O espectador do filme “Olga” conhecerá Getúlio Vargas como o ditador que, num requinte de crueldade, manda a mulher judia de Prestes para a Alemanha nazista, onde encontrará morte certa num campo de concentração.
A exibição desse episódio no cinema coincide com o aniversário de 50 anos do suicídio de Getúlio, completados em Agosto último. A lembrança desse crime “queima o filme” de Vargas, no momento mesmo em que o cinqüentenário de sua morte poderia ensejar uma reflexão séria sobre o significado de sua passagem pela história brasileira. A carga emocional excessiva do filme impede porém a reflexão fria e condena inapelavelmente a memória do Presidente.
Evidentemente, o crime de Vargas aconteceu. Não se pretende aqui negar a realidade histórica desse fato. Nem relevar a importância desse gesto, encontrar alguma maneira de perdoar o ditador, em nome de alguma sofismática astúcia da razão histórica (como fez o próprio Prestes ao sair da prisão em 45). Estadistas do porte de Vargas cometem crimes, assim como realizam feitos heróicos. A História nunca é simples, nem linear e muito menos maniqueísta. Não há uma alternativa inequívoca para enquadrar uma figura como a de Getúlio, à maneira de um estereotipado personagem de cinema: herói ou vilão? Suas ações precisam ser analisadas segundo as conseqüências que geraram, seus acertos destacados assim como seus erros.
O caso de Getúlio é especialmente difícil de ser avaliado pelo fato de que o Presidente teve uma trajetória muito longa na história política do país, cultivando aliados e inimigos à esquerda e à direita, pretendendo governar acima das classes e de seus interesses, jogando com uns e com outros. O próprio Vargas disse que “nunca teve aliados com os quais não pudesse romper nem inimigos com os quais não pudesse se reconciliar.” Em função dessa amplitude de horizontes práticos, a memória de Getúlio é reivindicada tanto por nacionalistas de esquerda quanto por aqueles que o comparam ao fascismo.
Ao invés de destacar as contradições de sua figura, o movimento em curso no momento histórico atual tem muito mais o sentido de ressaltar os aspectos negativos da Era Vargas. De maneira unilateral, querem tratar Vargas como vilão. O que este escriba considera importante assinalar é a oportuna “coincidência” de se “festejar” o cinqüentenário do suicídio de Vargas com um filme que dramatiza um dos momentos mais negros de sua biografia.
Coincidência oportuna demais, conveniente demais para ser apenas coincidência, num momento em que está em curso a destruição do legado de Vargas. Ao mesmo tempo em que a imagem de Getúlio é “desconstruída” nas telas, sua obra política, social e econômica sofre o golpe de misericórdia do governo neoliberal de Lula. A última morte de Vargas é a inversão do populismo. O populismo histórico, que era um projeto de afirmação da nação, se converte em populismo demagógico neoliberal para encobrir a destruição do país.
Getúlio Vargas foi o representante brasileiro do fenômeno histórico do populismo latino-americano. Seus parentes próximos foram homens como Lázaro Cárdenas, do México, e Juan D. Perón, da Argentina. O populismo acontece quando um país da periferia do sistema internacional entra na rota acelerada da modernização capitalista, tensionando as formas tradicionais da dominação de classe e situando-as num novo patamar histórico.
A tentativa de modernizar o capitalismo periférico exige, nas circunstâncias próprias de cada país, deslocar a oligarquia patrimonialista tradicional associada ao grande capital internacional no negócio de exportação de “commodities”; em nome de um modelo de industrialização que contemple alguma medida de autonomização da economia nacional. Esse modelo exige integrar as classes trabalhadoras urbanas e criar um mercado consumidor capitalista interno.
