8.5.07

Briga de foice no escuro




O Presidente do Banco Central está sendo acusado de corrupção. Já não é a primeira vez que isso acontece no governo Lula. Basta lembrar o escândalo que quase derrubou a eminência parda José Dirceu. Se no quesito corrupção o PT já perdeu a virgindade há tempos, por meio do hoje esquecido Waldomiro Diniz, agora, com Henrique Meirelles, o partido trata de dar validade ao chulo e escatológico ditado: “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”.

O PT assim desfigurado acaba de incorporar à sua práxis política (outrora tão respeitável) o estado da arte em matéria de casuísmo: edita-se uma medida provisória que concede ao Presidente do BC o status de Ministro, o qual lhe garante a condição privilegiada de somente poder ser julgado no STF. Julgado? Mas julgado por que? Qual a necessidade de se pensar na hipótese de o Presidente do BC vir a ser julgado? Qual a urgência em se cogitar desse tema com uma presteza que justifica a edição de uma medida provisória?

Até as pedras podem perceber que se trata de uma carta tirada da manga especificamente com o objetivo de livrar a cara de Henrique Meirelles. Se os autores da medida acham que ninguém percebeu o oportunismo, a desfaçatez, a temeridade de uma tal atitude; se acham que alguém pode realmente acreditar que se trata de um aperfeiçoamento institucional de caráter meramente técnico; os companheiros governantes não podem mesmo ser mais levados a sério. Estão gozando da nossa cara (neste momento, todo cuidado com a preposição...).

É claro que a “oposição” vai perceber. Estamos em plena disputa eleitoral. A esquizofrenia apontada no texto “Quem não tem colírio usa óculos escuros” chega ao auge. A briga de foices nos bastidores é surda. Agradar ou desagradar o governo, comentar ou não comentar as denúncias, abafar ou não abafar o caso, dar ou não dar tribuna à “oposição”? Os dilemas da grande mídia são cruéis, a dose de uma e de outra escolha tem que ser muito bem medidas. O vencedor do páreo eleitoral municipal ainda não despontou na curva das pesquisas e mostra-se sumamente difícil pegar carona no cavalo premiado.

Com as Olimpíadas correndo soltas e o espetáculo do crescimento “decolando”, ainda que as estatísticas sejam claudicantes; Lula faz de conta que nada está acontecendo e segue firme em seu mergulho no precipício do vazio programático. E pode ainda se dar ao luxo de abrilhantar a diplomacia presidencial com um providencial amistoso do time canarinho no Haiti. Como disse outrora o hoje ministro Gil, “o Haiti é aqui”. Contra essas atrações, não se pode concorrer. A sedução do ouro olímpico é por demais poderosa, mesmo para uma mídia em estado de alerta permanente contra o governo.

Na superfície, todos fingem que está tudo bem e mal podem esperar para aparecer ao lado da Daiane na foto com a medalha (pobre Daiane...). À luz dos holofotes, todos são sorrisos e afagos; por trás da pose, cotoveladas e beliscões. Na escuridão, as gangues petista e peessedebista travam um surdo duelo para decidir quem ficará no comando do “projeto” de desmonte neoliberal do país e conseqüentemente, quem ficará com as migalhas que sobrarem da mesa do banquete imperialista da ALCA.

É aí que está a explicação para o que sai na capa das revistas, para o que vaza das CPIs, para a incontinência verbal na República dos Grampos Telefônicos. A pauta dos telejornais esconde um roteiro cifrado, por meio do qual o duelo das gangues transparece invertido e desfigurado. Ora denúncias de corrupção, ora estatísticas de crescimento, tudo muito bem temperado com a sacrossanta “imparcialidade”, de modo a não desagradar aqueles que estão acima e nas sombras, puxando os fios das marionetes. Essa é a verdadeira, e sórdida disputa em curso neste ano olímpico-eleitoral.

Sobre a sedução do ouro (não o olímpico, o monetário), Meirelles, o pivô da crise, pode falar de cátedra. Aparentemente, ninguém melhor que ele entende o poder do ouro. Do contrário, como se explica sua condição de “imexível”? Se não bastasse a sua política econômica estar destruindo o país, pairam sobre ele suspeitas de ser em demasiado apegado ao vil metal. Eis o que esse episódio revela de mais significativo: Meirelles acaba de dar novo significado ao termo imexível, da lavra de outro inesquecível personagem de nossa fauna política. Estamos diante de um “upgrade” no conceito. Em matéria de Presidentes do BC, não basta criar o monstro. Não basta ser pai, é preciso participar. Faça chuva ou faça sol, custe o que custar, o cidadão tem que ser mantido no cargo. Sem Meirelles não há salvação.

Se o PT está disposto a ir até o ponto em que foi para sustentar Meirelles, alguma coisa há. Duas alternativas são possíveis. Ou não se imagina que é possível governar o país sem ele, o que seria uma admissão assustadora; ou estão todos no mesmo barco do amor ao ouro, o que seria também igualmente inadmissível. É possível aqui comentar apenas a primeira hipótese, já que a segunda é caso de polícia.

Caso a primeira hipótese esteja sendo levada a sério, Lula poderia ter evitado o aborrecimento de ter que tentar fazer passar uma medida provisória cozida às pressas. Bastava um gesto mais simples: entregar de vez a faixa presidencial a Meirelles, já que é ele quem manda mesmo. O adereço já não tem mais o que acrescentar à rotunda silhueta presidencial.

Despido de tal adorno e dos complexos significados que ele envolve, como o de que o seu usuário eventualmente teria por mister o ato de governar; Lula poderia representar mais à vontade seu papel de mestre-sala, Rainha da Inglaterra, Sassá Mutema, bobo da corte, ganhador da Porta da Esperança, convidado do Faustão, ou do Ratinho, pingüim de geladeira, personagem de cartoon, turista acidental, cereja do bolo, papagaio de pirata...

Daniel M. Delfino

20/08/2004

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