“É muito bom ganhar da Argentina!” Essa frase, pérola do chauvinismo futebolístico, traz a essência de um certo pensamento obscurantista e reacionário que se interpõe como um obstáculo impedindo a compreensão mútua entre os povos. De acordo com essa frase, o argentino fica parecendo uma espécie à parte de ser humano, uma espécie detestável, contra a qual “nós” representamos o conjunto de todas as virtudes. “Nós” somos o lado bom do mundo e “eles” o mal.
De acordo com esse pensamento, quando ganhamos da Argentina, realizamos uma espécie de dever cívico-metafísico. Nunca se pode subestimar o peso que os sucessos esportivos e futebolísticos tem representado em termos de alienação e manipulação política. Um inocente final da Copa América possui um aspecto totalmente inofensivo, de simples disputa esportiva, e um aspecto alienado, de chauvinismo escancarado. Estamos explicitamente estendendo a rivalidade futebolística para a esfera das relações geopolíticas. Nessa esfera, por mais que o Brasil e a Argentina sejam rivais, seus destinos estão mais próximos do que os narradores de futebol alucinados imaginam.
A Argentina é o Brasil amanhã. Geralmente, o que acontece no país portenho como tragédia, se repete no Brasil como farsa alguns anos depois. A Argentina passou pela experiência de um plano de ajuste neoliberal, capitaneado por um político farsante, que se reelegeu na onda dos capitais especulativos e entregou o poder a um sucessor da oposição apenas para que este tentasse administrar a crise do modelo implantado. O fracasso desse sucessor determinou o seu afastamento por obra dos “panelaços” da população de Buenos Aires.
O Brasil tem seguido à risca a letra desse triste tango. Falta-nos apenas o momento decisivo em que o sucessor vindo da oposição sucumbirá à crise do modelo ou optará por mudá-lo. Enquanto aguardamos esse momento decisivo, somos brindados com o espetáculo futebolístico de uma final da Copa América entre Brasil e Argentina. A final, inédita desde que a competição adotou seu formato atual, em 1987, acontece na seqüência de um episódio de guerra comercial. Recentemente, Brasil e Argentina estiveram envolvidos numa áspera disputa comercial, que girava em torno das exportações brasileiras de eletrodomésticos para o país portenho.
Tanto uma disputa como a outra são tomadas aqui como exemplos da situação precária que ambos os países atravessam. Tomemos, em primeiro lugar, o exemplo do futebol. Se o Brasil está “condenado” a repetir a Argentina, deveria tentar pelo menos repetir o que eles fazem de bom, ao invés de imitar o modelo neoliberal fracassado. A Argentina tem conseguido salvar o seu futebol da barafunda na qual o nosso está afundando.
Atualmente, o futebol brasileiro se transformou num futebol de 2ª. Divisão. Não temos mais a pretensão de sediar campeonatos interessantes. Nossos clubes servem apenas como porta de saída para que jogadores brasileiros se exponham ao mercado europeu, onde o verdadeiro futebol é disputado. Os clubes, saqueados por “dirigentes” do tipo coronelista-corrupto-pré-histórico, estão em estado pré-falimentar.
Nenhum clube possui um time, possui um amontoado de jogadores, um “catado”, como se diz na gíria futebolística. Um amontoado de jogadores unidos por arranjos contratuais precários, que podem ser rompidos por qualquer uma das partes a qualquer momento. Não existe uma temporada de campeonatos, um calendário de competições, existe uma pessimamente organizada agenda de compromissos ao longo dos quais os torcedores terão uma esmola de futebol e as emissoras de TV um produto com o qual preencher buracos na sua grade de programação.
O futebol argentino não possui uma força institucional muito maior que o brasileiro; seus clubes não são mais muito mais capazes de reter jogadores, já que a economia do país está tão falida quanto a do nosso. Mas a federação Argentina foi capaz de adotar uma medida que deu sobrevida aos campeonatos argentinos, que agora possuem um balão de oxigênio para respirar, ao contrário dos nossos, que estão jogados às traças. Em 1990, a Argentina vinculou o seu calendário futebolístico ao da Europa. Os campeonatos argentinos começam e terminam aproximadamente nas mesmas datas que os europeus.