Vargas foi o homem que realizou essas tarefas no Brasil, de forma tortuosa e acidentada. Entre os acidentes, podemos destacar as diversas formas institucionais pelas quais chegou à Presidência: Revolução em 1930, eleição indireta em 1934, golpe de Estado em 1937, eleição direta em 1950. Se ele soube encontrar várias maneiras de exercer o poder, seus adversários só puderam tirá-lo do governo pela força: deposição em 1945, suicídio em 1954. O suicídio de Vargas foi um martírio realizado em nome de sua causa política. Martírio que adiou por 10 anos o golpe que viria em 1964.
O vulto de suas realizações situam-no inequivocamente como o maior estadista da história brasileira. E quais são as realizações da modernização populista varguista? Criar um Estado nacional por meio da força política do governo da União; consolidar uma nacionalidade que vinha claudicante e fragmentada pelas oligarquias locais desde a Independência; forjar uma consciência cultural da identidade nacional por meio do rádio, do futebol, do carnaval; esboçar um projeto estratégico de economia nacional auto-suficiente materializado em exemplos como as estatais Petrobrás e CSN; são algumas de suas importantes realizações.
Mas essas realizações são geralmente eclipsadas por uma outra cujo mérito paradoxalmente não lhe cabe inteiramente: a legislação trabalhista. A CLT foi concedida por Vargas, indubitavelmente. Mas o seu caráter de concessão serve justamente para lhe dar um sentido histórico regressivo. As conquistas da CLT foram o resultado de uma trajetória de lutas do movimento operário brasileiro nas décadas de industrialização incipiente do começo do século. Dar a Vargas a autoria da legislação trabalhista significa negar ao proletariado então nascente a condição de sujeito político-social.
Essa negação ideológica é certamente resultado da estratégia do próprio Vargas. Ao aparecer como “doador” da CLT, o Presidente confirmava seu perfil de “pai dos pobres”, ao mesmo tempo em que excluía o proletariado da arena política. A política era e continuava sendo o território dos ricos, dos quais Vargas era a “mãe”. Apesar de dar concessões ao proletariado, Vargas se apoiava em setores da burguesia e não podia romper totalmente com as oligarquias. Precisava de todos para governar. Ou seja, a modernização trazida por Vargas era autoritária e conservadora. Antes, durante e depois de Vargas, o povo deve continuar sendo massa de manobra política, nunca sujeito de fato interveniente na História.
Vargas teve o mérito de perceber que essa massa de manobra precisa ser de alguma maneira cooptada por concessões econômicas materiais, para servir adequadamente aos propósitos do projeto modernizador que desejava implantar. Por meio dessas concessões, Vargas criou um esboço formal de classe operária capitalista moderna, um esboço de Estado de bem-estar social, um esboço de economia nacional autônoma e dotada de instrumentos estratégicos estatais, um esboço de serviço público; um esboço de país, enfim, que nunca veio a se completar.
O que exemplifica o caráter limitado desses esboços é o fato de as conquistas sociais jamais terem atingido o campo. A população rural continuou prisioneira das mesmas oligarquias centenárias de latifundiários associados ao capital estrangeiro. A modernização do país parou pela metade. O Brasil é o país do “quase”, onde quase acontece a revolução, quase se obtém a autonomia, quase se consegue completar a industrialização. Onde quase tudo fica pelo meio do caminho.
As concessões de Vargas ao projeto nacional, como a legislação social e os pilares das empresas estatais continuaram sendo por décadas o principal obstáculo para o setor político que se lhe opunha, as oligarquias tradicionais associadas ao capital estrangeiro. As concessões varguistas ao povo continuaram sendo necessárias para a estabilidade do sistema nos anos da ditadura de 1964, em que o governo militar precisava vivenciar a ilusão de que mantinha um projeto nacional desenvolvimentista capaz de unir todas as classes e isolar a ameaça comunista, no cenário da Guerra Fria.
