31.5.07

Salve(em) o Corinthians!




O futebol é o ópio do povo. Essa frase parafraseia a célebre afirmação de Karl Marx de que “a religião é o ópio do povo”. Quando se lança mão de tal frase para condenar os hábitos de quem acompanha apaixonadamente o futebol, se tem a intenção de mobilizar a mesma contundência que tem a frase de Marx para quem segue alguma religião. Nesse sentido, tenta-se dizer que o futebol é um hábito de pessoas alienadas que deixam de viver a própria vida para viver a vida do time para o qual torcem.

No Brasil, o futebol se transformou em religião. Sendo este escriba um torcedor fanático que acaba de viver a maior epifania do futebol, a conquista de um campeonato pelo seu time; mas sendo também ao mesmo tempo um marxista impenitente, portanto um incréu praticante, cumpre-lhe nessa situação descrever como sua vã filosofia tangencia os contornos e meandros da misteriosa alienação/desalienação que se concretiza por meio da catarse futebolística. Os torcedores e também os infiéis exigem: pedala escriba!

De modo geral, a caracterização do futebol como “ópio do povo” é basicamente correta. Entretanto, uma vez que a realidade é dialética, o “modo geral” de dizer as coisas pode não ser o mais adequado para expressar a riqueza dessa realidade. Para precisar essa divergência entre o real e o discurso, é oportuno citar o trecho completo da obra de Marx da qual a afirmação parafraseada acima é retirada. Esse trecho se encontra na “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, importante obra da juventude do filósofo alemão, desenvolvendo-se como se segue:

“A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo.

A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões.”

Se fosse possível reduzir o pensamento dialético de Marx sobre essa questão a uma expressão formal, analítica e linear, o resultado necessariamente imperfeito seria o de dizer que a religião não é a causa do problema, é um dos efeitos. A expressão seria imperfeita porque, na dialética, a causação é sempre recíproca. A religião surge da miséria material, mas ao mesmo tempo reforça essa miséria. Marx entendia que era preciso combater a religião, mas não fazia isso discutindo teologia e sim revolucionando a sociedade. A causa da miséria espiritual é a miséria material. Para acabar com a miséria espiritual que origina a religião, seria preciso acabar primeiro com a miséria material. Esse é o verdadeiro alvo. Marx não censura a religião em si, mas a religião enquanto componente do arsenal ideológico de legitimação de um mundo miserável.

Marx não pretendia acabar liminarmente com a religião, mas com a pobreza material que cria a esperança transcendente de recompensa no além. O mesmo pensamento formal, analítico e linear que retira a afirmação de Marx de seu contexto coloca no projeto marxiano o sentido de uma censura ou de uma interdição sumária à prática religiosa. A mesma distorção de que a obra de Marx foi vítima nas mãos de 99% dos marxistas se verifica também na questão do “combate à religião” como componente particular da luta emancipatória. Tentou-se combater a religião forçando os religiosos a abandonar suas crenças, o que não poderia ser mais repugnante e contraditório em relação ao projeto marxiano.

Marx, como ateu, não tinha crenças, tinha pressupostos filosóficos. Um de seus pressupostos fundamentais é o de que as formas de existência material determinam (dialeticamente) as formas de pensamento. A religião é uma forma de pensamento que somente seria superada quando fossem superadas as formas de existência material que lhe dão origem. E isso só poderia se dar no contexto de uma transformação social radical e totalmente abrangente. A religião não seria suprimida por decreto de uma autoridade “esclarecida”, seria superada e naturalmente substituída por outras formas de pensamento, conforme surgissem novas formas de existência emancipadas. Desapareceria como uma névoa que se dissipa, uma infância distante da qual se guarda apenas doce lembrança.

