Em fins de outubro de 2006, alguma coisa estranha começou a acontecer nos céus do Brasil. Os aviões começaram a pousar atrasados nos aeroportos. Duas, três, quatro horas de atraso. Dezenas, centenas, milhares de vôos atrasados. Não sendo freqüentador de aeroportos, este escriba limitou-se a acompanhar as notícias a respeito desse fenômeno através de notas na televisão e na internet. Mas a princípio foi muito difícil entender o que estava acontecendo.
Os aviões estavam atrasando? Atrasando por quê? Será que de repente começaram a ficar mais lentos? Que tipo de bizarra distorção das leis da física poderia provocar a lentidão repentina dos engenhos aeronáuticos? O ar no Brasil começou a ficar inexplicavelmente mais espesso? Os ÓVNIs abandonaram a prática das abduções individuais e partiram diretamente para os raios de tração sobre os aviões? Refratário a explicações não-científicas, este escriba partiu para outras possíveis respostas, mesmo assim sem muito sucesso.
Será que o número de aviões multiplicou-se de maneira súbita e imprevisível? Da noite para o dia, o caos do trânsito nas metrópoles reproduziu-se no céu? Na cidade o trânsito às vezes pára por causa de um único carro com pneu furado em alguma avenida crucial para a circulação urbana. Mas como isso poderia acontecer com aviões, e simultaneamente em vários aeroportos do país?
Em vão tentava-se entender o mistério do atraso dos aviões. Somente depois de várias semanas foi possível descobrir que não havia nenhum fenômeno místico se desdobrando no espaço aéreo brasileiro. Para fazer essa descoberta, foi preciso juntar os cacos de diversas informações fragmentadas. O que estava em curso era uma GREVE. Uma GREVE, com nome e sobrenome: operação padrão. Os controladores de vôo dos aeroportos começaram a cumprir os normativos. Passaram a trabalhar com o número correto de aeronaves que cada um deve acompanhar. E enquanto cada aeronave recebe o devido acompanhamento, as demais esperam. Enquanto esperam, precisam manter-se no ar. E isso provoca os atrasos. Elementar, meu caro Watson.
Descoberta a verdade sobre o fenômeno, multiplicaram-se as interrogações: por que a mídia não pode pronunciar o nome (GREVE) da operação padrão dos controladores de vôo? Por que motivo a GREVE estalou neste preciso momento e não em outro? E o que talvez seja a interrogação mais preocupante de todas: se agora que os controladores de vôo estão cumprindo os normativos os aviões estão atrasando, isso quer dizer que durante todo o tempo em que pousavam no horário correto, os aviões estavam voando sem o devido acompanhamento de segurança?
Em relação à mídia, trata-se de um sintoma do seu modo estrutural de funcionamento: apresentar os dados de maneira fragmentada, justapostos arbitrariamente sem nenhuma conexão orgânica. Dessa forma, o receptor da “informação” fica impossibilitado de entender o que está acontecendo, porque não pode ter a percepção de como os diversos fatos particulares, apresentados numa avalanche infindável, se articulam na totalidade do real. Sem entender a relação entre os fatos, o público receptor permanece passivo, esperando ansiosamente pela próxima “informação”.
Para entender a GREVE dos controladores de vôo (e também a tentativa da mídia de não explicá-la) é preciso relacioná-la com o restante da realidade nacional. Os controladores de vôo fazem parte do quadro de pessoal da Aeronáutica. Estão sujeitos aos regulamentos militares. Portanto, estão proibidos de fazer GREVE. Uma GREVE no interior das Forças Armadas caracteriza-se como quebra de hierarquia. E a hierarquia é a própria essência do dispositivo militar, portanto não se pode admitir a sua ruptura. As Forças Armadas são a instituição fundamental do Estado burguês, pois através dela preserva-se pela força a ordem social capitalista que opõe hierarquicamente dominadores e dominados. Por isso a hierarquia em seu interior é tão fundamental.
A mídia, que é outro dos pilares fundamentais do sistema, bate continência e proíbe a si mesma de pronunciar a satânica palavra proibida: GREVE. Além de prestar obediência servil ao princípio hierárquico, a mídia também tratou de desempenhar a tarefa na qual é especialista: desmoralizar a organização coletiva dos trabalhadores. Passaram a circular notícias de que somente 3% dos controladores de vôo falam inglês. Com isso, o público espectador passa a associar aos controladores a idéia de que são atrasados, incompetentes, desatualizados. Essa idéia converge com a ideologia contemporânea da globalização de que “todos precisam falar inglês para competir no mercado”, etc. Por meio dessa associação subliminar, o espectador cede à campanha da mídia de promoção da globalização e do mercado, ou seja, de privatização neoliberal e destruição da soberania nacional.
O que explica a GREVE dos controladores de vôo não é o fato de que não “falam inglês”, mas o fato de que o Estado brasileiro está sendo sucateado para ser vendido aos pedaços para o capital estrangeiro. Um Estado sucateado como o do Brasil não contrata servidores públicos, nem mesmo para um setor estratégico como as Forças Armadas. Sem um número adequado de funcionários, os trabalhadores são obrigados a arcar com um acúmulo desproporcional de serviço. Um número pequeno de trabalhadores faz o serviço que caberia a uma quantidade muito maior. Cada controlador de vôo lida com muito mais aviões do que deveria.
Quando a exploração da força de trabalho se torna inaceitável, os trabalhadores partem para a GREVE. Toda GREVE é mediada pelo estado concreto de consciência do setor do proletariado em movimento. No caso do setor em questão, o grau de consciência que produziu massa crítica para a GREVE foi proporcionado pela mediação do maior desastre aéreo da história brasileira: o choque entre o jato Legacy e o boeing da Gol que provocou a morte de 154 passageiros e tripulantes.
As especulações subseqüentes ao desastre terminariam por jogar a culpa sobre os controladores de vôo. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco. De um lado, o mentecapto Estado brasileiro não pode responsabilizar os pilotos estadunidenses, já que, como vassalos que somos, não podemos jamais desacatar a hierarquia da dominação imperial. (Imagine-se a situação inversa: pilotos brasileiros provocam a morte de centenas de cidadão estadunidenses. O desdobramento dessa hipótese é óbvio, os brasileiros jamais sairiam vivos do território estadunidense: linchamento, cadeira elétrica ou prisão perpétua. Já os pilotos estadunidenses...).
De outro lado, também não se pode colocar a culpa numa eventual falha dos equipamentos do Legacy da Embraer, pois isso queimaria a imagem de uma empresa sólida, fundamental para a pauta de exportações brasileira. Essa hipótese, cogitada pela mídia brasileira, que nunca cogitou de culpar a Boeing, também teve de ser descartada (aliás, como é possível que, num choque entre uma aeronave de grande porte e uma de pequeno porte, a maior caia e a menor escape praticamente ilesa? Como se um ônibus e uma bicicleta colidissem, mas só o ônibus se arrebentasse. Isso também não contraria as leis da física? Este escriba não acredita em bruxas, mas que existem, existem...).
As apurações ainda não encontraram um culpado conveniente. Logo, uma vez que os pilotos estadunidenses são naturalmente infalíveis, a culpa só poderia ser dos incompetentes controladores de vôo brasileiros, que não falam inglês. Óbvio.
A culpa é nossa? GREVE!!! Operação padrão!!! E tome “atrasos nos vôos”!!!
A operação padrão dos controladores de vôo deixa uma lição inestimável para todos nós trabalhadores.
Há mais mistérios entre os céus do Brasil e a consciência dos trabalhadores do que sonha a filosofia mística da mídia vendida.
Daniel M. Delfino
16/11/06
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