Esses obstáculos não puderam ser removidos senão depois que a ameaça comunista se desfez e o capitalismo “triunfou” sob a forma de “globalização”. O projeto nacional deixou de ser a busca de autonomia para ser a “inserção no processo de globalização”. As estruturas econômico-sociais do Estado brasileiro podem ser alegremente desfeitas, para gáudio da finança internacional. Essa operação de saque precisa ser de alguma maneira racionalizada para se tornar ideologicamente aceitável. A perspectiva de racionalização se dá a partir da idéia de modernização.
Mas não se trata de uma modernização populista e sim neoliberal. Essa modernização neoliberal utiliza um expediente semelhante ao do populismo, mas com sinal histórico invertido. Se o populismo fazia concessões às classes trabalhadoras urbanas para pressionar as elites tradicionais, a demagogia neoliberal faz “reformas” e arranca direitos aos trabalhadores para conceder regalias às elites coloniais do século XXI. Ao invés de uma modernização, temos uma regressão.
Os servidores públicos, as empresas estatais, os direitos trabalhistas, os aposentados, as universidades públicas, tudo o que constituía o eixo de uma sociedade organizada e estrategicamente articulada com vistas a uma possível perspectiva de autonomia; se transforma em custo a ser sumariamente cortado do orçamento público. Em lugar de uma sociedade articulada, o Estado neoliberal prefere lidar com uma massa pauperizada a ser domesticada por meio de políticas assistencialistas compensatórias (Fome Zero). A pirâmide social é remodelada e nivelada por baixo.
O discurso que justifica a destruição das articulações societais defensivas (reformas da previdência, universitária, sindical, etc.) é o discurso do fim dos privilégios. Os trabalhadores com carteira assinada, os estudantes de universidades públicas, os aposentados são “privilegiados”. Contra eles, a mídia cria um ódio orquestrado, fazendo com que a massa pauperizada e excluída os odeie por serem “privilegiados”. Com isso, o Estado neoliberal demagógico consegue a justificativa para dissolver as estatais, as universidades públicas, a previdência social, os direitos trabalhistas, etc. Ou seja, todo o legado de Vargas.
O país se vê assim reduzido à condição de massa de indivíduos atomizados contrapostos no mercado capitalista selvagem, sem garantias e desregulado. A versão século XXI da Casa Grande e da Senzala. Na utopia neoliberal à brasileira, temos uma massa miserável a servir como exército industrial de reserva para uma elite de gerentes de empreendimentos transnacionais que mercadejam os recursos naturais estratégicos do país. É esse pesadelo que se esconde por trás do modelo exportador, das maquiladoras mexicanas ao “agronegócio” brasileiro: a recolonização da América Latina.
Mas tudo isso é apresentado demagogicamente como “modernização”, para que o povo compre a idéia. A demagogia neoliberal adota esse discurso de fim dos “privilégios” para destruir as conquistas da sociedade organizada e agradar tanto aos instintos da massa excluída e desorganizada abaixo do proletariado como da elite “cosmopolita” acima da classe média. Tanto o proletariado quanto a classe média (pequena burguesia) são vítimas desse modelo desagregador, ao contemplarem a destruição das instituições e serviços públicos que lhes garantiam um mínimo de cidadania.
Entretanto, o proletariado e pequena burguesia no Brasil nunca falaram a mesma língua politicamente. A pequena burguesia sempre foi caudatária da grande burguesia, a classe média sempre pretendeu ser rica e se apartar dos pobres. A sociedade brasileira nunca foi vista como terreno comum de interesse de ambos. O poder tem que ser exercido pelos que entendem. A demagogia neoliberal joga com o ódio dos pobres aos incluídos e com a ilusão da classe média de pertencer ao mundo dos ricos.
Quando essa ilusão se esgota (depois de dois mandatos de FHC) e os dois setores sociais (proletariado e classe média) encontram um denominador comum na candidatura de Lula, esta já se encontra completamente degenerada em seu oposto. O partido dos trabalhadores despreza o legado varguista e põe em prática a mesma demagogia neoliberal de seu antecessor. Assassinando Vargas mais uma vez.
