixado os termos nos quais essa obra poderia readquirir inteligibilidade e sentido emancipador, de produzir um vasto trabalho de crítica filosófica e literária; o idoso filósofo lamentava-se, aos 86 anos, por não poder se dedicar a uma necessária reativação do projeto marxiano original d’“O Capital”.
Coube ao seu discípulo, István Meszáros, tomar a si o desafio. Depois de participar do levante anti-stalinista húngaro de 1956, brutalmente reprimido, Meszáros exilou-se na Inglaterra, ao contrário de seu mestre. Lukács optou por permanecer na Hungria e continuar enfrentando a censura cerrada do Partido, que o perseguiria quase até o fim da vida. Na Inglaterra, Meszáros tornou-se próximo de intelectuais como o historiador Isaac Deutscher, biógrafo de Trotsky, e Eric Hobsbawm, legenda da esquerda britânica e mundial, ainda hoje atuante.
Ao longo de 25 anos, o discípulo de Lukács desenvolveu uma importante obra filosófica, com obras de peso, como “Marx, Teoria da Alienação” e “O Poder da Ideologia”. Mas dedicava-se também paralelamente ao projeto cuja urgência fora assinalada por seu mestre de maneira tão pungente. “O Capital” de Marx precisava ser reescrito. Essa necessidade mostra-se ainda mais urgente quando se atenta para o fato de que o próprio “Capital”, o livro original, é um projeto inacabado.
Marx nunca pôde finalizar para publicação a grande maioria de suas obras. Talvez apenas o “Manifesto Comunista”, escrito com Engels, e o primeiro volume d’“O Capital” tenham se tornado conhecidos do grande público durante o tempo de duração da vida do autor. A maior parte de sua obra filosófica permaneceu, como ele mesmo costumava dizer, “entregue à crítica roedora dos ratos”. Manuscritos que continham textos fundamentais amarelaram no fundo dos baús, para somente serem estudados a partir de 1930. Alguns dos quais, graças a Gyorgy Lukács.
Seja como for, do projeto original d’“O Capital”, apenas os três primeiros livros foram terminados, sendo que o segundo e o terceiro o foram por Engels. Muitas questões, especialmente relativas às classes sociais e ao Estado, não puderam ser tratadas por Marx. Questões que apareceriam posteriormente sob a forma de dificuldades práticas quase intransponíveis para seus seguidores no século XX, não surgiram no horizonte da empreitada marxiana. Sua obra, datada do século XIX, necessitava portanto de uma urgente atualização, a fim de que o seu sistema teórico pudesse ser enriquecido com os novos nexos categoriais tornados explícitos pelo desenvolvimento do complexo totalizador do capital no século XX.
Meszáros dedicou-se a essa tarefa de atualização, ao longo desses 25 anos, oferecendo como resultado o monumental “Beyond Capital”, publicado na Inglaterra em 1995. Seria preciso esperar 7 anos para que o livro fosse publicado no Brasil, pela Boitempo Editorial, com o título de “Para além do Capital”.
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Este escriba guarda pouca lembrança da palestra proferida por Meszáros no anfiteatro da PUC- SP, quando de sua vinda ao Brasil para a divulgação do livro. Tão pouca que não se lembra exatamente do ano, se 1996 ou 1997. Lembra-se apenas de que nunca havia estado na PUC, de que não sabia qual condução tomar para chegar lá, muito menos para voltar. Lembra-se de que foi salvo por uma carona até o metrô Paraíso, para onde fui levado por um grupo de colegas do curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André.
Ao tomar o ônibus de volta para a Zona Leste, naquela gélida noite, a única coisa que guardei da palestra foi a necessidade de um dia adquirir o livro, tão logo “Beyond Capital” tivesse uma edição brasileira. Queria conferir por mim mesmo se o discípulo de Lukács estivera à altura do desafio a que se propusera, de reescrever “O Capital”. Desempregado e sem perspectivas, a aquisição de um livro desse porte era para mim na época uma utopia inalcançável. Mesmo hoje, precariamente empregado, a aquisição do tal livro não se fez sem sacrifícios. Depois de anos de luta contra dificuldades materiais de todos os tipos, finalmente o precioso exemplar de “Para Além do Capital” me chega às mãos, no início de 2003.
