(Comentário sobre o filme “Um dia sem mexicanos”)
Nome original: A day without a mexican
Produção: Estados Unidos, México, Espanha
Ano: 2004
Idiomas: Inglês, Espanhol
Diretor: Sergiu Arau
Roteiro: Sergiu Arau, Yareli Arizmendi
Elenco: Caroline Aaron, Tony Abatemarco, Melinda Allen, Frankie J. Allison, Fernando Arau, Yareli Arizmendi, Todd Babcock, Maria Beck
Gênero: comédia, drama, fantasia
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/
Nesta comédia misturada com drama social, partimos de um acontecimento fantástico para ter a oportunidade de explorar um curioso recorte da realidade social estadunidense e especificamente californiana. O que aconteceria se, da noite para o dia, todos os mexicanos que moram na Califórnia desaparecessem? Pois bem, o autor do filme, o mexicano Sergio Arau, nos dá a resposta. Sua obra procura jogar para a platéia de ambas as nacionalidades, ou ambas as culturas, a reflexão sobre a importância da presença desse contingente populacional “alienígena” para a construção do estado.
Uma espécie de névoa cerca a Califórnia, cortando qualquer tipo de comunicação. E ao mesmo tempo, os mexicanos desaparecem. A partir da desaparição, os estadunidenses “puros” terão que aprender a viver sem a mão de obra barata dos mexicanos. O nível mais óbvio da análise aponta para o fato de que os mexicanos são os responsáveis por todos os serviços subalternos e proletarizados: colheita agrícola, serviços domésticos, postos de gasolina, motoristas de táxi, etc.
Mas isso é apenas uma das faces do problema. O desaparecimento súbito dos mexicanos dá margem a uma discussão que do nosso ponto de vista latino-americano não faz muito sentido, mas para a audiência dos dois países em questão, é muito relevante. O que é um “mexicano” e o que é um estadunidense? Em certo momento, o filme é obrigado a explicar, didaticamente, que abaixo do Rio Grande existem mais de quarenta países. Por incrível que pareça, para o estadunidense típico, que em regra desconhece o que se passa no resto do mundo, essa informação não é desnecessária.
Na cabeça desse estadunidense típico, todo imigrante ilegal é “mexicano”, mesmo que seja guatemalteco, hondurenho, brasileiro, etc. “Mexicano”, nesse contexto simbólico, ganhou uma conotação quase pejorativa, como os termos “chicano”, ou “cucaracho”, equivalentes para o “nigger” que se usa depreciativamente para os negros.
Se esses imigrantes não são todos “mexicanos”, o que são então? Latinos? Hispânicos? A denominação do grupo desaparecido é um dos aspectos importantes da questão levantados pelo filme. Há outros. O mais importante deles talvez seja o da História. A própria Califórnia, além do Texas e de outros Estados, foram roubados do México no século XIX. É no mínimo bizarro que os mexicanos (sem aspas) sejam tratados como imigrantes estrangeiros ilegais em cidades que se chamam Los Angeles, San Francisco, San Diego, etc., nomes que não tem nada de anglo-saxão. Logo, do ponto de vista histórico, quem é estrangeiro e quem é “alienígena” na terra de quem?
Na época da pilhagem imperialista sobre o território do México, Marx considerou historicamente progressiva a anexação da Califórnia pelos Estados Unidos, pois isso significaria um passo adiante na dinamização da economia mundial, em direção à consolidação do capitalismo e sua superação. O velho Marx, otimisticamente, colocou o carro na frente dos bois, já que não contava com a hipótese absurda da sobrevivência do capitalismo por mais de um século.
Mas ele estava certo ao final, pois a História, também nesse caso, está na base das determinações subjacentes que articulam uma certa realidade social dada. No século XXI, o fenômeno da imigração de trabalhadores mexicanos sazonais para a Califórnia reflete a globalização do mercado de trabalho, em direção à constituição de um proletariado mundial. A Califórnia pertence aos mexicanos não apenas porque foi roubada deles no passado, mas porque é construída por eles no presente. Para ilustrar esse fato, temos ao longo da exibição um instrutivo desfile de estatísticas.
- A Califórnia é a 5a. maior economia do mundo, gabam-se os californianos. Ou seja, em termos econômicos, o estado tomado isoladamente só é menor que o conjunto dos demais 49 componentes dos Estados Unidos, e do que algumas das maiores economias estrangeiras como a Alemanha, o Japão e o Reino Unido.
- A maior contribuição para a economia da Califórnia não vem da renda gerada pela indústria de cinema de Hollywood, nem das empresas do ramo de alta tecnologia situadas no chamado Vale do Silício, mas da agricultura.
- 90 % da colheita agrícola é feita por imigrantes ilegais. Trabalhadores sazonais que cruzam a fronteira na estação da colheita e voltam para casa tão logo o ciclo de trabalho se encerre, sem o direito de estabelecer vínculos. Um dos personagens mais afetados pela desaparição é um fazendeiro que emprega mexicanos para a colheita de laranja. Mas o fazendeiro em questão é simpático aos seus trabalhadores, ao contrário do próprio filho, que lidera protestos na fronteira dizendo aos mexicanos que a terra não lhes pertence. O filme dá margem assim a que se manifestem diversas opiniões a respeito da presença mexicana.
