(Comentário sobre o mangá "Lobo Solitário")
Nome original: Kozure Okami (no Japão, edição de 1995), Lone Wolf and Cub (Estados Unidos, editado em 2001)
Versão brasileira em 28 exemplares, publicados entre 12/2004 e 04/2007
Editora Panini Comics
Da próxima vez que passar batido por uma banca de jornal, você pode estar deixando para trás, no meio de toneladas de lixo impresso, como as Vejas e revistas de fofocas, um verdadeiro tesouro da literatura universal. Esse tesouro se esconde, surpreendentemente, na seção de gibis, mais especificamente, na subseção de mangás, os gibis japoneses, e atende pelo nome de “Lobo Solitário”. Este clássico mangá, mais do que um simples gibi, alça-se à altura de uma obra literária no sentido mais pleno da palavra.
Para entender como uma obra de autêntica literatura pode ter ido parar na seção de gibis, é preciso ter em mente as diferenças entre o mercado editorial brasileiro e o japonês. O mercado de gibis no Japão é infinitamente mais diversificado do que no Brasil e mesmo nos Estados Unidos e na Europa. Lá se encontram mangás sobre todos os temas e para todos os públicos, de executivos a donas de casa, de infantis a eróticos, de samurais a monstros espaciais. Na terra do sol nascente, os pequenos volumes em branco e preto produzidos em massa são encontrados nas mãos de qualquer pessoa e em qualquer ambiente, devorados avidamente nas filas, nas praças e nos vagões de metrô.
No meio da avalanche editorial dos mangás, verdadeiras obras-primas são eventualmente produzidas, como é o caso de “Lobo Solitário”, publicado originalmente na década de 1970. Com mais de 8.000 páginas, o clássico do roteirista Kazuo Koike e do desenhista Goseki Kojima alcançou imediato sucesso de público e consagração da crítica. Em poucos anos o mangá que conta a história do samurai Ito Ogami chegou aos Estados Unidos e se tornou uma das influências fundamentais do grande Frank Miller, mestre absoluto das HQs estadunidenses.
No Brasil, “Lobo Solitário” já foi lançado duas vezes sem sucesso, no início dos anos 90, quando os mangás e animes (desenhos japoneses) não estavam na moda e eram cultuados por uma reduzida tribo de fanáticos. Esses fanáticos quedaram irremediavelmente deslumbrados pela violência avassaladora e pelo refinamento visual e narrativo deste inigualável mangá. Infelizmente, apenas uma pequena parte da epopéia veio a ser conhecida dos leitores, pois essas duas fragmentárias tentativas de publicação naufragaram na estreiteza do mercado brasileiro. Estes fanáticos agora esperam ardentemente que o novo lançamento cumpra a promessa de completar a publicação da história.
“Lobo Solitário” é pois um mangá de samurai. O samurai do título, Ito Ogami, não é na verdade solitário, pois perambula pelo Japão levando consigo seu filho de três anos Daigoro, num carrinho de bebê. Ele é conhecido em alguns lugares pelo bizarro apelido de “assassino do carrinho de bebê”. Ito Ogami também não é na verdade um samurai. Ele é um “ronin”, um samurai sem mestre. No sistema feudal japonês, o soldado sem suserano está automaticamente excluído da sociedade, condenado a cometer suicídio em nome de sua honra ou vagar pelo país como ladrão ou mendigo.
Entretanto, Ito Ogami não é um ronin comum, porque seu mestre não era um suserano qualquer. Ogami era vassalo do próprio Shogun, o ditador militar que governava o Japão, eclipsando a dinastia imperial. O cargo de Ogami era um dos mais prestigiosos dentro da hierarquia do poder shogunal. Ele era o “kogi-kaishakunin”, o decapitador, o carrasco, o executor oficial do Shogun. Os nobres rebeldes, derrotados, caídos em desgraça e condenados pelo governo eram obrigados a cometer “seppukku”, o suicídio ritual, cortando as próprias vísceras com um punhal, ajoelhado na presença de oficiais da corte, num suplício extremamente doloroso. Um dos oficiais presentes era o executor, encarregado de decepar a cabeça do condenado com um único golpe de espada, pondo fim ao sofrimento.