Mas eis que então uma espécie de temor supersticioso me domina. Como se eu estivesse diante da própria Bíblia. O livro, um alentado volume de 1.100 páginas, me pareceu, naquele momento, importante demais para ser lido “de qualquer jeito”. As primeiras olhadas de relance sobre o conteúdo fazem com que eu desista de lê-lo por algum tempo. Me parecia então que um tal livro deveria ser lido e estudado com cuidado. Me parecia que a tarefa de estudar uma obra dessa importância deveria exigir uma espécie de “ano sabático”, um período longo de dedicação exclusiva.
O advento deste ano de 2004 me faz mudar de idéia. Não porque eu tenha ficado mais desocupado, mas porque ao contrário, assumi uma tal variedade de tarefas que a leitura do livro ficaria adiada para sempre. Percebi que nunca conseguiria me livrar de tais tarefas e responsabilidades. Ocupado ou não eu teria que ler o livro de qualquer jeito. Mas não “de qualquer jeito”. Seria preciso achar tempo, e ter paciência. Assim, depois de decorridos seis meses do início do projeto, em sessões semanais de 1 hora de leitura, a tarefa está terminada. E começa o trabalho de falar sobre o livro.
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Constituiria uma violência inadmissível da parte deste escriba a pretensão de “resumir” um livro tão importante, tão denso, tão maciço, no espaço de uma resenha a ser publicada num blog. Mesmo a tentativa de “sintetizar” os “conceitos principais” de um livro assim complexo, abrangente, múltiplo, parece-me ainda uma idéia criminosa. Apesar disso, é preciso de alguma maneira indicar o fio condutor por meio do qual o labirinto teórico de Meszáros pode ser decifrado. Esse fio condutor já está dado a meu ver no próprio título do livro.
O título “Para Além do Capital” remete, obviamente, à obra de Marx, intitulada “O Capital”. E o faz num duplo sentido. É preciso ir além da própria obra de Marx, o livro “O Capital”, e ir além do complexo de relações sociais, do capital que como sistema totalizador de intercâmbio submete a si o metabolismo sócio-reprodutivo da humanidade. Ir além do capital significa dizer que a obra de Marx não se destina a descrever e combater o capitalismo, mas descrever e combater o capital.
Existe uma diferença muito grande entre combater o capitalismo e combater o capital. O capitalismo é o sistema sob o qual o capital se desenvolve plenamente. Mas não é o primeiro nem o único em que o capital se manifesta na história. Antes e depois do capitalismo, houve formas de capital. O sistema soviético era um sistema pós-capitalista de capital. E no que consiste então esse capital cuja estrutura subjaz a formações histórico-sociais pré e pós-capitalistas?
A relação-capital se constitui de três componentes: o capital propriamente dito, o trabalho assalariado e o Estado. Pode-se derrubar qualquer um desses pilares do sistema, ou até mesmo dois, mas se apenas um deles restar, o sistema se reconstituirá por força de sua própria dinâmica inercial interna. A Revolução de Outubro na Rússia derrubou o capitalismo, mas não aboliu o capital, nem o Estado. O dado fundamental que explica o fracasso do sistema soviético é o fato de que este não superou a subordinação estrutural do trabalho, pois submeteu os trabalhadores a um processo de extração de mais-valia politicamente mediado, através de um Estado hipostasiado.
A tentativa de implantar o socialismo sem devolver aos trabalhadores o poder de tomada de decisões substantivas sobre o processo econômico e político só poderia resultar em fracasso. É nesse sentido que o projeto de ir além do capital significa transformar a sociedade por inteiro, de cima abaixo. O projeto de Meszáros portanto é radical no sentido forte da palavra, pois não admite em hipótese alguma a conciliação com a ordem existente. Tanto a esquerda stalinista como a social-democrata conduzem a becos sem-saída, pois não assumem a tarefa essencial de tornar os trabalhadores os sujeitos de fato de sua vida social.
Abolir o capital, o Estado e o trabalho assalariado significa que a humanidade deve tomar a si, de maneira racional, a direção de seu sócio-metabolismo. O termo sócio-metabolismo, da lavra de Meszáros, empresta uma nova profundidade ao conceito marxista de modo de produção. Ele implica reconhecer o fato fundamental de que o homem depende de uma relação metabólica com a natureza para sobreviver. Essa relação é sempre socialmente mediada, por instituições como a família, o Estado, o mercado, etc., e outras historicamente mutáveis formas de articulação.