Entretanto, Marx admitia tranqüilamente a possibilidade da continuidade da prática religiosa numa sociedade emancipada. A religião, nessa hipótese, subsistiria como uma forma de expressão da busca por transcendência, busca inerente à espécie humana. Tal hipótese não é estranha ao sentido geral expresso no conjunto da obra marxiana, embora de acordo com tal sentido possa ser considerada altamente improvável em face da “concorrência” que a religião sofreria da parte da ciência. Enfim, numa sociedade socialista, haveria tolerância para com os ateus e os religiosos, os crentes e descrentes, os praticantes e os não-praticantes, conforme a medida da fé de cada um.

Uma coisa é afirmar que a religião tende a desaparecer, com base no conhecimento de sua desnecessidade. Outra coisa é dizer autoritariamente que a religião deve desaparecer, ignorando tanto as determinações sociais dialéticas nas quais o fenômeno da religião está historicamente inserido nas sociedades de classes; como a sua função antropológica residual enquanto modalidade particular de pensamento provedor de transcendência em qualquer sociedade humana hipotética. Não se destrói uma tradição cultural de milênios por um ato de vontade. Tal idéia não é desejável nem exeqüível. E ninguém mais do que Marx, por ser radicalmente avesso a qualquer idéia ou prática unilateral, sabia disso.

Portanto, é preciso ter cuidado com o anátema de “ópio do povo”. A religião pode inclusive cumprir um papel progressivo na História. Basta lembrar dos profetas judeus, radicalmente rebeldes contra a autoridade monárquica e clerical, e de todos os santos, místicos, visionários e sonhadores de todas as religiões que legaram à humanidade uma ardente paixão transformadora, simultaneamente suave e implacável. Há uma lista inumerável dessas figuras, de Jesus de Nazaré a Gandhi (evidentemente, todos prejudicados pela distorção criminosa que seus seguidores fazem de seus ensinamentos).

Em tempos mais recentes, é preciso destacar que muitas lutas sociais importantes avançaram pelas mãos de militantes imbuídos de idéias religiosas. Entra nessa conta o impulso dado pela chamada “Teologia da Libertação” às lutas sociais na América Latina nas décadas de 1970 a 80. Do ponto de vista do positivismo estreito que se costuma chamar de marxismo, isso seria uma aberração completa. Quando se toma em conta o conjunto das dimensões antropológicas constituintes do gênero humano que luta para se emancipar, nada disso é estranho ou contraditório. É um projeto marcado por óbvias limitações, mas não é em absoluto incompatível com a práxis emancipatória marxista.

Os religiosos que abraçam as causas do povo com total entrega pessoal são mais marxistas que muitos intelectuais de gabinete que se profissionalizaram lucrativamente na duvidosa arte de deduzir “dialeticamente” a impossibilidade da revolução. Pobre dessa dialética esquálida na qual não entra a paixão. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt. 5:6), profetizou Jesus.

Aliás, se os mandamentos de qualquer religião fossem minimamente cumpridos pelos fiéis, o mundo já seria um paraíso há milênios. É no descumprimento sistemático dos mandamentos da religião que radica sua fraqueza e portanto sua inviabilidade enquanto meio de se buscar a emancipação humana. É pelo caráter enganador de seu irrealizável apelo à moralidade num mundo materialmente degradado que a religião se constitui em obstáculo para a emancipação. Não é o marxismo que ataca a religião, mas o capitalismo, que a transforma no seu inverso, de expressão do sonho em consagração do pesadelo. A religião diz amém a um mundo no qual vigora a pecaminosa exploração do homem pelo homem. Enquanto isso, os profetas se contorcem nos seus túmulos.

E o que isso tem a ver com o Corinthians?

A primeira relação é que no Brasil, futebol é religião. Não é um esporte a que se assiste como um espetáculo, uma diversão de consumo, um filme-pipoca, que se desfruta e esquece no momento seguinte. O momento do jogo é o rito máximo dessa religião, mas o culto se presta no cotidiano do torcedor. Ele se prolonga para o dia seguinte ao jogo, para a mesa de bar, para a roda de amigos, para as gozações dos colegas de trabalho, para as brigas com a namorada, para as brincadeiras de família. É aí que o futebol se realiza. O torcedor de futebol tem o distintivo do time tatuado na pele. Figurativamente e em alguns casos materialmente. O futebol vive com o torcedor 24 horas.