- A direita acusa os mexicanos de usarem indevidamente os serviços sociais (escolas, hospitais, etc.) do estado da Califórnia, onerando o governo com gastos que deveriam ser destinados apenas à população “nativa”. Um acadêmico da UCLA faz a conta e desmonta esse discurso. Os mexicanos contribuem com U$ 100 bilhões para a economia da Califórnia. Mas a direita local reclama dos U$ 3 bilhões que essa população consome em serviços sociais. Nada mais típico do que a hipocrisia e a cegueira social dos economistas.
Por meio desses dados, temos uma noção do quanto a economia californiana depende dos imigrantes ilegais mexicanos e latinos em geral, e também do grau de exploração a que essa população é sujeita. Entretanto, ao reforçar a identidade da população mexicana e latina enquanto classe proletarizada, o filme superficialmente desvia essa identidade e a situa no plano de um vago multiculturalismo estadunidense, não na concretude da condição histórico-mundial de classe. Não falta sequer o tradicional discurso apologético de que “somos todos cidadãos desse grande país”, etc.
Mesmo situando-se parcialmente no plano da denúncia social, o filme não se propõe a lançar a luta de classes entre mexicanos e estadunidenses. Não há uma ruptura ideológica completa. Tudo ficaria bem se os mexicanos fossem recebidos de volta como bons amigos. Essa é a mensagem final. A superficialidade da solução apontada decorre claro da natureza do projeto de Sergio Arau, que não tem seu foco na denúncia social a que subsidiariamente se presta. Mais do que um panfleto político, trata-se de uma curiosa e inventiva comédia de costumes e contrastes.
A inventividade fica por conta da estética de televisão. E nessa estética de televisão, reconhece-se nitidamente o roteiro característico de uma tradicional novela mexicana. Conduzindo a trama, temos linhas narrativas paralelas com filhos trocados (oh! a heroína nem sequer é mexicana!), adultério, amantes latinos, etc. Além do aspecto de conteúdo, a estética televisiva também é evidente no plano da estrutura formal.
O filme foi montado como uma colagem de reportagens, que acompanham os personagens principais. O que temos em tela é o retrato de uma sociabilidade mediada pela TV. Mesmo na hipótese fantástica do isolamento completo do estado, a televisão não deixa de funcionar. A rigor, a Califórnia fica não apenas sem mexicanos, mas também sem qualquer contato com o mundo exterior. Mas a vida continua e os californianos, com sua TV local, adaptam-se e reencontram uma certa normalidade. As redes locais de TV são um fenômeno de muito mais peso nos Estados Unidos do que no Brasil, por exemplo. Um estado brasileiro isolado pararia completamente sem as transmissões da rede Globo, mas não um estado estadunidense, que tem suas redes locais auto-suficientes.
O que interessa ao filme explorar não é a auto-suficiência do estado, claro, e sim o misterioso fenômeno da desaparição em massa dos mexicanos. Nesse aspecto, o que salta à vista é o nível cultural absurdamente baixo da platéia. As mais bizarras teorias são seriamente consideradas para explicar o fenômeno da desaparição: conspirações, operações secretas do governo, alienígenas, apocalipse, quinta dimensão, fator L, etc. Claro que essas hipóteses somente são levantadas porque se trata de uma comédia. Mas toda a comédia só é plausível porque a brincadeira tem um fundo de verdade. Tudo não passa de uma farsa. A perseguição que os guardas da fronteira fazem aos mexicanos que tentam cruzar o muro é bastante satirizada. Uma das cenas mais hilárias acontece ao final, quando a misteriosa névoa se dissipa e a polícia de guarda da fronteira se confraterniza com os assustadiços mexicanos recém-reencontrados.
A comicidade não estaria completa sem a musicalidade. A clássica “Califórnia dreaming” ganha uma bizarra versão com acento latino, que para os ouvidos puristas deste escriba só não soa completamente trágica porque se presta bem ao contexto de comédia. Assim como a trilha sonora rap sintomaticamente composta em “spanglish”.
Há que se destacar finalmente a espantosa similaridade entre a cultura televisiva estadunidense e a brasileira. Muito do que acontece na TV estadunidense se repete ipsis literis no Brasil. O estilo popularesco dos programas de TV do filme é metabolizado sem dificuldade pelo espectador brasileiro, que de imediato reconhece e assimila as fórmulas de programação com as quais está habituado. Em televisão, nada se cria e tudo se copia. A “Lila-cam” exemplifica a era da TV pós-Big Brother. A TV brasileira é uma versão “paraguaia” daquela de nosso Grande Irmão do norte, sem ofensa aos “hermanos” da nação guarani.
Por último, nesses momentos de televisão “trash” em que se transformou a política nacional, não é demais destacar, no filme, a falta de caráter do senador que se torna oportunisticamente amigo dos mexicanos, sendo que antes os perseguia. O México está mais próximo do que pensamos.
Daniel M. Delfino
07/08/2005
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