O capital, como forma de articulação do metabolismo social, mostra-se extremamente ineficiente, perdulário e destrutivo. O sistema do capital imobiliza fortunas incomensuráveis em produtos absolutamente inúteis, na verdade destrutivos, como os do complexo industrial-militar. Do ponto de vista do capital, produção e destruição se equivalem. Não importa que os produtos do trabalho não sejam de fato consumidos. Aliás, o ideal é que eles não sejam. O capital depende de uma taxa de utilização decrescente dos produtos, para continuar produzindo mais, desperdiçando recursos, fazendo girar seu circuito de acumulação.
A produção capitalista de mercadorias não é apenas destrutiva, como é ambientalmente insustentável. A dimensão da luta ecológica é incorporada por Meszáros à agenda socialista, mas de modo a torná-la realmente significativa. O discurso ecológico não faz sentido se não contemplar a necessidade de reestruturar o sistema de produção sob a direção de um imperativo racional de gestão dos recursos finitos do planeta, tarefa que o capital, com sua espiral expansiva de desperdício, não é capaz de desempenhar.
Da mesma forma a luta pela emancipação das mulheres não pode adquirir significado sob a base de um sistema social baseado na atomização e na competição entre os indivíduos, seja de qual sexo forem. Isso significa que não pode haver uma igualdade substantiva entre os sexos a não ser num sistema sócio-reprodutivo que esteja baseado na organização racional e planejada das atividades humanas.
Problemas como o da ecologia, o da emancipação feminina, o desemprego, o poder do complexo industrial-militar, são debatidos com vigor e propriedade em “Para Além do Capital”. É preciso portanto acrescentar que o livro não é um novo “Capital”, no sentido de que não aborda novamente os mecanismos do modo de produção capitalista tratados por Marx. Não há uma descrição da mecânica da acumulação do capital, da mais-valia, etc.. Esse conhecimento já é dado como pressuposto.
O livro portanto não cumpre a promessa de reescrever “O Capital”. Mas não é esse o objetivo. O projeto é ainda maior. Trata-se de superar “O Capital”, no sentido dialético de superação. Superar significa, triplamente, destruir, conservar e ultrapassar o objeto superado. A obra original de Marx é substituída, conservada e ultrapassada por uma nova realização teórica que corresponde ao espírito de seu projeto. Não há portanto aqui uma nova e desnecessária exposição do mecanismo do capital. Há sim uma descrição das deficiências fatais do sistema capitalista e da urgência de substituí-lo, sob pena de condenar a humanidade à perpetuação da barbárie. Descrição enriquecida pelo enfrentamento do autor com as desnorteantes experiências do século XX.
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O livro de Meszáros traz evidentemente a marca do lugar e da época em que foi escrito. A Inglaterra da era Tatcher foi o cenário de sua confecção. Friedrich Hayek, o papa do neoliberalismo e “Companion of honour” de Miss Tatcher, é o adversário teórico preferencial, pulverizado de maneira avassaladora. Tatcher foi apelidada de TINA, sigla formada com as iniciais da frase “there is no alternative”, ou seja, “não há alternativa”, por repetir exaustivamente esse bordão. No discurso neoliberal, não há alternativa ao capital. Eis uma idéia que Meszáros se recusa a aceitar.
A negação radical do discurso fatalista do capital faz de Meszáros o precursor da idéia expressa no “slogan” do movimento do Fórum Social Mundial. A idéia de que “um outro mundo é possível” constitui o exato oposto do “não há alternativa”. O que justifica a nossa escolha desta frase para o título deste comentário. Meszáros é um precursor da idéia expressa pelo FSM. Podemos mesmo considerá-lo um profeta do movimento. Negar radicalmente o capital como ele o faz significa evidentemente dizer que um outro mundo é possível. Se o movimento do FSM quer dar conta da tarefa contida em seu slogan implica em adotar o mesmo grau de radicalidade. Há alternativas para a humanidade e um outro mundo é possível, mas para além do capital.
O esforço despendido por Meszáros para rejeitar o bordão fatalista se completa também com uma forte dimensão positiva e propositiva. Seu projeto não seria completo sem a desmistificação radical das aporias paralisantes do discurso do capital. O projeto inclui a afirmação de que o mercado não é a única forma possível de troca econômica entre os homens, que o planejamento não é sinônimo de burocracia stalinista, que a complexidade do sistema estabelecido de produção não é obstáculo intransponível para sua superação, que o egoísmo burguês constitui a anulação do homem, ao contrário da perspectiva do indivíduo social, etc..
