A Justiça Eleitoral está veiculando uma campanha no rádio estimulando o voto nas eleições municipais (mais uma vez este escriba esteve involuntariamente exposto às nefandas irradiações sonoras do rádio alheio), uma certa “Campanha da Cidadania” com o mote “Vota Brasil”. Uma campanha alegre e musical, que tenta dar às eleições o ar de uma brincadeira, uma festa, um carnaval. Como se ainda estivéssemos nas Olimpíadas ou na Copa do Mundo. Algo do tipo: “Participe você também”. “Venha votar com a gente”. “Venha festejar com a gente” (torcer com a gente?). “Seja mais um dos participantes do alegre carnaval da democracia”. “Não fique de fora”. A eleição é apresentada como uma grande festa brasileira. Temos a maior eleição informatizada do mundo. Temos as urnas eletrônicas, 100% brasileiras. “Yes”, nós temos “know how” eleitoral. “O brasileiro adora uma eleição!”
Tudo parece muito bonito, muito louvável, mas ficam algumas interrogações. O eleitor brasileiro não está obrigado por lei a votar? O voto não é obrigatório no Brasil? Qual é a necessidade de se fazer uma campanha convocando o voto, se o ato de votar é obrigatório? No mínimo, a campanha da Justiça Eleitoral é supérflua. Como medida supérflua, a campanha publicitária não deixa de ser também um desperdício. A Justiça Eleitoral está desperdiçando o dinheiro público para fazer essa campanha. O nosso dinheiro. A Justiça Eleitoral é parte do Poder Judiciário, que assim como o Executivo e o Legislativo, existem para servir ao povo, que é a fonte desses poderes. Ao menos na teoria e na Constituição.
Com que então a Justiça Eleitoral se acha no direito de gastar nosso dinheiro para nos convidar a fazer algo que já somos obrigados por lei a fazer? De onde veio essa idéia? Uma possível resposta está na distorção geral da política eleitoral, que se tornou uma operação cada vez mais comercial. Os candidatos vendem a si mesmos como produto. Logo, os organizadores da eleição (Justiça Eleitoral) vendem a si mesmos como prestadores de serviço. Não basta à Justiça Eleitoral fazer com que todos cumpram a lei e votem. É preciso “agregar valor” à eleição. O simples ato de votar não contenta mais o eleitor. Ele precisa sentir que está participando de um algo mais. A campanha “Vota Brasil” tenta dar esse “algo mais” ao eleitor. Tenta dar a sensação de que a eleição é algo festivo, alegre, brasileiro. A Justiça Eleitoral imagina que está cumprindo seu dever “agregando valor” à eleição.
Para além do supérfluo e do ridículo, essa patética tentativa esconde também o catastrófico. A tentativa de “levantar a bola” das eleições só acontece porque o “produto” eleição está desvalorizado no “mercado”. Evidentemente, as eleições estão desmoralizadas devido ao evento eleitoral mais alegre e festivo que o Brasil já viu, as eleições gerais de 2002. As eleições de 2002 foram as eleições dos sonhos dos marqueteiros da Justiça Eleitoral. Eles gostariam de ter uma festa como aquela todos os anos, por isso tentam requentar o prato com essa “Campanha da cidadania”.
As eleições de 2002 foram um evento no qual os eleitores realmente acreditaram que podiam mudar as coisas com o poder de seu voto. Deram expressiva votação ao “candidato da esperança”, o salvador da pátria de turno, e festejaram sua vitória, imaginando os dias melhores que certamente viriam. Mas é claro que quanto maior a altura, maior a queda. Quanto maior é a ilusão, pior é a desilusão. A esperança ficou com medo, as ilusões se esvaíram, a mudança não veio e instalou-se o pessimismo. O mesmo descrédito de sempre contaminou novamente a opinião popular. As mesmas frases que ciclicamente circulam a cada decepção eleitoral voltam a ser ouvidas: “Eles são todos iguais”, “Não muda nada mesmo”, “Não adianta nada votar”.
Essas frases são verdadeiras, mas a sua verdade “é mais embaixo”, como se verá adiante. De qualquer modo, aí está a catástrofe temida pela Justiça Eleitoral. O povo não quer mais saber de eleições. O eleitor está cético e desmotivado. Depois da última frustração, quem quer saber de votar? As vozes do desencanto e do descrédito com a política sempre existiram e sempre tiveram grande aceitação do senso comum. Mas essa sua última manifestação parece de alguma maneira mais grave. Parece que dessa vez foi “pra valer”. As eleições de 2002 eram uma espécie de “última esperança”. Uma espécie de “ou vai ou racha” das esperanças eleitorais populares. No “vai ou racha”, o governo Lula não foi.
O entusiasmo eleitoral se rachou e se desfez. A Justiça Eleitoral, compadecida, tenta ressuscitar sua festinha murcha. Os marqueteiros da “Campanha da Cidadania” tentam ainda vender seu peixe. Como se as eleições municipais pudessem repetir a mobilização a que se assistiu em 2002. Talvez apenas a eleição para a Prefeitura de São Paulo tenha a importância que se quer dar ao evento, muito em função da aposta que os dois principais partidos em disputa, PT e PSDB, fizeram em relação a esse pleito. Está no ar a idéia de que aquele que levar a prefeitura paulistana em 2004 leva a Presidência em 2006. Daí a disputa encarniçada a que se assiste na capital. Mas esse assunto não será debatido aqui.
Como estava dizendo, as eleições municipais não podem repetir uma mobilização do tipo daquela que houve em 2002. Talvez o eleitor esteja mais interessado nas presidenciais estadunidenses do que nas municipais brasileiras. Não porque a administração municipal seja um assunto sem importância, mas porque a instituição eleição em si está desvalorizada. Será preciso esperar pelas novas eleições gerais, em 2006, talvez, para vermos uma nova mobilização geral sobre o tema. Ou talvez nunca mais a vejamos.