Daniel M. Delfino
01/09/2004
A exibição desse episódio no cinema coincide com o aniversário de 50 anos do suicídio de Getúlio, completados em Agosto último. A lembrança desse crime “queima o filme” de Vargas, no momento mesmo em que o cinqüentenário de sua morte poderia ensejar uma reflexão séria sobre o significado de sua passagem pela história brasileira. A carga emocional excessiva do filme impede porém a reflexão fria e condena inapelavelmente a memória do Presidente.
Evidentemente, o crime de Vargas aconteceu. Não se pretende aqui negar a realidade histórica desse fato. Nem relevar a importância desse gesto, encontrar alguma maneira de perdoar o ditador, em nome de alguma sofismática astúcia da razão histórica (como fez o próprio Prestes ao sair da prisão em 45). Estadistas do porte de Vargas cometem crimes, assim como realizam feitos heróicos. A História nunca é simples, nem linear e muito menos maniqueísta. Não há uma alternativa inequívoca para enquadrar uma figura como a de Getúlio, à maneira de um estereotipado personagem de cinema: herói ou vilão? Suas ações precisam ser analisadas segundo as conseqüências que geraram, seus acertos destacados assim como seus erros.
O caso de Getúlio é especialmente difícil de ser avaliado pelo fato de que o Presidente teve uma trajetória muito longa na história política do país, cultivando aliados e inimigos à esquerda e à direita, pretendendo governar acima das classes e de seus interesses, jogando com uns e com outros. O próprio Vargas disse que “nunca teve aliados com os quais não pudesse romper nem inimigos com os quais não pudesse se reconciliar.” Em função dessa amplitude de horizontes práticos, a memória de Getúlio é reivindicada tanto por nacionalistas de esquerda quanto por aqueles que o comparam ao fascismo.
Ao invés de destacar as contradições de sua figura, o movimento em curso no momento histórico atual tem muito mais o sentido de ressaltar os aspectos negativos da Era Vargas. De maneira unilateral, querem tratar Vargas como vilão. O que este escriba considera importante assinalar é a oportuna “coincidência” de se “festejar” o cinqüentenário do suicídio de Vargas com um filme que dramatiza um dos momentos mais negros de sua biografia.
Coincidência oportuna demais, conveniente demais para ser apenas coincidência, num momento em que está em curso a destruição do legado de Vargas. Ao mesmo tempo em que a imagem de Getúlio é “desconstruída” nas telas, sua obra política, social e econômica sofre o golpe de misericórdia do governo neoliberal de Lula. A última morte de Vargas é a inversão do populismo. O populismo histórico, que era um projeto de afirmação da nação, se converte em populismo demagógico neoliberal para encobrir a destruição do país.
Getúlio Vargas foi o representante brasileiro do fenômeno histórico do populismo latino-americano. Seus parentes próximos foram homens como Lázaro Cárdenas, do México, e Juan D. Perón, da Argentina. O populismo acontece quando um país da periferia do sistema internacional entra na rota acelerada da modernização capitalista, tensionando as formas tradicionais da dominação de classe e situando-as num novo patamar histórico.
A tentativa de modernizar o capitalismo periférico exige, nas circunstâncias próprias de cada país, deslocar a oligarquia patrimonialista tradicional associada ao grande capital internacional no negócio de exportação de “commodities”; em nome de um modelo de industrialização que contemple alguma medida de autonomização da economia nacional. Esse modelo exige integrar as classes trabalhadoras urbanas e criar um mercado consumidor capitalista interno.
Vargas foi o homem que realizou essas tarefas no Brasil, de forma tortuosa e acidentada. Entre os acidentes, podemos destacar as diversas formas institucionais pelas quais chegou à Presidência: Revolução em 1930, eleição indireta em 1934, golpe de Estado em 1937, eleição direta em 1950. Se ele soube encontrar várias maneiras de exercer o poder, seus adversários só puderam tirá-lo do governo pela força: deposição em 1945, suicídio em 1954. O suicídio de Vargas foi um martírio realizado em nome de sua causa política. Martírio que adiou por 10 anos o golpe que viria em 1964.