Todas essas questões e muitas outras são enfrentadas com grande coragem e ânimo apaixonado. Não há neste livro nenhum subterfúgio teórico. Não há cartas na manga, sujeira jogada para debaixo do tapete, lacunas, elipses, omissões. Os problemas mais espinhosos e embaraçosos trazidos à tona pelo projeto socialista são abordados frontalmente e com franqueza. O livro não promete o paraíso da utopia, nem o purgatório do stalinismo, mas o sóbrio realismo de quem não ignora a magnitude assustadora das tarefas a serem enfrentadas.
A clareza, a objetividade e a transparência são qualidades salientes do texto de Meszáros, através das quais se revela também algo da pessoa do autor. Meszáros nasceu em 1930 e trabalhou como operário antes de se tornar aluno de filosofia de Lukács. Do operário que foi ele reteve as qualidades citadas da objetividade e da clareza. Embora sua obra seja complexa, seu vocabulário seja rico, sua lógica seja rigorosa, sua ambição teórica colossal, sua argumentação polêmica devastadora; o livro não resvala em nenhum momento de intelectualismo, pedantismo ou a arrogância. Ao contrário, inspira simpatia e entusiasmo e nos torna próximos de alguém que é na verdade apenas mais um de nós.
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“Para Além do Capital” não é somente o livro mais importante a ser lido neste mundo que transita para o século XXI, por força de seu conteúdo, mas é também o texto mais bem escrito sobre o qual este escriba pôs os olhos, e não foram poucos nesses 28 anos de vida. Algo precisa ser dito sobre o aspecto formal, estilístico, do livro de Meszáros. Seu estilo é de uma precisão absoluta no uso das palavras.
Sua linguagem é exata, quase mecânica. O texto evidencia os traços de algo que foi revisto e reescrito inúmeras vezes ao longo de vários anos. Um texto elaborado, reelaborado, repensado, rearticulado, enriquecido, refinado, aperfeiçoado, ajustado à exaustão. Um texto que funciona como uma engrenagem, em que não há peça fora do lugar. O uso que faz dos adjetivos para determinar, qualificar, precisar, capturar cada objeto, é qualquer coisa de extraordinário.
Diz-se que a qualidade que identifica o gênio, em qualquer campo de atividade humana, é a capacidade de fazer parecer aos outros que é fácil fazer aquilo que ele faz. A facilidade, a fluência, a simplicidade com que Meszáros expõe seus argumentos enquadram-no como um gênio deste tipo. Por mais complexo que seja o tema e mais tortuoso o objeto, o autor nunca o perde de vista, e o leitor pode acompanhá-lo sem problemas. Por mais que seu vocabulário seja vasto e abrangente, a clareza e a acessibilidade do texto nunca são descuidados.
O resultado é que parece-nos fácil enxergar o que o autor enxerga e desembaraçar-se dos obstáculos com a mesma segurança com que ele o faz. Sua lógica é irretorquível, sua argumentação é avassaladora. Os adversários teóricos, de Weber a Hayek, passando por dezenas de apologetas do Capital, são demolidos um a um, com uso abundante de citações, de exemplos, de estatísticas, de excertos da imprensa, nos quais as contradições do sistema aparecem de maneira clamorosa pela voz de seus próprios defensores. Meszáros não deixa pedra sobre pedra de seus adversários. Mesmo porque, seus sistemas teóricos são expostos como frágeis castelos de cartas, que não se sustentam sobre a base contraditória do próprio funcionamento do capitalismo e sua história de crises e tragédias.
Apesar da dureza do tema, o texto não se torna em nenhum momento pesado maçante, repetitivo, lento. A divisão dos capítulos, seções e subtítulos torna-o leve, didático, esquemático, acessível. Não faltam ainda a esse texto as qualidades do humor, da ironia, do sarcasmo, temperados por uma sóbria elegância, por uma sábia serenidade, e impulsionados por uma irresistível paixão combativa e militante.
A esse respeito, cabe por último destacar a excelência da tradução da edição brasileira, executada por Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa, praticamente sem falhas, capaz de reter o espírito e o sabor da prosa de Meszáros.
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Para finalizar este comentário, e reiterar o que talvez não tenha sido dito com ênfase suficiente, digo que, se em lugar de todos os modestos esforços desenvolvidos sob a forma de textos publicados neste espaço virtual, me fosse dado expressar uma única idéia, esta seria a de insistir para que este livro fosse lido e debatido, e com isso este escriba consideraria cumprido seu propósito.