O resultado é que temos, na Argentina, dois campeonatos por ano. O campeonato argentino possui 20 times, que disputam um turno de ida, no segundo semestre, chamado “Torneo Apertura”, e um turno de volta, no primeiro semestre do ano seguinte, chamado “Torneo Clausura”. Assim como a temporada européia, que começará em setembro próximo e irá até maio de 2005. Na Europa, não temos um campeão de cada ano, mas um campeão da temporada 2003/2004, 2004/2005, etc. Na Argentina, temos a cada ano o campeão do “Apertura” e o do “Clausura”.
Essa fórmula Argentina sempre me repugnou extremamente. Sempre me pareceu desagradável ter dois campeões por ano, e especialmente, seguir um calendário de outro continente, o qual foi criado para respeitar a cultura de outros povos. No hemisfério norte, as estações do ano se sucedem com grande regularidade, de modo que as atividades sociais devem respeitar o fato de estarem os europeus no inverno ou no verão. Coisa semelhante também acontece nos Estado Unidos, onde temos a temporada das férias de verão, nos meses de junho e julho, nos quais os estúdios de cinema lançam seus “blockbusters”, filmes de ação e outros voltados para esse público jovem.
Seja como for, essa fórmula da Argentina, apesar de esteticamente desagradável, tem assegurado aos times portenhos uma certa estabilidade. Estou inclinado a recomendá-la para o Brasil, como se recomenda um remédio amargo. O remédio surtiu algum resultado no cenário portenho. Lá, ao contrário daqui, não há êxodo de jogadores no meio dos campeonatos. Os contratos pelo menos duram um semestre. A ida dos jogadores para a Europa acontece em uma escala talvez equivalente à do Brasil, em número, mas de forma organizada, respeitando a temporada européia de contratações.
Como resultado disso, os times não são um amontoado de jogadores. Eles pelo menos tem o propósito de permanecer juntos durante um certo prazo de disputa. Os times tem um projeto, um plano de trabalho, um rumo, uma direção. É por isso que os times argentinos mantém uma certa grandeza. São instituições respeitáveis. É por isso que os brasileiros tremem, por ocasião de uma Libertadores da América, ao ter que enfrentar um Boca Juniors em “La Bombonera” ou um River Plate no “Monumental de Nuñes”. Os argentinos entram numa competição para vencer; os brasileiros entram com a pretensão de dar espetáculo. É por isso que todo clássico entre Brasil e Argentina assume proporções de um encontro épico.
Por falar em encontro épico, no sentido original do termo, ou seja, de cenário onde o destino dos povos é decidido, passemos às negociações comerciais. Apesar da histeria dos locutores, não é no terreno do futebol que as coisas são decididas. Não tocaremos no espinhoso problema de saber quem é melhor, de comparar Pelé e Maradona, tema sobre o qual pudemos falar recentemente. A respeito das geladeiras, que intitulam a segunda parte desse artigo, é preciso dizer que as coisas vão tão mal como no futebol, o que justifica colocarmos os dois termos no título.
Brasil e Argentina são os principais países do Mercosul. O Mercosul é a pedra fundamental da política externa brasileira, na sua pretensão de se contrapor à Alca, tal como proposta pelos Estados Unidos. O Mercosul é a saída para evitar o estrangulamento da economia brasileira e sul-americana no jogo pesado do comércio internacional. É a peça que os brasileiros podem usar ao tentar expressar alguma importância geopolítica.
E no entanto, o Mercosul vai mal das pernas. O bloco se propõe a ser um bloco de livre-comércio. Mas há barreiras comerciais entre os dois principais países. Há cotas de exportação entre um país e outro. Há produtos brasileiros taxados na Argentina e vice-versa. É claro que sabemos que um bloco econômico não é algo que se cria de uma hora para outra. A União Européia, que é o único bloco razoavelmente bem-sucedido até o momento, precisou de décadas para ser construído.