A pior parte dessa comédia de péssimo gosto é suportar a propaganda eleitoral. Candidatos sorridentes em outdoors e cartazes por toda parte. Slogans tão vagos e anódinos quanto 2 + 2 = 4. Um candidato aparece dizendo “emprego é tudo”. Mas e daí? É claro que emprego é tudo. Todos querem emprego. O que uma eleição municipal tem a ver com emprego? Como um prefeito pode “gerar emprego”?
Ao fazer isso, esse candidato, assim como todos os outros com relação a qualquer promessa igualmente vazia de conteúdo, não está tentando debater a questão do emprego. Ele está tentando associar seu nome à palavra “emprego”. Ele passa a ser “o candidato do emprego”, assim como o outro é o da “saúde”. Esse tipo de propaganda tenta produzir um tipo de associação primária, como a que associa uma pasta de dente a uma imagem de sorriso branco, para fazer com que o consumidor indeciso opte por essa marca subconscientemente. A propaganda eleitoral apela para o subconsciente do eleitor, não para sua racionalidade.
Se as campanhas envolvessem o eleitor numa discussão racional, 99% da atual classe política estaria perdida. O cidadão perceberia então que as eleições de fato “não mudam nada mesmo”, como foi adiantado. E isso não porque os candidatos sejam incompetentes, ou traidores, ou “esqueçam o que prometeram”. As eleições não mudam nada porque não foram mesmo feitas para mudar nada. Ao contrário do que diz o título da campanha do “Vota Brasil”, as eleições são o suicídio da cidadania e não a sua afirmação. Uma eleição como o pleito municipal de São Paulo é um ato de suicídio político por meio do qual 10 milhões entregam o poder a um.
As eleições são o instrumento da democracia representativa burguesa para manter o “status quo” funcionando inalterado. A cada quatro anos, recria-se a ilusão de que o povo está “participando” da política, elegendo seus “representantes”. Mas ao contrário, o povo está renunciando a participar da política, entregando a gestão dos seus interesses, seus assuntos e seu dinheiro aos “representantes” eleitos.
Depois de votar, o povo deve esperar quieto o resultado da aposta que fez. Deve se lamentar ao perceber que nada mudou. E deve esperar pacientemente por mais quatro anos para ter a chance de “tentar de novo”. Ao invés de democracia, temos um jogo de azar. Uma aposta incerta. “Será que dessa vez vai dar certo?” Não deu. Mas e agora? Melhor sorte da próxima vez. Nada pode ser mais ridículo e oposto do sentido de democracia do que isso, o espetáculo patético de milhões de eleitores que, compelidos pela lei, comparecem às respectivas seções eleitorais, comportados como cordeirinhos indo para o matadouro, indo entregar seu atestado de renúncia à política, chamado “voto”, ao oportunista de plantão, o candidato.
Justamente para isso o voto é obrigatório. Para expor todos ao ridículo espetáculo da política. Se o voto fosse facultativo, somente votariam aqueles que estivessem interessados. Aqueles que tivesse conhecimento do que está realmente em jogo. O voto obrigatório é uma contradição em termos. O voto não pode ser um dever e sim um direito. O voto é um direito de todo aquele que faz parte da vida da “pólis”, da comunidade política. Todo aquele que vive e trabalha na pólis faz jus ao direito de participar da vida política.
Participar significa tomar parte direta da administração, saber onde é gasto cada centavo do orçamento público e opinar livremente sobre o que deveria ser feito com esse precioso centavo do seu dinheiro suado. Assim como o voto é o suicídio da cidadania, o “orçamento participativo” não passa de uma esmola. É também uma contradição em termos. O orçamento não tem que ser participativo. Ele tem que ser integralmente compartilhado, já que se trata do dinheiro de todos.
Todos os cidadãos tem que participar e discutir o que fazer com o dinheiro público. “Público” não significa de ninguém e sim de todos. Uma vez que não pertence a ninguém e sim a todos, cabe a todos os cidadãos decidir quanto gastar com educação, com saúde, com saneamento, com segurança, com transporte público, com cultura, com lazer, e se for o caso, quantos centavos gastar com a dívida que os incompetentes do passado fizeram. Numa tal situação, duvido que uma assembléia popular plebiscitária concordaria, por exemplo, com a decisão de uma camarilha de impostores denominada COPOM de aumentar os juros e arruinar ainda mais a economia e vida de todos.
Democracia significa governo do povo, o que significa participação direta do povo em todos os assuntos que lhe dizem respeito, por meio de assembléias, plebiscitos, referendos ou seja por que meio for. Nesse caso sim estaríamos falando de democracia, não nas atuais eleições que “não mudam nada”. Votar periodicamente num administrador deveria ser um ato rotineiro, nada excepcional, assim como revogar seu mandato em caso de descumprimento das metas traçadas por todos. Mandatos eletivos e revogáveis para o Executivo, Legislativo e Judiciário são a pré-condição para o exercício de uma democracia verdadeira.
Na Venezuela, Chavez deu o exemplo, submetendo-se ao referendo para confirmar seu mandato. Duvido que outros governantes de nações ditas “democráticas” tenham a mesma coragem. Mesmo assim, este escriba e eleitor recalcitrante faz uma sugestão à Justiça Eleitoral. Se eles gostam mesmo de festa e de democracia, e se querem mesmo trabalhar para justificar seu salário, que organizem eleições, plebiscitos, referendos, assembléias, em intervalos anuais, semestrais, trimestrais, em âmbito nacional, estadual, municipal, ou de bairro, para saber o que realmente o povo quer.
Daniel M. Delfino
19/09/2004
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