Daniel M. Delfino
24/07/2004
Coube ao seu discípulo, István Meszáros, tomar a si o desafio. Depois de participar do levante anti-stalinista húngaro de 1956, brutalmente reprimido, Meszáros exilou-se na Inglaterra, ao contrário de seu mestre. Lukács optou por permanecer na Hungria e continuar enfrentando a censura cerrada do Partido, que o perseguiria quase até o fim da vida. Na Inglaterra, Meszáros tornou-se próximo de intelectuais como o historiador Isaac Deutscher, biógrafo de Trotsky, e Eric Hobsbawm, legenda da esquerda britânica e mundial, ainda hoje atuante.
Ao longo de 25 anos, o discípulo de Lukács desenvolveu uma importante obra filosófica, com obras de peso, como “Marx, Teoria da Alienação” e “O Poder da Ideologia”. Mas dedicava-se também paralelamente ao projeto cuja urgência fora assinalada por seu mestre de maneira tão pungente. “O Capital” de Marx precisava ser reescrito. Essa necessidade mostra-se ainda mais urgente quando se atenta para o fato de que o próprio “Capital”, o livro original, é um projeto inacabado.
Marx nunca pôde finalizar para publicação a grande maioria de suas obras. Talvez apenas o “Manifesto Comunista”, escrito com Engels, e o primeiro volume d’“O Capital” tenham se tornado conhecidos do grande público durante o tempo de duração da vida do autor. A maior parte de sua obra filosófica permaneceu, como ele mesmo costumava dizer, “entregue à crítica roedora dos ratos”. Manuscritos que continham textos fundamentais amarelaram no fundo dos baús, para somente serem estudados a partir de 1930. Alguns dos quais, graças a Gyorgy Lukács.
Seja como for, do projeto original d’“O Capital”, apenas os três primeiros livros foram terminados, sendo que o segundo e o terceiro o foram por Engels. Muitas questões, especialmente relativas às classes sociais e ao Estado, não puderam ser tratadas por Marx. Questões que apareceriam posteriormente sob a forma de dificuldades práticas quase intransponíveis para seus seguidores no século XX, não surgiram no horizonte da empreitada marxiana. Sua obra, datada do século XIX, necessitava portanto de uma urgente atualização, a fim de que o seu sistema teórico pudesse ser enriquecido com os novos nexos categoriais tornados explícitos pelo desenvolvimento do complexo totalizador do capital no século XX.
Meszáros dedicou-se a essa tarefa de atualização, ao longo desses 25 anos, oferecendo como resultado o monumental “Beyond Capital”, publicado na Inglaterra em 1995. Seria preciso esperar 7 anos para que o livro fosse publicado no Brasil, pela Boitempo Editorial, com o título de “Para além do Capital”.
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Este escriba guarda pouca lembrança da palestra proferida por Meszáros no anfiteatro da PUC- SP, quando de sua vinda ao Brasil para a divulgação do livro. Tão pouca que não se lembra exatamente do ano, se 1996 ou 1997. Lembra-se apenas de que nunca havia estado na PUC, de que não sabia qual condução tomar para chegar lá, muito menos para voltar. Lembra-se de que foi salvo por uma carona até o metrô Paraíso, para onde fui levado por um grupo de colegas do curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André.
Ao tomar o ônibus de volta para a Zona Leste, naquela gélida noite, a única coisa que guardei da palestra foi a necessidade de um dia adquirir o livro, tão logo “Beyond Capital” tivesse uma edição brasileira. Queria conferir por mim mesmo se o discípulo de Lukács estivera à altura do desafio a que se propusera, de reescrever “O Capital”. Desempregado e sem perspectivas, a aquisição de um livro desse porte era para mim na época uma utopia inalcançável. Mesmo hoje, precariamente empregado, a aquisição do tal livro não se fez sem sacrifícios. Depois de anos de luta contra dificuldades materiais de todos os tipos, finalmente o precioso exemplar de “Para Além do Capital” me chega às mãos, no início de 2003.
Mas eis que então uma espécie de temor supersticioso me domina. Como se eu estivesse diante da própria Bíblia. O livro, um alentado volume de 1.100 páginas, me pareceu, naquele momento, importante demais para ser lido “de qualquer jeito”. As primeiras olhadas de relance sobre o conteúdo fazem com que eu desista de lê-lo por algum tempo. Me parecia então que um tal livro deveria ser lido e estudado com cuidado. Me parecia que a tarefa de estudar uma obra dessa importância deveria exigir uma espécie de “ano sabático”, um período longo de dedicação exclusiva.
