8.5.07

“Homem Aranha 2”: heróis sem máscara


(Comentário sobre o filme “Homem Aranha 2”)



Nome original: Spider-Man 2
Produção: Estados Unidos
Ano: 2004
Idiomas: Inglês
Diretor: Sam Raimi
Roteiro: Stan Lee, Steve Ditko
Elenco: Tobey Maguire, Kirsten Dunst, James Franco, Alfred Molina, Willem Dafoe, Rosemary Harris, J. K. Simmons, Donna Murphy, Daniel Gillies, Dylan Baker, Bill Nunn, Vanessa Ferlito, Aasif Mandvi, Cliff Robertson, Ted Reimi
Gênero: ação, fantasia, ficção científica, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

Um filme como “Homem Aranha 2” se reveste de várias “máscaras”, ou camadas interpretativas, a serem desvendadas. Como uma teia de aranha, o seu centro está envolto em vários círculos concêntricos de urdidura. Como um ágil aracnídeo, o filme desliza facilmente pelos dedos apressados que tentarem capturá-lo de imediato. É preciso ir por partes para apreender com precisão o objeto que temos em mãos.

1.
Sob um primeiro aspecto, o filme é um “blockbuster” hollywoodiano, um mega produto da indústria cultural estadunidense. Foi fabricado ao custo de dezenas de milhões de dólares gastos em efeitos especiais; e foi ainda embalado por uma campanha de marketing orçada em outras tantas dezenas. Aparentemente, uma pura e simples operação comercial, aspecto realçado pelo fato de que se trata de uma continuação. Como tal, está projetado para ocupar milhares de salas de cinema pelo mundo, esmagar a débil “concorrência” de produções culturais locais em vias de extinção, atrair massas incontáveis de espectadores/consumidores, e faturar centenas de milhões de dólares. É nessa escala de valores que a indústria cultural e a mídia a ela associada medem a eficácia de um produto.

2.
Sob um segundo aspecto, trata-se de um filme sobre um herói-proletário. Peter Parker salva o mundo com seus poderes de Homem Aranha, mas não tem dinheiro para pagar as contas. Ganha a vida como entregador de pizza e faz bico como fotógrafo free-lancer explorado por um patrão sovina (o personagem mais bem caracterizado em relação aos quadrinhos). Vive de aluguel numa espelunca a cujo senhorio sempre atrasa o pagamento e de quem tem que se esconder. Não consegue chegar a tempo nas aulas e ter um bom desempenho na faculdade. Sua única família é uma tia idosa, de cuja viuvez aliás, se considera culpado. Não consegue estar perto da mulher por quem é apaixonado.

Quem quer que já tenha passado por qualquer uma dessas situações acaba por se identificar prontamente com Peter Parker. Especialmente na primeira hora de filme. A seqüência de cenas em que ele chega sempre atrasado, no trabalho, na faculdade, no teatro onde sua musa se apresenta, até na disputa pelos canapés servidos num coquetel, é antológica. O fardo de ser super herói mas ter que manter isso em segredo e ainda dar conta das exigências de uma vida comum num mundo competitivo é pesado demais para qualquer mortal.

A evidente injustiça de um mundo que não reconhece o esforço de seus heróis anônimos é exasperante. Peter Parker está sempre em débito, com o trabalho, com a faculdade, com a família, com os amigos, com a mulher que ama. Não consegue corresponder a nenhuma expectativa. Tudo por culpa da missão de ser o Homem Aranha. Missão que a cidade não reconhece, pois o jornal (o mesmo para o qual trabalha) o apresenta como vilão. Tamanha injustiça captura imediatamente a simpatia do espectador.

O filme funciona porque o público sofre com o herói. Todo herói típico estadunidense é um herói popular; a este respeito, vide o item 3. O público sente que esse herói é um dos seus. Seus problemas são os mesmos que os nossos. Tanto assim que o herói acusa o golpe e passa a se ressentir de “stress”. Seus poderes falham e sua teia não emerge como antes. Um psicanalista veria nisso uma clara metáfora da impotência sexual que acomete indivíduos submetidos a uma carga excessiva de esforço físico e mental no trabalho, no estudo, na vida social. A sobrecarga é tanta que Peter Parker chega a desistir de ser o Homem Aranha.