Mas isso não muda o fato de que o nosso Mercosul ainda não se alçou à dimensão de um projeto capaz de mobilizar inteiramente os dois países. A Europa está consciente de que se não se unir, não sobreviverá à concorrência geopolítica dos E.U.A. e da China. Se a Europa não sobreviverá, que dizer do Brasil e da Argentina? Que possibilidade de sobreviver terão os países periféricos no mundo do imperialismo financeiro-comercial dos mega-blocos e mega-potências continentais do século XXI?
A questão, a meu ver, é mais complexa do que discutir quantas geladeiras e máquinas de lavar o Brasil pode exportar para a Argentina. A questão é na verdade uma crise de projeto civilizacional. A Europa não se uniu senão ao tomar consciência da dimensão fundamentalmente política de sua escolha. As questões econômicas devem ser administradas em função do imperativo político de construir uma alternativa minimamente divergente em relação ao capitalismo radicalmente desregulado dos Estados Unidos.
O Mercosul não possui ainda qualquer dimensão política, que dirá civilizacional. O Brasil, principal motor do bloco, ainda não despertou para a necessidade de uma estratégia de longo prazo. Estamos, como dissemos no começo, presos ao modelo que afundou a Argentina. Os argentinos já passaram por uma experiência de colapso institucional, razão pela qual o seu atual Presidente pôde tomar medidas mais duras de confrontação contra os mentores do modelo, o FMI, por exemplo. Não é por “esquerdismo” ou por radicalismo que Kirchner reluta em aceitar as metas do FMI, é por absoluta falta de recursos no país.
O Brasil ainda não passou por uma crise como a Argentina e ainda tem a ilusão de que pode se sair bem com o modelo em vigor. Ainda continua financiando a usura do capital especulativo, na esperança de aparentar “bom comportamento” e poder ostentar “credibilidade” perante os credores. O Brasil continua carente de maciços investimentos sociais, mas continua preferindo investir obscenos R$ 150.000.000.000 por ano em serviço da dívida.
Dissemos, conforme a mídia inteira assumiu como versão consensual, que a Argentina já passou por um colapso. Isso se refere à crise de dezembro de 2001, em que o Presidente De La Rua foi deposto. Mas a crise apenas tornou a Argentina mais próxima do Brasil. A Argentina vem experimentando um empobrecimento brutal nas últimas décadas, mas o Brasil já é pobre há séculos. Comparativamente, estamos piores, e sempre estivemos. A Argentina não é o Brasil de amanhã, mas o de ontem e de hoje. Se o Brasil imitar a Argentina e passar por uma crise daquele tipo, cairá para um patamar africano de barbárie.
Ao invés de passar pela crise, seria preferível queimar etapas e passar direto para a solução. Romper com o modelo e criar uma alternativa civilizacional divergente e autônoma, centrada nas potencialidades estratégicas do país. Em termos de modelo civilizacional, a alternativa de discutir quantas geladeiras o Brasil pode exportar para outro país pobre como a Argentina é de uma mediocridade infinita, incomensurável, impossível de ser adjetivada.
As chamadas “negociações comerciais” entre países expõem de maneira cabal e drástica inviabilidade do sistema capitalista como modelo civilizacional. Na perspectiva capitalista, os produtos se transformaram em estorvos. O Brasil tem que brigar para que a Argentina aceite comprar suas geladeiras/estorvos. O Brasil tem que fazer isso para manter a indústria eletrodoméstica brasileira trabalhando. Do lado oposto, os trabalhadores argentinos tem que lutar para que as geladeiras/estorvos brasileiras não sejam aceitas, do contrário eles é que perderão seus empregos.
Uma “negociação” desse tipo é de um ridículo escandaloso. Ao invés de um valor de uso projetado para satisfazer uma necessidade, temos um produto/estorvo que um país quer empurrar para o outro. Onde está a racionalidade desse sistema? Onde está a necessidade dos povos? Onde estão as carências de milhões de brasileiros e argentinos? Onde está a prioridade em função da qual a produção deveria ser pensada? Como fazer para que os trabalhadores de cada país organizem as forças produtivas de sua nação da maneira que melhor puder satisfazer suas necessidades? Será que isso é possível através das leis cegas do mercado, que produziram a catástrofe argentina e estão empurrando o Brasil para a barbárie?
