Um alto oficial nazista proferiu certa vez a seguinte frase: “quando escuto falar em cultura, saco logo meu revólver”. A frase exemplifica o quanto o representante de um regime autoritário é hostil aos diversos empreendimentos humanos reunidos sob o rótulo de “cultura”. A religião, a filosofia, a arte, a ciência, são perigosos para o sistema. Para o nazista, aquele que os cultiva deve ser automaticamente, classificado como comunista, nocivo e subversivo.
Parafraseando este dito do oficial nazista de “Mephisto”, este escriba reflete: “quando escuto falar em cultura, penso em africanos de roupas coloridas batendo tambor.” Este foi meu primeiro reflexo ao ser informado de um certo “Fórum Cultural Mundial”, a ser realizado em São Paulo, nos dias 26/06 a 03/07. Exprimi dessa maneira o meu desprezo para com o tratamento institucional dado à cultura.
A cultura com “c” minúsculo, “administrada” pelas secretarias de cultura municipais, estaduais e federais, é um balaio de gatos, uma gosma eclética, sem consistência, de onde emergem, caricaturais, “negros de roupas coloridas tocando tambor”. A cultura dos assim chamados espaços culturais não me atrai e não me empolga. É uma cultura caricatural, deformada, superficial, decalcada, desenraizada.
Essa avaliação é certamente paradoxal, pois muitos gestores institucionais se esforçam para oferecer ao povo o trabalho de pessoas que cultivam uma cultura autêntica, popular e radical. O público por sua vez prefere a cultura massificada da indústria cultural capitalista. O que resta então é um público intelectualizado e elitizado. O público a quem a cultura diz respeito não se interessa por cultura. O público que se interessa por cultura consome-a como um luxo suplementar ao conforto burguês de que desfruta. O dilema de como romper o restrito círculo dos consumidores habituais de cultura, os universitários, “culturetes”, e engajados, para alcançar uma audiência mais ampla e maciça, é certamente dos mais pertinentes na atual conjuntura.
Quando escuto falar em cultura, penso em africanos de roupa colorida tocando tambor. Esse pensamento superficial se mantém prisioneiro de uma visão estereotipada de cultura. Cheira a turista que desembarca numa terra exótica e compra um berimbau no aeroporto. A cultura tal como é oferecida, com “c” minúsculo, pelos gestores institucionais, assume a forma de uma mera esmola de cultura. Assim como os demais órgãos do Estado oferecem uma esmola de educação, uma esmola de saúde, uma esmola de segurança. O Estado não oferece serviços com a abrangência e a qualidade desejáveis, apenas esmolas de serviço. Assim como oferece esmolas de cultura.
O que me revolta aqui não é a cultura em si que é oferecida, mas a forma como ela é. Uma forma que chega estereotipada, empobrecida, embotada. A paráfrase oferecida acima não expressa uma hostilidade para com os negros batendo tambor. Antes, pelo contrário. Quanto mais negros e negras, coloridos e tambores, melhor. Mais do que hostilidade, trata-se de desconfiança. Desconfiança em relação à capacidade de um evento institucional como este F.C.M. de oferecer uma verdadeira imersão cultural.
A idéia me pareceu de saída uma tentativa de emular o apelo do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre. O FSM está muito longe de São Paulo para atrair votos para a claudicante candidatura Marta. Se Maomé não pode ir à montanha, a montanha vem a Maomé. A grande mídia trata de boicotar o evento e oferecer uma cobertura apenas burocrática. O governo paulista (tucano), por sua vez, trata de tentar tirar uma casquinha. Claro que um evento do porte de um F.C.M. não pode ser reduzido a um mero arranjo eleitoreiro. Os políticos tratam de tentar faturar em cima do que os verdadeiros artistas produzem. Observar essa contradição se desenvolvendo “in loco” foi um dos motivos que me levaram a comparecer ao Fórum.
