29.5.07

O capitalismo-catástrofe e o feitiço contra o feiticeiro




Qual a possível relação entre os atentados de 11/09/2001 e a tragédia provocada pelo furacão Katrina em setembro de 2005? Aparentemente, apenas o fato de que ambos aconteceram no território dos Estados Unidos. Para além das aparências, existe porém uma complexa articulação de tendências e contratendências que dialeticamente determinam a tortuosa relação entre os dois fenômenos, sinistramente característicos da ordem mundial atualmente em vigor.

Começando do começo. Os atentados de 11/09 encontraram os Estados Unidos no auge de uma conjuntura de desaceleração econômica. Todos os índices de produção industrial estavam em queda, assim como os índices das bolsas de valores, enquanto o desemprego aumentava. A longa expansão da década de 1990, puxada pela chamada “Nova Economia” das empresas de alta tecnologia e pontocom fajutas estava se encerrando em uma recessão dramática, com o risco de transformar-se em depressão global.

Diante desse cenário, o governo Bush recém-empossado tratou de por em prática uma nova doutrina geopolítica destinada a afirmar agressivamente a posição de liderança da economia estadunidense no cenário mundial, dispensando unilateralmente a colaboração com os demais grandes centros do capitalismo, bem como com quaisquer instâncias de regulação internacional que ousassem impor restrições aos interesses do “big business”.

Essa postura aparecia então como arrogante e antipática, mas ainda não se tinha clareza de quão mortalmente nefasta ela se mostraria nos anos seguintes. É preciso lembrar que, em meados de 2001, o “big business” estava na defensiva, e seus líderes políticos, em nível global, estavam totalmente desmoralizados, em face da maré montante de protestos dos movimentos agrupados sob a insuficiente definição de “antiglobalização”. As reuniões de cúpula dos organismos internacionais não transcorriam sem que fossem acossadas por multitudinários protestos nas ruas. Na repressão a esses protestos, morreu o ativista italiano Carlo Giuliani, imediatamente transformado em mártir do “movimento antiglobalização”. As mega-corporações e seus funcionários no Estado estavam numa clara situação de inferioridade moral em relação aos seus contestadores.

Para reverter essa situação e viabilizar a nova doutrina do unilateralismo agressivo estadunidense, seria preciso um evento de grandes proporções capaz de catalisar a anuência da opinião pública nacional e internacional para essa política. Para produzir esse evento, os homens de Bush mobilizaram providencialmente, nas cavernas do Afeganistão, o agente da CIA Osama bin Laden. O qual, sem muita dificuldade, recrutou no fértil terreno do empobrecido e conflituoso Oriente Médio meia dúzia de fanáticos dispostos a dar a vida para destruir o grande satã.

Graças aos bons serviços prestados por Osama, foi possível a Bush pronunciar a ousada sentença: “quem não está conosco está contra nós”, erigindo em imperativo geopolítico aparentemente inquestionável uma falsa disjuntiva entre paz e terrorismo, civilização e barbárie, ocidente e oriente. Os atentados do 11/09 foram o “incêndio do Reichstag” de Bush. Um ato terrorista evidentemente forjado e cinematograficamente arquitetado para legitimar a política de repressão interna e externa. O objetivo final foi alcançado com desconcertante facilidade, sendo desencadeada uma campanha de guerras e invasões sob encomenda para revitalizar a indústria armamentista estadunidense e com ela o conjunto da economia.

Depois dos atentados, transformados artificialmente em divisor de águas da história contemporânea, pôs-se em marcha a formidável máquina ideológica da “guerra ao terror”, canhestramente secundada por seu desastrado mecanismo militar. Na falta de um adversário de porte ideológico e material consistente como fora a União Soviética durante a Guerra Fria, forjou-se a partir do nada um inimigo conveniente por meio da expertise combinada de Hollywood e da TV. Iniciou-se uma guerra que não pode ser terminada, já que não se pode nunca saber quando “os terroristas” terão sido “definitivamente derrotados”. Não se pode jamais baixar a guarda, sob o risco de um novo 11/09. A todo o momento o fantasma da Al Qaeda reaparece na TV, na hora do jantar, reavivando os “Dois Minutos de Ódio”.

Nada poderia ser mais conveniente para os sócios de Bush na indústria armamentista e petrolífera. Depois da invasão punitiva ao Afeganistão, que trouxe de quebra o controle sobre as rotas do gás natural na Ásia Central, veio a “guerra preventiva” contra os integrantes do “eixo do mal”. Primeira parada: Iraque.

