A tese básica da psicanálise, ramo da psicologia inaugurado por Freud, consiste em afirmar que o comportamento humano é determinado por um conjunto de elementos que não se apresentam de forma imediatamente acessível na superfície da consciência, a qual seria apenas uma espécie de ponta do iceberg do conjunto da mente. Esse conjunto seria movido por pulsões básicas sobre as quais a parte consciente da mente não teria controle. Desprezaremos aqui os elementos que constituem o inconsciente freudiano, com sua obsessiva mitologia pansexual do Édipo e etc., para reter apenas a idéia de um conjunto de determinações secretas que influenciam a conduta humana sem que o indivíduo seja capaz, na maioria das vezes, de se dar conta delas. Ou, o que é pior, de se libertar delas. Evidentemente, essas determinações têm origem na própria história de vida do indivíduo, não em nenhum substrato antropológico ou metafísico exterior.
O indivíduo a ser examinado neste divã é o Presidente Lulla. Seu inconsciente está determinado por um conjunto de vivências que se cristalizaram como pressupostos inquestionáveis de sua maneira de ver as coisas. Essas vivências fundamentais são parte da experiência, por ele partilhada com outros milhões de brasileiros, de ser um migrante nordestino numa cidade grande. O migrante nordestino chegava ao sul-sudeste invariavelmente analfabeto e sem nada mais a oferecer a não ser sua capacidade para o trabalho braçal. Com essas qualidades e as circunstâncias favoráveis do contexto sócio-econômico, muitos conseguiram “subir na vida” e alguns até alcançaram algum tipo de sucesso material ou mesmo político.
Ao chegar no topo do sistema político brasileiro, Lulla levou consigo os traços indeléveis da sua trajetória de migrante nordestino. Comportando-se no poder como um nordestino típico, Lulla colocou em evidência os traços positivos e negativos dessa sua forma específica de personalidade. Ao falar em “personalidade nordestina”, estamos indo além de Freud e recorrendo ao conceito junguiano de inconsciente coletivo. Existe uma personalidade nordestina típica em ação, determinando os passos do Presidente Lulla. Essa característica psicológica precisa ser definida com precisão, pois isso envolve questões de importância fundamental para a história nacional.
O que se pretende com essa tentativa heterodoxa de psicanálise não é estigmatizar uma significativa parcela da população brasileira ou dar vazão a abjetos preconceitos contra os nordestinos. O que está em jogo é uma complexa questão de auto-conhecimento pessoal e coletivo. Mesmo porque, este escriba é ele próprio um migrante nordestino, um orgulhoso descendente de uma legítima linhagem de sertanejos pernambucanos autênticos.
O nordestino típico que estamos tentando definir tem como qualidades principais a capacidade de trabalho inesgotável, a paciência infinita com o sofrimento, curtida no trabalho com a enxada, de sol a sol; e o bom humor insuperável, que brota contraditoriamente da sua profunda melancolia diante da amarga tragédia de suas vidas secas. Não há como exprimir melhor esse misto de tristeza e alegria diante da vida do que no sopro dos pífaros dos autênticos forrós de pé-de-serra. Na síntese peculiar do caráter nordestino, intervém também o peso histórico do catolicismo ibérico, com sua resignada fé que espera eternamente por um salvador da pátria sebastianista, ao mesmo tempo em que se mortifica diariamente por um auto-flagelante sentimento de culpa.
É certo que o machismo, o patriarcalismo, o autoritarismo, o conservadorismo moral também fazem parte dessa lista de qualidades, assim como a simpatia, a hospitalidade, a honestidade e a objetividade, mas essas qualidades são um tanto quanto secundárias para o tratamento do objeto em questão.
Pois bem, o que o neoliberalismo tem a ver com isso? O neoliberalismo que foi trazido a esses sertões pelo inusitado conluio da fina flor da “intelligentsia” uspiana com o mais corrupto e reacionário coronelismo tele-reciclado? O neoliberalismo recoloca a canga da servidão colonial sobre os ombros humilhados do nacionalismo abortado. O Brasil nordestinizado se resigna à sua secular sina de colônia de “plantation” (na versão glamourizada do “agrobusiness”) e passa a obedecer aos grileiros de Wall Street e adjacências como a pós-modernos coronéis absenteístas.
Neste acordo espúrio do que há de pior no arcaico e no moderno, a pseudo-elite nacional historicamente exerce o papel de intermediário, de feitor de escravos, sacrificando o futuro do próprio país em nome da duvidosa glória de freqüentar o jet set internacional na abjeta condição de novos-ricos periféricos deslumbrados com a última moda de Paris (ou pior, Miami). Erguer um país exige elevadas cotas de sacrifício, bem como de imaginação e criatividade, tanto da parte dos setores diretivos como dos subalternos. Mas não foi para pegar no pesado que os descendentes dos donatários arrebanharam para si estas plagas.