Na disputa da Copa América, o Brasil venceu a Argentina. Quanto ao jogo das geladeiras, quem vencerá?
Daniel M. Delfino
24/07/2004
De acordo com esse pensamento, quando ganhamos da Argentina, realizamos uma espécie de dever cívico-metafísico. Nunca se pode subestimar o peso que os sucessos esportivos e futebolísticos tem representado em termos de alienação e manipulação política. Um inocente final da Copa América possui um aspecto totalmente inofensivo, de simples disputa esportiva, e um aspecto alienado, de chauvinismo escancarado. Estamos explicitamente estendendo a rivalidade futebolística para a esfera das relações geopolíticas. Nessa esfera, por mais que o Brasil e a Argentina sejam rivais, seus destinos estão mais próximos do que os narradores de futebol alucinados imaginam.
A Argentina é o Brasil amanhã. Geralmente, o que acontece no país portenho como tragédia, se repete no Brasil como farsa alguns anos depois. A Argentina passou pela experiência de um plano de ajuste neoliberal, capitaneado por um político farsante, que se reelegeu na onda dos capitais especulativos e entregou o poder a um sucessor da oposição apenas para que este tentasse administrar a crise do modelo implantado. O fracasso desse sucessor determinou o seu afastamento por obra dos “panelaços” da população de Buenos Aires.
O Brasil tem seguido à risca a letra desse triste tango. Falta-nos apenas o momento decisivo em que o sucessor vindo da oposição sucumbirá à crise do modelo ou optará por mudá-lo. Enquanto aguardamos esse momento decisivo, somos brindados com o espetáculo futebolístico de uma final da Copa América entre Brasil e Argentina. A final, inédita desde que a competição adotou seu formato atual, em 1987, acontece na seqüência de um episódio de guerra comercial. Recentemente, Brasil e Argentina estiveram envolvidos numa áspera disputa comercial, que girava em torno das exportações brasileiras de eletrodomésticos para o país portenho.
Tanto uma disputa como a outra são tomadas aqui como exemplos da situação precária que ambos os países atravessam. Tomemos, em primeiro lugar, o exemplo do futebol. Se o Brasil está “condenado” a repetir a Argentina, deveria tentar pelo menos repetir o que eles fazem de bom, ao invés de imitar o modelo neoliberal fracassado. A Argentina tem conseguido salvar o seu futebol da barafunda na qual o nosso está afundando.
Atualmente, o futebol brasileiro se transformou num futebol de 2ª. Divisão. Não temos mais a pretensão de sediar campeonatos interessantes. Nossos clubes servem apenas como porta de saída para que jogadores brasileiros se exponham ao mercado europeu, onde o verdadeiro futebol é disputado. Os clubes, saqueados por “dirigentes” do tipo coronelista-corrupto-pré-histórico, estão em estado pré-falimentar.
Nenhum clube possui um time, possui um amontoado de jogadores, um “catado”, como se diz na gíria futebolística. Um amontoado de jogadores unidos por arranjos contratuais precários, que podem ser rompidos por qualquer uma das partes a qualquer momento. Não existe uma temporada de campeonatos, um calendário de competições, existe uma pessimamente organizada agenda de compromissos ao longo dos quais os torcedores terão uma esmola de futebol e as emissoras de TV um produto com o qual preencher buracos na sua grade de programação.
O futebol argentino não possui uma força institucional muito maior que o brasileiro; seus clubes não são mais muito mais capazes de reter jogadores, já que a economia do país está tão falida quanto a do nosso. Mas a federação Argentina foi capaz de adotar uma medida que deu sobrevida aos campeonatos argentinos, que agora possuem um balão de oxigênio para respirar, ao contrário dos nossos, que estão jogados às traças. Em 1990, a Argentina vinculou o seu calendário futebolístico ao da Europa. Os campeonatos argentinos começam e terminam aproximadamente nas mesmas datas que os europeus.