O advento deste ano de 2004 me faz mudar de idéia. Não porque eu tenha ficado mais desocupado, mas porque ao contrário, assumi uma tal variedade de tarefas que a leitura do livro ficaria adiada para sempre. Percebi que nunca conseguiria me livrar de tais tarefas e responsabilidades. Ocupado ou não eu teria que ler o livro de qualquer jeito. Mas não “de qualquer jeito”. Seria preciso achar tempo, e ter paciência. Assim, depois de decorridos seis meses do início do projeto, em sessões semanais de 1 hora de leitura, a tarefa está terminada. E começa o trabalho de falar sobre o livro.
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Constituiria uma violência inadmissível da parte deste escriba a pretensão de “resumir” um livro tão importante, tão denso, tão maciço, no espaço de uma resenha a ser publicada num blog. Mesmo a tentativa de “sintetizar” os “conceitos principais” de um livro assim complexo, abrangente, múltiplo, parece-me ainda uma idéia criminosa. Apesar disso, é preciso de alguma maneira indicar o fio condutor por meio do qual o labirinto teórico de Meszáros pode ser decifrado. Esse fio condutor já está dado a meu ver no próprio título do livro.
O título “Para Além do Capital” remete, obviamente, à obra de Marx, intitulada “O Capital”. E o faz num duplo sentido. É preciso ir além da própria obra de Marx, o livro “O Capital”, e ir além do complexo de relações sociais, do capital que como sistema totalizador de intercâmbio submete a si o metabolismo sócio-reprodutivo da humanidade. Ir além do capital significa dizer que a obra de Marx não se destina a descrever e combater o capitalismo, mas descrever e combater o capital.
Existe uma diferença muito grande entre combater o capitalismo e combater o capital. O capitalismo é o sistema sob o qual o capital se desenvolve plenamente. Mas não é o primeiro nem o único em que o capital se manifesta na história. Antes e depois do capitalismo, houve formas de capital. O sistema soviético era um sistema pós-capitalista de capital. E no que consiste então esse capital cuja estrutura subjaz a formações histórico-sociais pré e pós-capitalistas?
A relação-capital se constitui de três componentes: o capital propriamente dito, o trabalho assalariado e o Estado. Pode-se derrubar qualquer um desses pilares do sistema, ou até mesmo dois, mas se apenas um deles restar, o sistema se reconstituirá por força de sua própria dinâmica inercial interna. A Revolução de Outubro na Rússia derrubou o capitalismo, mas não aboliu o capital, nem o Estado. O dado fundamental que explica o fracasso do sistema soviético é o fato de que este não superou a subordinação estrutural do trabalho, pois submeteu os trabalhadores a um processo de extração de mais-valia politicamente mediado, através de um Estado hipostasiado.
A tentativa de implantar o socialismo sem devolver aos trabalhadores o poder de tomada de decisões substantivas sobre o processo econômico e político só poderia resultar em fracasso. É nesse sentido que o projeto de ir além do capital significa transformar a sociedade por inteiro, de cima abaixo. O projeto de Meszáros portanto é radical no sentido forte da palavra, pois não admite em hipótese alguma a conciliação com a ordem existente. Tanto a esquerda stalinista como a social-democrata conduzem a becos sem-saída, pois não assumem a tarefa essencial de tornar os trabalhadores os sujeitos de fato de sua vida social.
Abolir o capital, o Estado e o trabalho assalariado significa que a humanidade deve tomar a si, de maneira racional, a direção de seu sócio-metabolismo. O termo sócio-metabolismo, da lavra de Meszáros, empresta uma nova profundidade ao conceito marxista de modo de produção. Ele implica reconhecer o fato fundamental de que o homem depende de uma relação metabólica com a natureza para sobreviver. Essa relação é sempre socialmente mediada, por instituições como a família, o Estado, o mercado, etc., e outras historicamente mutáveis formas de articulação.
O capital, como forma de articulação do metabolismo social, mostra-se extremamente ineficiente, perdulário e destrutivo. O sistema do capital imobiliza fortunas incomensuráveis em produtos absolutamente inúteis, na verdade destrutivos, como os do complexo industrial-militar. Do ponto de vista do capital, produção e destruição se equivalem. Não importa que os produtos do trabalho não sejam de fato consumidos. Aliás, o ideal é que eles não sejam. O capital depende de uma taxa de utilização decrescente dos produtos, para continuar produzindo mais, desperdiçando recursos, fazendo girar seu circuito de acumulação.