O vulto de suas realizações situam-no inequivocamente como o maior estadista da história brasileira. E quais são as realizações da modernização populista varguista? Criar um Estado nacional por meio da força política do governo da União; consolidar uma nacionalidade que vinha claudicante e fragmentada pelas oligarquias locais desde a Independência; forjar uma consciência cultural da identidade nacional por meio do rádio, do futebol, do carnaval; esboçar um projeto estratégico de economia nacional auto-suficiente materializado em exemplos como as estatais Petrobrás e CSN; são algumas de suas importantes realizações.
Mas essas realizações são geralmente eclipsadas por uma outra cujo mérito paradoxalmente não lhe cabe inteiramente: a legislação trabalhista. A CLT foi concedida por Vargas, indubitavelmente. Mas o seu caráter de concessão serve justamente para lhe dar um sentido histórico regressivo. As conquistas da CLT foram o resultado de uma trajetória de lutas do movimento operário brasileiro nas décadas de industrialização incipiente do começo do século. Dar a Vargas a autoria da legislação trabalhista significa negar ao proletariado então nascente a condição de sujeito político-social.
Essa negação ideológica é certamente resultado da estratégia do próprio Vargas. Ao aparecer como “doador” da CLT, o Presidente confirmava seu perfil de “pai dos pobres”, ao mesmo tempo em que excluía o proletariado da arena política. A política era e continuava sendo o território dos ricos, dos quais Vargas era a “mãe”. Apesar de dar concessões ao proletariado, Vargas se apoiava em setores da burguesia e não podia romper totalmente com as oligarquias. Precisava de todos para governar. Ou seja, a modernização trazida por Vargas era autoritária e conservadora. Antes, durante e depois de Vargas, o povo deve continuar sendo massa de manobra política, nunca sujeito de fato interveniente na História.
Vargas teve o mérito de perceber que essa massa de manobra precisa ser de alguma maneira cooptada por concessões econômicas materiais, para servir adequadamente aos propósitos do projeto modernizador que desejava implantar. Por meio dessas concessões, Vargas criou um esboço formal de classe operária capitalista moderna, um esboço de Estado de bem-estar social, um esboço de economia nacional autônoma e dotada de instrumentos estratégicos estatais, um esboço de serviço público; um esboço de país, enfim, que nunca veio a se completar.
O que exemplifica o caráter limitado desses esboços é o fato de as conquistas sociais jamais terem atingido o campo. A população rural continuou prisioneira das mesmas oligarquias centenárias de latifundiários associados ao capital estrangeiro. A modernização do país parou pela metade. O Brasil é o país do “quase”, onde quase acontece a revolução, quase se obtém a autonomia, quase se consegue completar a industrialização. Onde quase tudo fica pelo meio do caminho.
As concessões de Vargas ao projeto nacional, como a legislação social e os pilares das empresas estatais continuaram sendo por décadas o principal obstáculo para o setor político que se lhe opunha, as oligarquias tradicionais associadas ao capital estrangeiro. As concessões varguistas ao povo continuaram sendo necessárias para a estabilidade do sistema nos anos da ditadura de 1964, em que o governo militar precisava vivenciar a ilusão de que mantinha um projeto nacional desenvolvimentista capaz de unir todas as classes e isolar a ameaça comunista, no cenário da Guerra Fria.
Esses obstáculos não puderam ser removidos senão depois que a ameaça comunista se desfez e o capitalismo “triunfou” sob a forma de “globalização”. O projeto nacional deixou de ser a busca de autonomia para ser a “inserção no processo de globalização”. As estruturas econômico-sociais do Estado brasileiro podem ser alegremente desfeitas, para gáudio da finança internacional. Essa operação de saque precisa ser de alguma maneira racionalizada para se tornar ideologicamente aceitável. A perspectiva de racionalização se dá a partir da idéia de modernização.