A guerra teve o efeito de reaquecer temporariamente a economia, mas a um custo político quase insuportável. Bush teve que se revestir dos paramentos do ungido de Deus contra o aborto, o homossexualismo e a clonagem para derrotar nas renhidas eleições de 2004 o opositor democrata Kerry, o qual, diga-se de passagem, não tinha uma receita muito diferente para o beco sem saída em que o país havia se metido. A indústria armamentista e petrolífera seguiu faturando. Mas os ganhos, como era de se esperar, não foram repartidos com o restante da sociedade.

Ao contrário, aprofundou-se um padrão altamente perverso e inerentemente instável de funcionamento para a economia mundial. O governo dos Estados Unidos incorre num déficit sempre crescente da ordem de centenas de bilhões de dólares para sustentar sua aventura imperialista no Iraque, e quiçá, para além de Bagdá. Esse déficit não corrói o status do dólar como moeda de reserva internacional porque os bancos centrais da China, Japão e tigres asiáticos seguem recheando seus cofres de títulos públicos estadunidenses, mantendo elevado o valor desse “ativo” econômico. A Ásia compra dólares com os dólares que recebe dos consumidores estadunidenses, cuja demanda voraz pelos produtos fabricados no oriente prossegue insaciável. O consumismo desenfreado se sustenta perigosamente numa espiral alucinante de endividamento das famílias, impulsionada pelos juros baixos do FED de Alan Greenspan. Além do déficit público provocado pelo buraco sem fundo do consumo militar improdutivo (destrutivo) bancado pelo Estado-mercenário, temos um déficit na balança comercial provocado pelo consumo privado.

A precária continuidade desse problemático padrão de funcionamento depende de variáveis como o sucesso cada vez mais incerto da ocupação do Iraque. Os preços do petróleo seguem subindo por causa da guerra que se fez para controlá-lo, conduzida com patética incompetência e imperial arrogância. E os preços seguirão subindo, já que os hidrocarbonetos estão no foco das disputas em andamento em diversos cenários. Por exemplo, no próprio quintal da hiperpotência global, como atestam os atritos recentes na Venezuela e na Bolívia.

A perversa economia global dos hidrocarbonetos depende da capacidade das famílias estadunidenses se endividarem para comprar o terceiro ou quarto automóvel. As perspectivas alternativas não são muito animadoras, pois quando se analisa o festejado crescimento econômico da China, e em breve, da Índia, com seus “mercados de bilhões de consumidores potenciais”, percebe-se que se trata tão somente do crescimento das vendas de automóveis e da construção de viadutos. Automóveis e viadutos nos quais os chineses em breve ficarão modernosamente engarrafados, lamentando-se via celular “up-to-date”, com saudade das saudáveis bicicletas com que outrora circulavam aos milhões em Tianamen.

Toda vez que se ouve a arrepiante palavra “crescimento” é preciso ter em mente que isso significa o conforto e o supérfluo para uma restrita minoria da população adquiridos à custa da miséria da ampla maioria da humanidade e da destruição do meio ambiente. As conseqüências desse modelo doentio para o equilíbrio ecológico global já se fazem sentir a décadas. O alerta vermelho já soou desde os anos 70, quando emergiram como força política organizada os movimentos ambientalistas. A degradação do ar, das águas, do solo, da biodiversidade, prossegue num ritmo alucinante, cuja continuidade ameaça a longo prazo a própria sobrevivência da humanidade. Isso evidencia mais uma fragilidade estrutural inescapável do sistema, um calcanhar de Aquiles do capitalismo como modo de controle da reprodução sociometabólica.

“A longo prazo, estaremos todos mortos”, dizia Keynes, que já está morto. Bush, como bom keynesiano, segue fazendo estragos em defesa do capitalismo, com seu agressivo desprezo pela vida humana. A recusa em colocar um freio racional na degradação ambiental, bem como em todas as outras mazelas do capitalismo, se mantém há séculos, desde muito antes de Keynes, uma vez que a racionalidade está por definição excluída de um modo de produção baseado na competição destrutiva.

Como conseqüência dessa renitente recusa, o próprio clima global se encontra francamente descontrolado. Ondas de calor que deixam atrás de si uma assustadora contagem de mortos se alternam com ondas de frio igualmente assassinas. A cada mudança das estações, sucedem-se nevascas, inundações, furacões, tempestades, secas, etc. Os deuses se vingam dos homens por sua imprudência.