O resultado é que temos, na Argentina, dois campeonatos por ano. O campeonato argentino possui 20 times, que disputam um turno de ida, no segundo semestre, chamado “Torneo Apertura”, e um turno de volta, no primeiro semestre do ano seguinte, chamado “Torneo Clausura”. Assim como a temporada européia, que começará em setembro próximo e irá até maio de 2005. Na Europa, não temos um campeão de cada ano, mas um campeão da temporada 2003/2004, 2004/2005, etc. Na Argentina, temos a cada ano o campeão do “Apertura” e o do “Clausura”.
Essa fórmula Argentina sempre me repugnou extremamente. Sempre me pareceu desagradável ter dois campeões por ano, e especialmente, seguir um calendário de outro continente, o qual foi criado para respeitar a cultura de outros povos. No hemisfério norte, as estações do ano se sucedem com grande regularidade, de modo que as atividades sociais devem respeitar o fato de estarem os europeus no inverno ou no verão. Coisa semelhante também acontece nos Estado Unidos, onde temos a temporada das férias de verão, nos meses de junho e julho, nos quais os estúdios de cinema lançam seus “blockbusters”, filmes de ação e outros voltados para esse público jovem.
Seja como for, essa fórmula da Argentina, apesar de esteticamente desagradável, tem assegurado aos times portenhos uma certa estabilidade. Estou inclinado a recomendá-la para o Brasil, como se recomenda um remédio amargo. O remédio surtiu algum resultado no cenário portenho. Lá, ao contrário daqui, não há êxodo de jogadores no meio dos campeonatos. Os contratos pelo menos duram um semestre. A ida dos jogadores para a Europa acontece em uma escala talvez equivalente à do Brasil, em número, mas de forma organizada, respeitando a temporada européia de contratações.
Como resultado disso, os times não são um amontoado de jogadores. Eles pelo menos tem o propósito de permanecer juntos durante um certo prazo de disputa. Os times tem um projeto, um plano de trabalho, um rumo, uma direção. É por isso que os times argentinos mantém uma certa grandeza. São instituições respeitáveis. É por isso que os brasileiros tremem, por ocasião de uma Libertadores da América, ao ter que enfrentar um Boca Juniors em “La Bombonera” ou um River Plate no “Monumental de Nuñes”. Os argentinos entram numa competição para vencer; os brasileiros entram com a pretensão de dar espetáculo. É por isso que todo clássico entre Brasil e Argentina assume proporções de um encontro épico.
Por falar em encontro épico, no sentido original do termo, ou seja, de cenário onde o destino dos povos é decidido, passemos às negociações comerciais. Apesar da histeria dos locutores, não é no terreno do futebol que as coisas são decididas. Não tocaremos no espinhoso problema de saber quem é melhor, de comparar Pelé e Maradona, tema sobre o qual pudemos falar recentemente. A respeito das geladeiras, que intitulam a segunda parte desse artigo, é preciso dizer que as coisas vão tão mal como no futebol, o que justifica colocarmos os dois termos no título.
Brasil e Argentina são os principais países do Mercosul. O Mercosul é a pedra fundamental da política externa brasileira, na sua pretensão de se contrapor à Alca, tal como proposta pelos Estados Unidos. O Mercosul é a saída para evitar o estrangulamento da economia brasileira e sul-americana no jogo pesado do comércio internacional. É a peça que os brasileiros podem usar ao tentar expressar alguma importância geopolítica.
E no entanto, o Mercosul vai mal das pernas. O bloco se propõe a ser um bloco de livre-comércio. Mas há barreiras comerciais entre os dois principais países. Há cotas de exportação entre um país e outro. Há produtos brasileiros taxados na Argentina e vice-versa. É claro que sabemos que um bloco econômico não é algo que se cria de uma hora para outra. A União Européia, que é o único bloco razoavelmente bem-sucedido até o momento, precisou de décadas para ser construído.
Mas isso não muda o fato de que o nosso Mercosul ainda não se alçou à dimensão de um projeto capaz de mobilizar inteiramente os dois países. A Europa está consciente de que se não se unir, não sobreviverá à concorrência geopolítica dos E.U.A. e da China. Se a Europa não sobreviverá, que dizer do Brasil e da Argentina? Que possibilidade de sobreviver terão os países periféricos no mundo do imperialismo financeiro-comercial dos mega-blocos e mega-potências continentais do século XXI?