Qual é a novidade que o nordestino Lulla representa para esse esquema? Certamente, não foi a novidade de dar um rumo construtivo ao sacrifício do povo brasileiro. A submissão de Lulla aos coronéis absenteístas de Wall Street e a seus ouvidores-mores no FMI, ALCA, OMC e alhures serve apenas para consumar a recolonização. Com Lulla, dispensa-se a excrescente pseudo-elite bunda mole e o próprio povo curva a cerviz. Se é para sermos submissos, não precisamos de burguesia nacional. Com Lulla no posto de mais alto mandatário da nação, o país inteiro se proletariza.
A característica peculiar do proletário brasileiro, de extração predominantemente nordestina, é a obediência. No Brasil, o trabalhador, o homem do povo, o nordestino, o peão, não odeia o patrão, o empresário, o industrial, o fazendeiro. Ao contrário, os admira, exalta sua grandeza, pois é apenas indiretamente que estes o oprimem. Ele odeia o intermediário, o chefe de seção, o subgerente, o capataz, o feitor, o pequeno-burguês, o intelectual, que o oprime diretamente, por meio de sua superioridade hierárquica imediata, mesmo que precária.
Quando Lulla se elege, ele não está materialmente deslocando a nossa pseudo-elite intermediária do arranjo neocolonial neoliberal, ele está simbolicamente sendo aceito no trato direto com os suseranos de além-mar. Com essa ascensão pessoal, ele espera estar vicariamente satisfazendo a massa dos trabalhadores, homens do povo, nordestinos, peões a quem supostamente representa. Sem os intermediários da inútil burguesia nacional, os peões agora são recebidos pessoalmente em Davos ou em outros convescotes afins da rapinagem capitalista. Materialmente, nada mudou na estrutura hierárquica de subordinação a que a opressão neocolonial nos condena. Mas simbolicamente, houve uma mudança, que parece ser suficiente para deslocar o debate das questões materialmente relevantes.
Onde enxergamos uma questão materialmente relevante, nos nexos estratégicos do sistema de divisão hierárquica do trabalho internacional prevalecente, Lulla não enxerga senão um jogo de aparências, onde lhe cabe encenar o papel de convidado bem-comportado. O nordestino submisso, por mais que ascenda socialmente, não consegue se libertar de sua condição psicologicamente subalterna. Não consegue romper com o autoritarismo interiorizado inculcado por seus senhores. A obediência faz parte do seu ser. A submissão aos de cima se completa pela opressão dos debaixo. O peão ignorante e machista obedece ao capataz fora de casa e bate na mulher e nos filhos em casa. O Presidente servilmente se curva aos banqueiros internacionais ao mesmo tempo em que autoritariamente asfixia as possibilidades emancipatórias de seu próprio povo.
Acostumado ao sofrimento, Lulla acredita que não há outra salvação. Se Wall Street, digo, Palocci ou Meirelles, afirmam que os juros altos e o serviço da dívida são necessários para assegurar a prosperidade futura, Lulla acredita. Faz parte de sua personalidade nordestina acreditar. Depois de 40 anos vagando no deserto, chegaremos à Terra Prometida. Faz parte de sua história de vida acreditar que o sofrimento cedo ou tarde traz resultados. Quem atravessa uma vida de dificuldades acredita no valor pedagógico do sofrimento. Quem suporta na própria carne o sofrimento se considera moralmente habilitado a ministrar pedagogicamente o mesmo sofrimento aos outros.
Elle acredita que não há outro meio. Não há outro modo do Brasil “voltar a crescer”. Com todo o zelo de um pai-educador, Lulla impõe a cartilha neoliberal e castiga a rebeldia de quem ousa pensar diferente. Ele subjetivamente acredita que está fazendo o melhor, embora objetivamente esteja pilotando um desastre. Ainda que compungido, com um aperto no coração (depende de cada um acreditar em sua sinceridade), elle admite que as mudanças fundamentais do “status quo” sejam postergadas “ad infinitum”. O povo terá que sofrer mais um pouquinho (só mais um pouquinho...), antes que os resultados comecem a aparecer, elle acredita.
Enquanto elle acredita, e espera, e espera, e espera, e espera, o arrocho continua, a corrupção continua, o assalto ao Estado continua, a desmoralização dos servidores continua, a privatização dos serviços públicos continua, a lavagem de dinheiro continua, a violência do crime organizado continua, a grilagem do campo continua, o desmatamento continua, o trabalho escravo continua, o massacre dos sem-terra continua, a imbecilização cultural continua, a sangria do futebol continua, etc., etc., etc. Tudo continua igual, mas está tudo bem, uma vez que os patrões lá em Davos estão satisfeitos. Nada de choradeira de radicais e neobobos, papai-Lulla não vai tolerar isso em casa.
Dadas essas características onto-psicológicas, quem melhor do que Lulla para empunhar o chicote de capataz da banca?
Daniel M. Delfino
07/02/2005
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