A produção capitalista de mercadorias não é apenas destrutiva, como é ambientalmente insustentável. A dimensão da luta ecológica é incorporada por Meszáros à agenda socialista, mas de modo a torná-la realmente significativa. O discurso ecológico não faz sentido se não contemplar a necessidade de reestruturar o sistema de produção sob a direção de um imperativo racional de gestão dos recursos finitos do planeta, tarefa que o capital, com sua espiral expansiva de desperdício, não é capaz de desempenhar.
Da mesma forma a luta pela emancipação das mulheres não pode adquirir significado sob a base de um sistema social baseado na atomização e na competição entre os indivíduos, seja de qual sexo forem. Isso significa que não pode haver uma igualdade substantiva entre os sexos a não ser num sistema sócio-reprodutivo que esteja baseado na organização racional e planejada das atividades humanas.
Problemas como o da ecologia, o da emancipação feminina, o desemprego, o poder do complexo industrial-militar, são debatidos com vigor e propriedade em “Para Além do Capital”. É preciso portanto acrescentar que o livro não é um novo “Capital”, no sentido de que não aborda novamente os mecanismos do modo de produção capitalista tratados por Marx. Não há uma descrição da mecânica da acumulação do capital, da mais-valia, etc.. Esse conhecimento já é dado como pressuposto.
O livro portanto não cumpre a promessa de reescrever “O Capital”. Mas não é esse o objetivo. O projeto é ainda maior. Trata-se de superar “O Capital”, no sentido dialético de superação. Superar significa, triplamente, destruir, conservar e ultrapassar o objeto superado. A obra original de Marx é substituída, conservada e ultrapassada por uma nova realização teórica que corresponde ao espírito de seu projeto. Não há portanto aqui uma nova e desnecessária exposição do mecanismo do capital. Há sim uma descrição das deficiências fatais do sistema capitalista e da urgência de substituí-lo, sob pena de condenar a humanidade à perpetuação da barbárie. Descrição enriquecida pelo enfrentamento do autor com as desnorteantes experiências do século XX.
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O livro de Meszáros traz evidentemente a marca do lugar e da época em que foi escrito. A Inglaterra da era Tatcher foi o cenário de sua confecção. Friedrich Hayek, o papa do neoliberalismo e “Companion of honour” de Miss Tatcher, é o adversário teórico preferencial, pulverizado de maneira avassaladora. Tatcher foi apelidada de TINA, sigla formada com as iniciais da frase “there is no alternative”, ou seja, “não há alternativa”, por repetir exaustivamente esse bordão. No discurso neoliberal, não há alternativa ao capital. Eis uma idéia que Meszáros se recusa a aceitar.
A negação radical do discurso fatalista do capital faz de Meszáros o precursor da idéia expressa no “slogan” do movimento do Fórum Social Mundial. A idéia de que “um outro mundo é possível” constitui o exato oposto do “não há alternativa”. O que justifica a nossa escolha desta frase para o título deste comentário. Meszáros é um precursor da idéia expressa pelo FSM. Podemos mesmo considerá-lo um profeta do movimento. Negar radicalmente o capital como ele o faz significa evidentemente dizer que um outro mundo é possível. Se o movimento do FSM quer dar conta da tarefa contida em seu slogan implica em adotar o mesmo grau de radicalidade. Há alternativas para a humanidade e um outro mundo é possível, mas para além do capital.
O esforço despendido por Meszáros para rejeitar o bordão fatalista se completa também com uma forte dimensão positiva e propositiva. Seu projeto não seria completo sem a desmistificação radical das aporias paralisantes do discurso do capital. O projeto inclui a afirmação de que o mercado não é a única forma possível de troca econômica entre os homens, que o planejamento não é sinônimo de burocracia stalinista, que a complexidade do sistema estabelecido de produção não é obstáculo intransponível para sua superação, que o egoísmo burguês constitui a anulação do homem, ao contrário da perspectiva do indivíduo social, etc..
Todas essas questões e muitas outras são enfrentadas com grande coragem e ânimo apaixonado. Não há neste livro nenhum subterfúgio teórico. Não há cartas na manga, sujeira jogada para debaixo do tapete, lacunas, elipses, omissões. Os problemas mais espinhosos e embaraçosos trazidos à tona pelo projeto socialista são abordados frontalmente e com franqueza. O livro não promete o paraíso da utopia, nem o purgatório do stalinismo, mas o sóbrio realismo de quem não ignora a magnitude assustadora das tarefas a serem enfrentadas.