É aí que está a alienação. O torcedor fanático vive a vida do time, mais do que a sua própria. Como o fiel que espera a sua felicidade no reino do além, o torcedor não se preocupa com a política, a economia, a cultura, as diversas dimensões que o determinam como indivíduo social e político, renunciando a ter um papel ativo enquanto sujeito da História e de sua própria construção. Se preocupa apenas com a escalação do time para a próxima partida. Aquilo que seria um escapismo inocente assume um papel de atraso político.

Mais uma vez, como em relação à religião, a culpa não é do futebol, mas do atraso geral do povo brasileiro. O futebol não tem culpa de ser o esporte mais apaixonante do mundo. Nesse esporte-que-é-mais-do-que-um-esporte, o resultado não reflete automaticamente o desempenho. Todo placar de futebol é enganoso. Todo jogo possui uma riqueza de detalhes que não transparece no resultado. Vitória, derrota, empate, são conseqüências de uma dialética complexa, onde entram técnica, tática, organização, disciplina, conjunto, individualidade, determinação, sorte, azar, qualidade do gramado, chuva e sol, erro do juiz, torcida, etc. O fascínio do jogo está no imponderável do resultado. O prazer de torcer está na expectativa nervosa de que a vitória seja sempre possível.

O futebol brasileiro não tem culpa de ser o mais belo do mundo. O estilo inimitável do drible, da ginga, da fantasia, é uma manifestação riquíssima de um estilo de expressão corporal que é típico do povo brasileiro. Negar a importância dessa manifestação é negar a importância do corpo. Expressão corporal é arte, é cultura e é vida. A origem desse estilo é basicamente negra, forjada no samba e na capoeira, na história de luta e resistência do povo, indo dos quilombolas aos malandros e aos manos do hip hop da periferia. O futebol é uma modalidade de alienação por conta das relações sociais nas quais está historicamente inserido, mas abstraindo-se o contexto histórico contingente, é em sua essência uma forma antropológica de objetivação do caráter cultural de um povo.

A paixão pelo futebol não é necessariamente um obstáculo absoluto para a mobilização do povo, como não o é a religião. Basta lembrar da Democracia Corintiana, movimento futebolístico-cultural-político do início dos anos 1980 que colaborou (ainda que modestamente, mas com certeza heroicamente) para o fim da ditadura e a redemocratização da sociedade brasileira, e de quebra rendeu um time inesquecível e dois títulos de campeão.

Mas se a Democracia Corintiana é uma exceção, ela só foi possível por conta desse viés particular que tem o futebol de ser a expressão peculiar do caráter do povo brasileiro. E isso não pode ser negado, recusado ou criticado em nome de qualquer agenda política conjuntural. Era errado a torcida brasileira comemorar o título mundial de 1970 porque o governo do país era a ditadura militar? Há uma pseudo-lógica muito estreita nesse raciocínio, que precisa ser invertida. A Seleção do Tri Mundial será para sempre lembrada como a maior glória do futebol brasileiro e universal em todos os tempos. Quanto aos militares, já foram merecidamente para a lata de lixo da História.

O futebol expressa o caráter do povo, mas o faz numa sociedade regida por relações de alienação. Aí está o nó da questão. Se o nó da religião é a miséria material, o nó do futebol é a espoliação da nação pela elite predatória. O futebol deve ser tido como mais um patrimônio do povo. Nesse caso, o futebol brasileiro foi usurpado ao povo, como tudo mais neste país. Ele é mais uma parte de uma riquíssima cultura dilapidada pela estreiteza mesquinha de uma elite criminosa. O futebol brasileiro precisa ser libertado de seus dirigentes, assim como, respectivamente, a nossa música precisa ser libertada das gravadoras, a cultura da televisão, etc.