Esse era o trabalho de Ogami e para isso ele foi selecionado entre as mais nobres famílias e os mais habilidosos espadachins. A ascensão de Ogami ao posto de kaishakunin nunca foi aceita pelo clã rival dos Yagiu, que sempre cobiçaram o poder. Assassinos e espiões do Shogun, os Yagiu tramaram para que o clã Ogami caísse em desgraça perante o governo. A família inteira foi massacrada, restando apenas Ito Ogami e seu pequeno filho Daigoro. Ogami podia optar por cometer suicídio como os nobres a quem executara, ou tornar-se um proscrito e vagar pelo país como uma sombra amaldiçoada e sem honra.
Convencido de que o governo do Shogun se tornara corrupto e indigno, Ogami escolhe degradar-se como ronin e viver como assassino de aluguel. Assim ele espera chamar a atenção dos oficiais do governo para a injustiça de que foi vítima, jogando a traição dos Yagiu na própria face do shogunato. Os Yagiu, por sua vez, farão de tudo para se livrar de Ogami e acobertar os detalhes de sua indigna ascensão. Ito Ogami, o ex-executor oficial do Shogun, se torna um assassino de aluguel e passa a oferecer suas inigualáveis habilidades com a espada a quem quer que possa pagar o preço de 500 “ryos” (peças de ouro).
Fiel a seu sentido particular de honra, o Lobo Solitário se entrega a uma vingança que se prolonga em intermináveis e cegas matanças. Entretanto, a justiça também é cega, e a espada de Ogami, embora comprada a peso de ouro, sempre acaba encontrando um modo moralmente correto de agir. Como um perfeito herói budista, ele encontra o caminho do meio entre as tentações e intrigas do mundo.
A escolha de Ogami de tornar-se ronin serve de pretexto para que o roteirista Kazuo Koike coloque seu personagem em todas as situações imagináveis e em todos os tipos de intrigas. A história é estruturada em centenas de pequenos episódios, que podem ser lidos de forma tematicamente independente, sem uma seqüência narrativa obrigatória. Como um quebra-cabeça que se forma aos poucos, a trama de que Ogami foi vítima e os detalhes de sua rivalidade com os Yagiu se descortinam lentamente diante do leitor. A pressa ocidental, que quer a qualquer custo saber se Ito Ogami teve sucesso em sua vingança, deve ser posta de lado, em nome da paciência oriental que sabe que, mais importante do que o destino, o que importa é a própria viagem.
A nova publicação brasileira da viagem do “Lobo Solitário” tem o mérito de seguir a forma tradicional de leitura dos mangás, em que os quadrinhos devem ser lidos de “trás para frente” e da direita para a esquerda. Por outro lado, a nova publicação optou por um formato de página reduzido, que não beneficia a refinada arte de Goseki Kojima. Os quadrinhos por vezes são pequenos demais e a leitura dos balões um tanto incômoda.
Mas isso são detalhes que um fanático despreza pelo simples prazer de ter em mãos essas páginas impecáveis. Se o seu conteúdo, por força da complexidade narrativa e da intensidade dramática, merece ser chamado de literatura, o seu visual se equipara ao do cinema. Há momentos em que apenas as imagens carregam a história. Há páginas e páginas sem uma palavra escrita sequer. Toda a tensão da narrativa está nos olhares e nos gestos dos personagens, ou se dissolve no significativo silêncio de paisagens pitorescas e idílios zen.
É claro que além de densidade narrativa e refinamento visual, “Lobo Solitário” oferece também ação em doses fartas. Cada um dos episódios de que se compõe a história se resolve invariavelmente num duelo de espadas, onde o mestre Ogami demonstra sua indiscutível superioridade diante de adversários mortalmente surpresos. O desprezível ronin mostra-se afinal um guerreiro imbatível, um mestre consumado em todas as artimanhas e estratégias da luta de espadas e da arte da guerra em geral, para surpresa dos que o menosprezaram. Nesse aspecto, não se trata de um gibi para crianças, mas de uma obra madura, extremamente violenta e sanguinária.