Foi com esse tipo de preocupação em mente que este escriba se dignou a comparecer ao penúltimo dia do F.C.M., em 03/07. Um espírito bastante cético, conforme já adiantei. Meu cinismo em relação a este F.C.M. se deve ao fato de que, estando em um ano eleitoral, qualquer iniciativa de governo ganha logo as cores de uma disputa entre as gangues partidárias que se digladiam em torno do butim público. A presença simultânea de órgãos municipais, estaduais e federais só se torna viável sobre uma base organizativa comum devidamente esvaziada de conteúdo. Esvaziada o suficiente para assegurar a mais absoluta neutralidade programática e a mais deprimente vacuidade prática.
Meus temores se agravaram quando tomei contato com o material promocional do Fórum. Uma coleção de folhetos, “folders”, livretos, programações. Propostas as mais ousadas, objetivos os mais ambiciosos, questões as mais genéricas. O tema da divulgação do evento é o célebre poema de Drummond. “E agora, José?” A pergunta foi lançada e as respostas foram oferecidas pelos participantes, sob as mais variadas formas.
Mas as respostas contidas no material promocional me deixaram com a pulga atrás da orelha. Dava-se destaque a iniciativas de tipo empresarial. Do tipo voltado para buscar meios de fazer da cultura uma forma de “desenvolvimento econômico”, como se fosse um ramo da economia, como o turismo ou o esporte.
Esse tipo de enfoque me provocou bastante estranheza. Assim como me causou estranheza uma “Feira de oportunidades”. A feira transformou um dos pavilhões do Centro de Exposições do Anhembi numa espécie de “shopping center” cultural. Para um público acostumado à cidadania mercantilizada, o formato “shopping center” aparece como a única forma de referência espacial aceitável. O único espaço adequado para oferecer a cultura/mercadoria.
Um observador de boa vontade chamaria a Feira de uma grande mostra de artesanato, de amostras da cultura regional, em busca de alguma forma de viabilidade econômica. Um observador de má vontade chamaria de samba do crioulo doido. Havia de tudo no pavilhão de exposições. E não estamos falando de diversidade cultural, desejável, mas de ecletismo ideológico. Desde guerrilheiros da imprensa alternativa, como o Projeto Portas Abertas, de Caros Amigos, até gigantes da mídia de direita, como a Editora Abril. Havia barraquinhas de militantes trotskistas vendendo camisetas e clínicas de massagens oferecendo suas terapias. Para o observador de má vontade, havia de modo geral bugigangas, penduricalhos, badulaques, miçangas, plumas e paetês. Camisetas de Che e batas “hippies”. Consumismo “new age” e moda eclética.
Este escriba a princípio se alistou entre os observadores de má vontade. O excessivo ecletismo e a abrangência por demais ambiciosa dos temas propostos levaram a um esvaziamento programático. “Slogans” de sentido dúbio como “cultura e negócios enfim juntos” me deixaram não com um, mas com os dois pés atrás.
Em princípio, nada contra os expositores em suas barraquinhas de produtos artesanais regionais “hippies” “new age”. Cada um sobrevive como pode. Este blog não deixa de ser uma barraquinha no mercado de idéias radicais. Tudo a favor das barraquinhas e também das idéias radicais. Mas tudo contra o mercado e suas tentativas institucionais grandiloqüentes de cooptação. Não há crime em tentar ocupar lugar no mercado; há crime do mercado em tentar usurpar uma legitimidade que a associação com a cultura supostamente lhe outorga. Afortunadamente, este blog prescinde de patrocínio corporativo e oferece idéias totalmente livres, inclusive livres para serem criticadas e rejeitadas.
Tudo contra o mercado no sentido de que este representa tão somente uma forma historicamente transitória de intercâmbio das produções sociais humanas. Uma forma prevalecente nas condições históricas do regime capitalista, destinadas a serem historicamente superadas por um modo de intercâmbio substantivamente livre e racionalmente mediado. O mercado não é o primeiro, mas apenas o mais recente dos modos de intercâmbio do trabalho humano, e de modo algum está destinado a ser o último, pois assim como foi estabelecido, está fadado a ser historicamente transcendido.