O futebol nos foi roubado. Aqui não estamos falando somente da máfia do apito que maculou o Campeonato Brasileiro de 2005, mas do futebol em geral. A casta dirigente do futebol brasileiro, seja ela coronelista-arcaica ou globalizada-neoliberal, funciona como mais um dos enclaves políticos de dominação que subjugam o Brasil em todos os campos. As transnacionais não diferem muito dos cartolas à moda antiga e também não se diferem entre si. A MSI não é diferente da Hicks Muse ou da Parmalat. A Parmalat vendia leite e distribuía bichinhos de pelúcia. Mas seus donos, presos na Itália, são tão criminosos quanto os patrões de Kia Joorabchian, refugiados na Inglaterra e com prisão decretada na Rússia. Toda mega-corporação capitalista é corrupta e todo dinheiro é sujo. Roubado. Dinheiro é trabalho coagulado, já dizia Marx.

Todo dirigente de clube de futebol é corrupto e rouba seu time. Se não fosse assim, os clubes brasileiros estariam nadando em dinheiro. Como é possível que times de massa com milhões de torcedores estejam falidos e lutando para não ser rebaixados? Não é possível, mas mesmo assim acontece. A falência do futebol brasileiro é uma impossibilidade matemática. No entanto, a crise financeira dos clubes é materializada diariamente por alguma milagrosa estratégia empresarial peculiar a nossos cartolas.

Quando algum clube tem dinheiro, é porque há algo suspeito escondido. O dinheiro que não ousa declarar sua origem comprou o Corinthians. Mas isso não muda a caracterização geral da usurpação. Kia não é melhor nem pior o que do Dualib. Seus métodos de administração e sua estratégia para o time não representam avanço nem retrocesso. O Corinthians está onde sempre esteve. O que faz um time são os jogadores e a torcida. Os dirigentes, sejam de que nacionalidade ou procedência forem, apenas atrapalham.

“Que se vayan todos!”, como dizem os conterrâneos do ídolo Tevez. E por falar em Carlitos (o dos gramados, visto que o de Hollywood não teve o privilégio de ser corintiano, apesar de ser do povo), a sua adoção pela fiel torcida demonstra que toda instituição autenticamente popular é também internacionalista. Samba e cumbia na festa do tetra. Se o futebol é mais do que um esporte, o Corinthians é mais do que um time. A escola brasileira de futebol, foi dito acima, é um traço da contribuição do negro para a formação do país. O Corinthians, por sua vez, como um dos times mais importantes do país, tem um papel nessa contribuição. O seu papel é de ser, precisamente, o time dos negros e pobres. Portanto é um papel libertário.

É claro que não se pode negar que existe uma importante minoria de corintianos entre os setores pequeno-burgueses e até burgueses da sociedade (honestamente seduzidos, para sua honra e glória). E que existe uma significativa porção dos setores proletarizados que não são corintianos (equivocados, para sua desgraça). Mas isso não passa de estatística. A estatística não descreve toda a realidade, ela fornece apenas um recorte numérico. A quantidade produz dialeticamente a qualidade. E é a qualidade, mais do que a quantidade, que diz o que é um determinado ser. A quantidade de corintianos entre os negros e pobres determina de conjunto o caráter geral da torcida e do clube.

Naturalmente a imprensa conservadora rejeita esse discurso de identificação de classe aplicado ao futebol. A imprensa partilha do projeto de comercializar o esporte como entretenimento televisivo pasteurizado para a audiência dominical da Globo. Dentro desse projeto, todas as torcidas são iguais e todos os times são produtos numa prateleira. Estabelece-se a indiferenciação e a relativização, em nome da “imparcialidade”. Pode parecer teoria da conspiração, mas todo corintiano sabe em suas entranhas que a imprensa odeia seu time, porque na verdade odeia a torcida que o acompanha.