Claro que além do interesse estético que desperta e da ação vertiginosa que exibe, o mangá serve também como um alentado documento histórico. Por meio da viagem sem fim de Ogami, podemos observar um amplo painel da sociedade japonesa do Período Tokugawa. Nobres, samurais, ronins, clérigos, artesãos, comerciantes, camponeses, bandidos (yakuza), artistas, crianças, ninjas, gueixas, todos desfilam diante do leitor, atravessando o caminho de Ogami e Daigoro como máscaras num teatro. Ficamos assim conhecendo os costumes, tradições, lendas, narrativas, mitos, elementos culturais característicos de uma época crucial para a definição do caráter do povo japonês.
O Período Tokugawa, no qual se desenrola a história do ronin Ito Ogami, é atravessado por uma contradição fundamental que diz respeito ao papel social dos samurais. Esse período se inicia com a batalha de Sekigahara, em 1600, na qual Tokugawa Yeyasu derrotou a coligação de seus rivais e pôs fim a um século de guerras civis entre os nobres que se digladiavam pelo posto de Shogun. A dinastia Tokugawa passou a governar de maneira incontestável até 1868, quando foi deposta pela Revolução Meiji. Nesses mais de 200 anos, o Japão se fechou totalmente à influência exterior, desenvolvendo uma forma peculiar de estrutura social.
A sociedade Tokugawa era rigidamente estratificada. Camponeses não podiam usar armas. Samurais não podiam trabalhar na terra. Uma classe deveria viver à custa de tributos cobrados da outra. O valor de uma província se media pela quantidade de sacas de arroz que ela podia produzir anualmente, que dava a medida da quantidade de samurais que podia sustentar. Os samurais nasciam samurais, assim como os camponeses nasciam camponeses, e a mesma coisa com relação a artesãos, comerciantes, etc. Era impossível passar de uma classe social para outra. O sistema de classes se transforma num sistema de castas hereditárias. Apesar da sua rigidez, a Era Tokugawa foi um período de relativa paz social e de razoável prosperidade econômica, com grande explosão populacional. Não havia mais guerras entre os nobres, de modo que todos podiam trabalhar em paz.
Mas se não havia mais guerras, qual era a utilidade dos samurais? Justamente no momento em que os samurais se tornam guerreiros no sentido pleno da palavra, eles se tornam também socialmente inúteis. Foi apenas na Era Tokugawa que o modo de vida dos samurais foi institucionalizado com o nome de “bushido”, o “caminho do guerreiro”. Antes disso, na época das guerras civis, havia uma confusão natural entre as classes e uma maior “frouxidão” de costumes. Camponeses usavam espadas, soldados fugiam da derrota, plebeus se tornavam governantes, etc. Quando essa Era de guerras civis terminou, os samurais tiveram que idealizar o passado. Racionalizaram sua própria condição social e se dedicaram a tornar-se samurais propriamente ditos.
Foi então que os ideais de honra e de sacrifício ganharam proeminência na cultura japonesa. O mito do samurai que se sacrifica por seu mestre é uma espécie de tipo romântico tardio, que não correspondia à realidade social do período em que os samurais de fato duelavam, mas se tornou um mito extremamente popular. Sendo mito ou não, e sendo o samurai socialmente inútil ou não, o bushido inspirou o aparecimento das artes marciais e de uma estética japonesa peculiar, como a da curiosa e sofisticadíssima cerimônia do chá, cultivada pela classe samurai. A ética do bushido era levada extremamente a sério por autênticos samurais, entre os quais o personagem de Ito Ogami aparece como um exemplo consumado.
O fato de que o maior dos samurais tenha que se tornar um ronin mostra que havia algo de podre no reino dos espadachins. O poder da dinastia Tokugawa em Edo (Tóquio) era incontestável e todos os pequenos nobres das pouco mais de duas centenas de províncias sabia disso. Ninguém ousaria desafiá-lo para a guerra aberta pelo poder. Restava aos clãs nobres lutar entre si pelos favores do governo central ou para roubar as terras dos rivais. Para isso, precisavam desacreditar esses rivais perante o governo, o que era conseguido com o emprego de espiões (ninjas) e assassinos, o que constitui terreno fértil para as tramas de intrigas.
O Lobo Solitário trafegava por essas intrigas e saía ileso. Seu destino trágico era a máxima expressão da contradição do bushido. Indiferente a seu próprio futuro, ele tomava a estrada tranqüilamente, como uma folha ao vento, à espera da próxima missão, ou de uma tocaia iminente de seus inimigos, à espreita atrás da próxima curva...
Daniel M. Delfino
07/02/2005
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