Temos então um “momento auto-ajuda”. Um médico aconselha a Peter deixar de lado o “sonho” de ser o Homem Aranha e viver como uma pessoa comum. Rebaixar suas expectativas, conviver com suas limitações. A esse respeito, é conveniente lembrar que o Homem Aranha, nos quadrinhos, se caracterizava por ser o mais bem-humorado dos super-heróis. Combatia os super-vilões mais tenebrosos sempre com uma piada na ponta da língua. Temos uma amostra desse bom humor na cena do elevador, em que o herói faz troça de seu próprio uniforme. Esse é outro momento antológico do filme.

Seja como for, ali, Peter Parker está prestes a desistir de ser o Homem Aranha. As palavras do médico surtem efeito e Peter reaparece altaneiro, livre leve e solto, sorridente, no dia seguinte. Mas ao rejeitar psicologicamente seus poderes de aranha, ele volta a ser míope. E tropeça. Mau presságio. O Homem Aranha mudou, mas a cidade continua a mesma. A mesma violência que o Homem Aranha combatia continua à solta. Pessoas continuam sendo espancadas nos becos.

Peter não consegue virar os olhos para o que acontece. Ainda mais agora que um outro vilão ameaça a cidade, o Dr. Octopus (que por sua vez, fornece o ponto forte deste episódio na comparação com o primeiro filme, que tinha um vilão muito ruim). O Homem Aranha se retirou, mas isso não poderá durar para sempre. Peter sabe disso. Mas ele só decide voltar a ativa quando um discurso da tia May o convence. E com o discurso da tia May, passamos para o terceiro aspecto, o da utilização ideológica dos heróis estadunidenses.

3.
A filosofia do Homem Aranha se resume à frase: “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”. Essa frase pode ser evocada como justificativa da política externa imperialista do governo estadunidense. É uma frase que convém muito bem ao Presidente Bush. Os Estados Unidos são o “grande poder” material que existe nesse mundo. Logo, cabe-lhe a “responsabilidade” de zelar pelo bem-estar do planeta. Os Estados Unidos se apresentam como a polícia global e vêem a si mesmos como heróis por causa disso.

A mitologia do herói estadunidense é válida para qualquer povo do mundo, menos para o próprio povo estadunidense. Justamente por isso, ela teve que nascer nos Estados Unidos. A mitologia do herói estadunidense é uma reprodução do conflito bíblico entre Davi e Golias. Davi é o herói improvável que enfrenta e vence um inimigo infinitamente mais poderoso. O povo estadunidense enxerga a si mesmo como Davi e a seus inimigos como Golias. No mundo real, acontece exatamente o contrário: o poder dos Estados Unidos e do capitalismo em geral é que oprime o mundo.

Naturalmente, nenhum Estado e nenhuma classe dominante pode apresentar a seu povo a idéia de que exerce um poder maligno sobre o resto do mundo. Para que a influência estadunidense sobre o resto do mundo seja digerida para consumo interno, ela precisa ser apresentada como benigna. Para que o povo estadunidense considere essa influência como benigna, precisa acreditar em sua própria inocência e bondade essencial. Para reforçar essa crença, são produzidos heróis/Davi que se definem por seu conflito contra um inimigo/Golias. Quanto mais falsa é uma ideologia, mais insistentemente ela deve ser apregoada. Quanto maior a mentira, maior a credulidade. Quanto mais os Estados Unidos se comportam como Octopus em relação ao mundo, mais eles precisam acreditar que são Peter Parker.

É claro que esse processo não é imediato, direto, intencionalmente determinado. A causalidade social é sempre dialética, ou seja recíproca, mediata e articulada, constituída de camadas contraditórias. A indústria cultural, no caso o cinema e as H.Q.s, não produz diretamente essa crença. Como produtos para o mercado, os heróis devem oferecer o tipo de identificação que o público quer consumir. Ou como gostam de dizer os liberais, os produtos da indústria cultural devem ser adequados à sua demanda. A indústria cultural de modo geral não contraria seu público, pois se o fizesse perderia mercado. Ela tenta agradá-lo, bajulá-lo, satisfazê-lo, obedecer seus apetites e compactuar com suas crenças.