A imprensa que quer derrubar Lulla (não porque esteja contrariando os interesses da elite que lhe paga o soldo, mas porque, como Presidente da República, elle é inaceitável esteticamente; e quiçá, etnicamente, por ser, entre outras coisas, corintiano) também quer destruir o Corinthians. Claro, há a teoria de que a imprensa é corintiana, como também há a de que a mídia é comunista (para que fique bem claro, este escriba é corintiano e comunista). Mas é preciso não confundir alhos com bugalhos. Há inegavelmente uma vasta porção da imprensa esportiva que adora falar do Corinthians, mas isso não passa de puro oportunismo comercial. Todo tablóide com o Corinthians na capa vende muito mais que os outros, como bem o sabem os donos de bancas de jornal.

Têm ainda mais razão para rejeitar esse discurso de identificação sócio-política os torcedores rivais, os quais recebem todo o respeito deste escriba, embora não seja provável que algum ainda esteja lendo o texto até aqui. Concede-se que no Brasil não existem fenômenos de identificação sócio-política com o futebol como os que há por exemplo na Europa. Lá temos o caso dos católicos com o Celtic da Escócia, ou dos bascos com o Athletic Bilbao e dos catalães com o Barcelona, ambos na Espanha. Essas identificações de conteúdo político se formam com base em recortes étnico-religiosos bastante demarcados. Não é bem disso que se trata no caso do Corinthians. Mas que existe uma forte identificação de classe, isso existe.

Estamos aqui na tênue fronteira entre estereótipo e preconceito, onde o debate se torna amargo. O negro, o pobre, o favelado, é visto pelo conjunto da opinião pública como bandido. Como a maioria dos negros, pobres e favelados é corintiana, corintiano também se torna sinônimo de criminoso. Para não ter que discutir o preconceito, é mais cômodo e menos trabalhoso rejeitar a identificação de classe. A novilíngua tucana e petucana da mídia derrapa numa inviável neutralidade opaca e cinzenta. As décadas passadas, não obscurecidas pela detestável moda do politicamente correto, diziam com todas as letras: “o Corinthians é o time do povo”, como diziam, em cada Estado, do Flamengo, do Internacional, do Atlético Mineiro, etc.

Essa idéia de time do povo é verdadeira, como são todos os clichês associados ao Corinthians: “não é um time que tem uma torcida, é uma torcida que tem um time”, “uma torcida que vai ao estádio para curtir a si mesma”, etc. Os clichês não surgem por acaso, e também não se apagam por decreto dos departamentos de marketing e manuais de redação. Parece ter se tornado motivo de vergonha ou de embaraço afirmar isso, uma hipocrisia com a qual este escriba não compartilha: quem é corintiano é do povo!!

Não há dicionário de novilíngua capaz de obliterar essa verdade. Quem está numa arquibancada com a massa corintiana sabe o que é a periferia vindo a campo com toda sua revolta, sua indignação, sua frustração, transformada em sede de vitória, em alegria, em energia pura. Uma torcida que atravessa a cidade para chegar aos estádios distantes, que se espreme nos ônibus e lotações, que sofre no trânsito, que suporta todos os maus-tratos possíveis, deveria comportar-se muito pior, mesmo que não fosse composta de bandidos, como se pensa que é. As redondezas dos estádios deveriam arder a cada jogo como a periferia parisiense nesses tempos de revolta dos jovens árabes desempregados. É claro que há violência, uma vez ou outra (como há em relação a qualquer torcida, basta lembrar o que os civilizados são-paulinos fizeram com a avenida paulista), mas numa medida infinitamente menor do que seria de se esperar.

O ópio do povo também serve para entorpecer. Só isso explica tão pouca violência. Quando se diz que o corintiano sofre o diabo para ir ao estádio, não é mera demagogia. Não há bilheterias, não há atendimento, não há organização, não há filas, não há segurança. Há aglomeração caótica, cambistas vendendo ingressos descaradamente (o que deveria ser proibido), e quando a aglomeração se torna grande demais, tudo que a polícia sabe fazer é descer o cassetete. Se a imprensa tucana odeia o Corinthians, a polícia fascista de São Paulo tem um gosto patológico de bater em corintianos. Nesta peculiar versão brasileira do panis et circensis romano, falta pão e sobra porrada. Apanhar para entrar no estádio é o cúmulo da barbárie.