Mas não se trata de uma modernização populista e sim neoliberal. Essa modernização neoliberal utiliza um expediente semelhante ao do populismo, mas com sinal histórico invertido. Se o populismo fazia concessões às classes trabalhadoras urbanas para pressionar as elites tradicionais, a demagogia neoliberal faz “reformas” e arranca direitos aos trabalhadores para conceder regalias às elites coloniais do século XXI. Ao invés de uma modernização, temos uma regressão.
Os servidores públicos, as empresas estatais, os direitos trabalhistas, os aposentados, as universidades públicas, tudo o que constituía o eixo de uma sociedade organizada e estrategicamente articulada com vistas a uma possível perspectiva de autonomia; se transforma em custo a ser sumariamente cortado do orçamento público. Em lugar de uma sociedade articulada, o Estado neoliberal prefere lidar com uma massa pauperizada a ser domesticada por meio de políticas assistencialistas compensatórias (Fome Zero). A pirâmide social é remodelada e nivelada por baixo.
O discurso que justifica a destruição das articulações societais defensivas (reformas da previdência, universitária, sindical, etc.) é o discurso do fim dos privilégios. Os trabalhadores com carteira assinada, os estudantes de universidades públicas, os aposentados são “privilegiados”. Contra eles, a mídia cria um ódio orquestrado, fazendo com que a massa pauperizada e excluída os odeie por serem “privilegiados”. Com isso, o Estado neoliberal demagógico consegue a justificativa para dissolver as estatais, as universidades públicas, a previdência social, os direitos trabalhistas, etc. Ou seja, todo o legado de Vargas.
O país se vê assim reduzido à condição de massa de indivíduos atomizados contrapostos no mercado capitalista selvagem, sem garantias e desregulado. A versão século XXI da Casa Grande e da Senzala. Na utopia neoliberal à brasileira, temos uma massa miserável a servir como exército industrial de reserva para uma elite de gerentes de empreendimentos transnacionais que mercadejam os recursos naturais estratégicos do país. É esse pesadelo que se esconde por trás do modelo exportador, das maquiladoras mexicanas ao “agronegócio” brasileiro: a recolonização da América Latina.
Mas tudo isso é apresentado demagogicamente como “modernização”, para que o povo compre a idéia. A demagogia neoliberal adota esse discurso de fim dos “privilégios” para destruir as conquistas da sociedade organizada e agradar tanto aos instintos da massa excluída e desorganizada abaixo do proletariado como da elite “cosmopolita” acima da classe média. Tanto o proletariado quanto a classe média (pequena burguesia) são vítimas desse modelo desagregador, ao contemplarem a destruição das instituições e serviços públicos que lhes garantiam um mínimo de cidadania.
Entretanto, o proletariado e pequena burguesia no Brasil nunca falaram a mesma língua politicamente. A pequena burguesia sempre foi caudatária da grande burguesia, a classe média sempre pretendeu ser rica e se apartar dos pobres. A sociedade brasileira nunca foi vista como terreno comum de interesse de ambos. O poder tem que ser exercido pelos que entendem. A demagogia neoliberal joga com o ódio dos pobres aos incluídos e com a ilusão da classe média de pertencer ao mundo dos ricos.
Quando essa ilusão se esgota (depois de dois mandatos de FHC) e os dois setores sociais (proletariado e classe média) encontram um denominador comum na candidatura de Lula, esta já se encontra completamente degenerada em seu oposto. O partido dos trabalhadores despreza o legado varguista e põe em prática a mesma demagogia neoliberal de seu antecessor. Assassinando Vargas mais uma vez.
Daniel M. Delfino
01/09/2004
Um comentário:
Adorei!
Amo política, bastante compreensível.
(Estou anônima porque não tenho blog, mas sou Taís)
tais_simoes@oi.com.br
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