4.
Para que não venha a parecer que este escriba está insinuando que o discurso da tia May foi enxertado no roteiro para fazer campanha para a reeleição de Bush Jr., coloquemos as coisas novamente no lugar. A verdade de “Homem Aranha 2” constitui sua mentira; sua mentira, a verdade. Trata-se de um filme estadunidense, portanto comercial. Mas seu conteúdo é um herói popular, portanto universal. O seu discurso, porém, presta-se a uma instrumentalização política oportunista, para a qual é importante estar atento.

Todo filme estadunidense carrega consigo esta teia de contradições, inerente a um sistema mundial hierárquica e conflituosamente estruturado. Ele pode ser um bom filme, mesmo sendo estadunidense. Fornece um herói com quem podemos facilmente nos identificar, ainda que seja um herói prototípico de uma cultura que se nos opõe como força de dominação. Na chave crítica aqui proposta, os heróis estadunidenses podem servir de modelo para uma atitude que afronta o próprio poderio estadunidense.

Os Estados Unidos pensam que são a Aliança Rebelde de “Guerra nas Estrelas”, mas na verdade são o Império. Mesmo assim, na condição de Império, nos fornecem algo de útil. Fornecem o modelo heróico da Rebelião. E o humor do Homem Aranha.

“Homem Aranha 2” é pois um filme composto de várias camadas, ainda que seja um simples filme de histórias em quadrinho. É um eficiente filme de quadrinhos, apesar do diretor ser originário do ramo de filmes de terror. Sam Raimi consagrou-se na série “Evil dead” (no Brasil, “A morte do demônio”). Seu talento nessa área evidencia-se na cena do hospital, em que a equipe médica que se preparava para operar o Dr. Octopus é inteiramente dizimada. Cena que constitui o terceiro momento antológico do filme.

Infelizmente, a carreira de Raimi à frente do Aranha deve se limitar a apenas mais um filme. Sabemos que um gibi com 40 anos de história tem muito material para ser filmado. Mas a temporalidade dos quadrinhos é diferente daquela do cinema. Sua estrutura de plausibilidade é muito mais flexível. Na tela grande, a síntese tem que ser proporcionalmente muito mais rápida. O corte deve ser objetivo. Não há espaço para as idas e vindas da cronologia quadrinística. O diretor tem algumas poucas armas para usar e deve sacá-las logo. Por isso o episódio 2 já queima alguns cartuchos importantes. E com isso chegaremos à ultima máscara do filme, a máscara do Homem Aranha propriamente dita.

5.
A premissa que fazia Peter Parker recusar o fardo de herói se torna desde o começo objetivamente falsa. A idéia de manter sua identidade secreta para proteger as pessoas que ama deixa de fazer sentido, pois sucessivamente, sua tia e sua musa são ameaçadas por vilões que querem atingi-lo. Aliás, qualquer um parece saber que para chegar ao Homem Aranha, basta se aproximar de seu “fotógrafo oficial”. Assim, inevitavelmente, as pessoas próximas a Peter Parker sempre sofrerão pelo fato de que ele é o Homem Aranha. Logo, de que adianta carregar o fardo de ser o herói sem poder gozar do merecido reconhecimento, sequer o das pessoas amadas?

Isso fornece a desculpa para que o Homem Aranha tire a máscara. E com isso, o diretor agrada o público genérico do cinema, que não necessariamente tem a paciência para suportar indefinidamente a injustiça prolongada feita ao herói, tal como público de quadrinhos. Já vimos isso em “X-Men 2”, quando os mutantes vão se justificar perante o Presidente. O público de cinema, pelo menos o dos Estados Unidos, não suporta ver o herói sofrer e ser injustiçado indefinidamente.

O sofrimento do público com seu herói injustiçado é redimido por essas cenas em que ele é reconhecido. Mas isso é um truque que não se pode usar mais de uma vez. Seja para conceder uma satisfação fácil ao público, seja para encaminhar uma terceira obra na qual dará por encerrada sua participação criativa, o diretor quebra uma regra fundamental dos quadrinhos: exibir a identidade secreta do herói.

Mas está tudo bem, porque nós, como as pessoas do trem, não vamos contar para ninguém. Aliás, de que adianta conhecermos a identidade do Aranha? Ele é apenas um rapaz desconhecido. Um de nós.

Daniel M. Delfino

12/07/2004

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