Uma gente que passa por isso em cada jogo comporta-se extremamente bem, dadas as circunstâncias. A revolta não se transforma em violência e sim em festa. A festa traz um marcante conteúdo de orgulho combativo. Esse orgulho está expresso na marcante celebração de uma certa forma de identidade determinada pela dureza das condições de existência: “corintiano, maloqueiro, sofredor, graças a Deus!”, canta a torcida (inclusive este ateu). A corintianidade que nos irmana transborda em uma forma primal de consciência de classe: “Zumbi somos nós”, diz a bandeira que a torcida Gaviões da Fiel estende sobre as arquibancadas. Se isso não é libertário, o que mais será?

O recado está dado. Quem quiser revolucionar a sociedade, revolucione o futebol. As manifestações de massa do povo argentino que derrubaram De la Rua em 2001, os famosos panelaços, tiveram o colorido azul e branco da torcida do Racing, campeão depois de 35 anos. O futebol não é como a religião “o soluço da criatura oprimida”, é o seu grito de afirmação. O Corinthians, um dos times mais vencedores do Brasil, também soube o que é uma fila, como o Racing, embora o Brasil não saiba o que é um panelaço (por enquanto). Diz ainda a torcida: “...Corinthians joga, eu vou, e ninguém vai me segurar!”, nem a polícia, nem a imprensa tucana, nem a máfia russa.

Ainda umas duas palavras sobre o crime organizado no futebol. Em tempos de mensalão e mensalinho, querem confundir as bolas, negando à fiel o direito de comemorar, como se o título de 2005 fosse ilegítimo. A crise política se espalhou para outros cenários e reverberou também no futebol, escreveu este escriba há bem poucos dias. Criou-se uma sensação de que a roubalheira é geral, em todas as esferas. “Logo”, o campeonato do Corinthians só pode ter sido roubado. Excelente pretexto para os perdedores. No que diz respeito ao cenário nacional e sua sôfrega crise, este escriba tem tentado ao longo de diversos artigos distinguir roubalheiras e roubalheiras, precisando as semelhanças e diferenças entre as máfias que assolam o país de eleição em eleição, imperturbáveis. Como corintiano, cabe perguntar: o que a máfia russa que comprou o Corinthians tem a ver com a máfia do apito que comprou os jogos anulados (são tão diferentes quanto os tucanos e os petistas, nas suas origens e métodos, embora sejam também igualmente nefastos)? Os jogos remarcados tiveram que ser ganhos, ninguém levou pontos de ninguém fora de campo. Quem está de fora só vê os erros de arbitragem a favor do Corinthians, quem estava dentro do Pacaembu viu todos os erros contra. Como acontece em qualquer campeonato.

A fiel deveria estar envergonhada por ver o time da Democracia Corintiana vendido a uma corporação transnacional que faz lavagem de dinheiro para o crime organizado? Ou por ter ganho um campeonato que teve jogos anulados e erros de arbitragem (para todos os lados)? Pelo contrário, está orgulhosa de ver o Corinthians sobreviver a mais uma direção usurpadora. Quem sobrevive nessas condições, merecer ser campeão. Time & torcida. O Corinthians de 2005 não pertence à MSI de Kia, pertence aos corintianos, que ao longo do campeonato estiveram jogo a jogo com o time. A equipe campeã se provou corintiana dentro de campo. Para a torcida, isso basta. O Corinthians é dos corintianos, não do iraniano. O Corinthians é do povo, não dos dirigentes. Os dirigentes passam, o Corinthians fica.

Parafraseando o poeta, eles passarão, nós passarinho!
Nóis gavião!
Nóis campeão!

Daniel M. Delfino
04/12/2005

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