A questão, a meu ver, é mais complexa do que discutir quantas geladeiras e máquinas de lavar o Brasil pode exportar para a Argentina. A questão é na verdade uma crise de projeto civilizacional. A Europa não se uniu senão ao tomar consciência da dimensão fundamentalmente política de sua escolha. As questões econômicas devem ser administradas em função do imperativo político de construir uma alternativa minimamente divergente em relação ao capitalismo radicalmente desregulado dos Estados Unidos.
O Mercosul não possui ainda qualquer dimensão política, que dirá civilizacional. O Brasil, principal motor do bloco, ainda não despertou para a necessidade de uma estratégia de longo prazo. Estamos, como dissemos no começo, presos ao modelo que afundou a Argentina. Os argentinos já passaram por uma experiência de colapso institucional, razão pela qual o seu atual Presidente pôde tomar medidas mais duras de confrontação contra os mentores do modelo, o FMI, por exemplo. Não é por “esquerdismo” ou por radicalismo que Kirchner reluta em aceitar as metas do FMI, é por absoluta falta de recursos no país.
O Brasil ainda não passou por uma crise como a Argentina e ainda tem a ilusão de que pode se sair bem com o modelo em vigor. Ainda continua financiando a usura do capital especulativo, na esperança de aparentar “bom comportamento” e poder ostentar “credibilidade” perante os credores. O Brasil continua carente de maciços investimentos sociais, mas continua preferindo investir obscenos R$ 150.000.000.000 por ano em serviço da dívida.
Dissemos, conforme a mídia inteira assumiu como versão consensual, que a Argentina já passou por um colapso. Isso se refere à crise de dezembro de 2001, em que o Presidente De La Rua foi deposto. Mas a crise apenas tornou a Argentina mais próxima do Brasil. A Argentina vem experimentando um empobrecimento brutal nas últimas décadas, mas o Brasil já é pobre há séculos. Comparativamente, estamos piores, e sempre estivemos. A Argentina não é o Brasil de amanhã, mas o de ontem e de hoje. Se o Brasil imitar a Argentina e passar por uma crise daquele tipo, cairá para um patamar africano de barbárie.
Ao invés de passar pela crise, seria preferível queimar etapas e passar direto para a solução. Romper com o modelo e criar uma alternativa civilizacional divergente e autônoma, centrada nas potencialidades estratégicas do país. Em termos de modelo civilizacional, a alternativa de discutir quantas geladeiras o Brasil pode exportar para outro país pobre como a Argentina é de uma mediocridade infinita, incomensurável, impossível de ser adjetivada.
As chamadas “negociações comerciais” entre países expõem de maneira cabal e drástica inviabilidade do sistema capitalista como modelo civilizacional. Na perspectiva capitalista, os produtos se transformaram em estorvos. O Brasil tem que brigar para que a Argentina aceite comprar suas geladeiras/estorvos. O Brasil tem que fazer isso para manter a indústria eletrodoméstica brasileira trabalhando. Do lado oposto, os trabalhadores argentinos tem que lutar para que as geladeiras/estorvos brasileiras não sejam aceitas, do contrário eles é que perderão seus empregos.
Uma “negociação” desse tipo é de um ridículo escandaloso. Ao invés de um valor de uso projetado para satisfazer uma necessidade, temos um produto/estorvo que um país quer empurrar para o outro. Onde está a racionalidade desse sistema? Onde está a necessidade dos povos? Onde estão as carências de milhões de brasileiros e argentinos? Onde está a prioridade em função da qual a produção deveria ser pensada? Como fazer para que os trabalhadores de cada país organizem as forças produtivas de sua nação da maneira que melhor puder satisfazer suas necessidades? Será que isso é possível através das leis cegas do mercado, que produziram a catástrofe argentina e estão empurrando o Brasil para a barbárie?
Na disputa da Copa América, o Brasil venceu a Argentina. Quanto ao jogo das geladeiras, quem vencerá?
Daniel M. Delfino
24/07/2004
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