A clareza, a objetividade e a transparência são qualidades salientes do texto de Meszáros, através das quais se revela também algo da pessoa do autor. Meszáros nasceu em 1930 e trabalhou como operário antes de se tornar aluno de filosofia de Lukács. Do operário que foi ele reteve as qualidades citadas da objetividade e da clareza. Embora sua obra seja complexa, seu vocabulário seja rico, sua lógica seja rigorosa, sua ambição teórica colossal, sua argumentação polêmica devastadora; o livro não resvala em nenhum momento de intelectualismo, pedantismo ou a arrogância. Ao contrário, inspira simpatia e entusiasmo e nos torna próximos de alguém que é na verdade apenas mais um de nós.
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“Para Além do Capital” não é somente o livro mais importante a ser lido neste mundo que transita para o século XXI, por força de seu conteúdo, mas é também o texto mais bem escrito sobre o qual este escriba pôs os olhos, e não foram poucos nesses 28 anos de vida. Algo precisa ser dito sobre o aspecto formal, estilístico, do livro de Meszáros. Seu estilo é de uma precisão absoluta no uso das palavras.
Sua linguagem é exata, quase mecânica. O texto evidencia os traços de algo que foi revisto e reescrito inúmeras vezes ao longo de vários anos. Um texto elaborado, reelaborado, repensado, rearticulado, enriquecido, refinado, aperfeiçoado, ajustado à exaustão. Um texto que funciona como uma engrenagem, em que não há peça fora do lugar. O uso que faz dos adjetivos para determinar, qualificar, precisar, capturar cada objeto, é qualquer coisa de extraordinário.
Diz-se que a qualidade que identifica o gênio, em qualquer campo de atividade humana, é a capacidade de fazer parecer aos outros que é fácil fazer aquilo que ele faz. A facilidade, a fluência, a simplicidade com que Meszáros expõe seus argumentos enquadram-no como um gênio deste tipo. Por mais complexo que seja o tema e mais tortuoso o objeto, o autor nunca o perde de vista, e o leitor pode acompanhá-lo sem problemas. Por mais que seu vocabulário seja vasto e abrangente, a clareza e a acessibilidade do texto nunca são descuidados.
O resultado é que parece-nos fácil enxergar o que o autor enxerga e desembaraçar-se dos obstáculos com a mesma segurança com que ele o faz. Sua lógica é irretorquível, sua argumentação é avassaladora. Os adversários teóricos, de Weber a Hayek, passando por dezenas de apologetas do Capital, são demolidos um a um, com uso abundante de citações, de exemplos, de estatísticas, de excertos da imprensa, nos quais as contradições do sistema aparecem de maneira clamorosa pela voz de seus próprios defensores. Meszáros não deixa pedra sobre pedra de seus adversários. Mesmo porque, seus sistemas teóricos são expostos como frágeis castelos de cartas, que não se sustentam sobre a base contraditória do próprio funcionamento do capitalismo e sua história de crises e tragédias.
Apesar da dureza do tema, o texto não se torna em nenhum momento pesado maçante, repetitivo, lento. A divisão dos capítulos, seções e subtítulos torna-o leve, didático, esquemático, acessível. Não faltam ainda a esse texto as qualidades do humor, da ironia, do sarcasmo, temperados por uma sóbria elegância, por uma sábia serenidade, e impulsionados por uma irresistível paixão combativa e militante.
A esse respeito, cabe por último destacar a excelência da tradução da edição brasileira, executada por Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa, praticamente sem falhas, capaz de reter o espírito e o sabor da prosa de Meszáros.
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Para finalizar este comentário, e reiterar o que talvez não tenha sido dito com ênfase suficiente, digo que, se em lugar de todos os modestos esforços desenvolvidos sob a forma de textos publicados neste espaço virtual, me fosse dado expressar uma única idéia, esta seria a de insistir para que este livro fosse lido e debatido, e com isso este escriba consideraria cumprido seu propósito.
Daniel M. Delfino
24/07/2004
2 comentários:
Cadê o livro????
Tenho o livro salvo em formato pdf no meu computador e estou tentanto converter para o formato doc. Muitas pessoas estão me pedindo cópias do livro. Estou tentando encontrar maneiras de fazer com que as pessoas possam baixar, já que o arquivo é muito grande e parece difícil enviar por e-mail. Tentem contato pelo meu e-mail pessoal: tzitzimitl@terra.com.br Daniel
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