Numa leitura grosseira, o Katrina também é culpa do capitalismo-catástrofe, e de seu ardoroso paladino, George W. Bush. É preciso, claro, refinar essa leitura. As catástrofes naturais acontecem no planeta desde sempre. Muito antes de o frágil homo sapiens dar o ar de sua graça, com suas curiosas bugigangas de alta tecnologia, na condição de último inquilino da aldeia global, os terremotos, maremotos, tsunamis, furacões, tempestades, inundações, secas, erupções vulcânicas, glaciações, etc., já faziam seus estragos, provocando inclusive cataclísmicas extinções massivas, conforme atestam as evidências recolhidas pelos paleontólogos nos mais diversos extratos geológicos.

Os furacões assassinos não são, portanto, evidentemente, uma exclusividade do capitalismo-catástrofe contemporâneo. O que é exclusivo desse sistema social é o descaso homicida com que determinados setores da população são tratados. Não é a natureza que mata, mas o despreparo humano. Por conta desse fator nada fortuito e nem acidental, mas historicamente construído, a natureza não mata indiscriminadamente. Mata seletivamente, conforme a capacidade de resposta de cada sociedade dada. Os furacões, bem como as secas, os terremotos, etc., não causam mortes evitáveis em sociedades minimamente organizadas para enfrentar as catástrofes.

Não é o caso do sul dos Estados Unidos. Numa sociedade que depende de guerras e petróleo, há pouco alento para as porções da população que destoam do perfil WASP do ungido de Deus George W. Bush. Naquilo que chamamos de perversa economia global dos hidrocarbonetos e do consumismo, os negros e pobres dos Estados Unidos estão condenados ao lugar mais baixo da pirâmide. Os Estados Unidos e a Europa estão atualmente descartando suas dispendiosas aristocracias operárias. Os direitos sociais seculares arrancados ao capital com muita luta e que distinguiam o mundo desenvolvido do restante da senzala global estão na alça de mira dos falcões da teoria econômica. Constituem um ônus com o qual as endividadas mega-corporações não estão mais dispostas a arcar.

Criou-se um mercado mundial da força de trabalho. O proletariado é hoje uma classe mundial, bem como o exército industrial de reserva. O trabalho proletário, braçal ou degradante, foi exilado nas colônias de além-mar. Os produtos que saciam o consumismo estadunidense não são fabricados na metrópole. As corporações estadunidenses dispensam seus operários, negros e latinos, para subcontratar no exterior substitutos asiáticos ou latino-americanos por uma fração infinitesimal do preço. A mão-de-obra barata e abundante da China e da Índia impõe seu peso sobre a classe operária estadunidense, entregue ao abandono social. O desemprego e a pobreza do Terceiro Mundo também se globalizam. Há massas miseráveis nos Estados Unidos e na Europa, em geral compostas por negros e imigrantes tornados supérfluos.

Sempre houve pobres nesses países, e em geral eles sempre pertenceram a esses grupos demográficos minoritários. A novidade no atual cenário é que o governo não tem mais qualquer política para esses setores da população. Enquanto os mercenários do “big business” estadunidense esquadrinham o globo em busca de pretextos para invadir algum rincão terceiro-mundista prenhe em hidrocarbonetos e outras riquezas, a catástrofe climática se abate sobre o próprio território do império. Mas as famílias brancas e economicamente estáveis, com seu segundo, terceiro ou quarto automóvel, seus celulares e sua internet banda larga, retiram-se ordenadamente do cenário da tragédia.

Os que ficam são os negros, os pobres, que não contam. Podem morrer às centenas, milhares, como os iraquianos, os palestinos, os africanos, etc. Não entram nos cálculos do capitalismo-catástrofe, já que não representam nenhuma riqueza a ser controlada. Não há estrutura de suporte para dar atendimento de emergência a esses setores da população, uma vez que os gastos públicos estão concentrados na aquisição de armas para a “guerra ao terror”. Se armas é tudo que o Estado pode legitimamente comprar na era Bush, armas é o que ele tem a oferecer à sua população. Quando a barbárie eclode sob a forma de depredações, saques, estupros, mortes, o exército é enviado para “controlar a situação”. Tanques desfilam pelas ruas do sul como se estivessem num território estrangeiro, habitado por uma “raça” hostil. O Haiti também é lá.

O Haiti que os capacetes azuis brasileiros da ONU servilmente aplainam para sediar as maquiladoras estadunidenses, as quais farão concorrência às chinesas e sul-coreanas, barateando o preço do quinto ou sexto carro das endividadas famílias estadunidenses, desempregando mais negros de New Orleans, até o próximo furacão...

As vítimas das catástrofes já não têm mais nada a perder, nem sequer o número da previdência social, violentamente tragado no vórtice implacável do celerado neoliberalismo.
Desabrigados de todo o mundo, uni-vos!

Daniel M. Delfino
14/08/2005

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