A cultura é uma das dimensões onde o domínio do mercado se faz sentir da maneira mais violenta e negativa. O mercado transformou a música afro-brasileira em É o Tchan. Transformou a música caipira em Daniel, o cantor homônimo deste escriba. Transformou o samba em Alexandre Pires. Esses exemplos podem ser multiplicados “ad infinitum” e ilustram de maneira decisiva porque este escriba considera o mercado e a cultura como fundamentalmente hostis.
Naturalmente, as formas culturais autênticas e radicais têm o direito e o dever de ocupar seu lugar no espaço no mercado. Mas essa ocupação não pode se dar senão como uma problematização das questões relativas à dominância desse mesmo mercado sobre as demais dimensões vitais da sociabilidade humana. Neste caso, falamos de cultura com “C” maiúsculo. De Cultura com o sentido mais amplo de civilização, de conjunto das realizações humanas. O F.C.M. tentou problematizar essas questões, ainda que sob a moldura de uma abordagem que busca ser compatível com as demandas do mercado.
No único dia do Fórum a que este escriba/proletário pode comparecer, o sábado 03/07, o evento não começou da maneira mais interessante. Discursos do Secretário Municipal de Cultura e da Ministra da Secretaria Extraordinária de Promoção da Igualdade Racial (pausa para recuperar o fôlego) não se mostraram muito envolventes. O que em si não diz nada contra o valor pessoal e o trabalho desenvolvido em suas áreas por esses representantes do Estado. O problema de seus discursos foi o de se ater ao plano dos princípios e razoes de Estado.
O único a falar minha língua foi o cineasta argentino Fernando Solanas, embora é claro tenha se expressado em castelhano. Sua fala apaixonada, em tom grandiloqüente, evocando o poema de Drummond, emoldurado por uma voz poderosa, mereceu calorosos aplausos de todos os presentes, que se ergueram por cinco minutos para saudá-lo.
Solanas respondeu de maneira contundente à provocação lançada pela pergunta “E agora José?” Os povos sabem o que querem. Os povos querem autonomia, respeito, condições dignas de vida, meios de expressar sua identidade e sua individualidade histórica. A questão da cultura foi enquadrada no contexto dramático da luta pela sobrevivência enfrentada pelos povos dos países pobres e especificamente latino-americanos.
O F.C.M. se transformou então num autêntico apêndice do Fórum Social Mundial. Fernando Solanas atacou fortemente as políticas neoliberais que levaram a América Latina à miséria. Colocaram 60% baixo da linha de pobreza. Produziram a macabra estatística de 40 mil mortes por ano na Argentina provocadas por fome e doenças evitáveis. Isto num país que é um dos maiores produtores mundiais de trigo e de carne.
Um tal estado de coisas somente se perpetua com a cumplicidade da grande mídia. A grande mídia não é apenas conivente ou omissa, mas é partícipe ativa e militante do genocídio social. A grande mídia carrega a culpa de veicular sistematicamente a criminosa mentira de que não há alternativa ao neoliberalismo e também de servir de arauto para a chantagem do capital financeiro internacional. A Argentina, o aluno mais aplicado do receituário neoliberal, como lembrou Solanas, foi deixada às moscas quando sobreveio a crise e os bancos levaram embora a riqueza do país. Tudo isso sob o beneplácito da mídia, o “observador imparcial dos fatos”.
Dentro da grande mídia, Solanas centrou fogo no segmento da televisão. A mais criminosa das usurpações do espaço público a serviço dos interesses do capital. A transmissão de TV é uma concessão pública gratuita. O espectro de ondas eletromagnéticas não é propriedade privada de ninguém. É um patrimônio público cedido à exploração comercial privada, sob a chancela de um presumido interesse público. Esse interesse público na programação transforma-se num mero pretexto totalmente vazio de qualquer eficácia prática. A TV é um espaço de alienação, desinformação, mistificação e amnésia coletiva histórico-cultural.
A amnésia histórico-cultural é uma arma de dominação. O lixo televisivo homogeneíza a cultura da massa e dissolve as especificidades locais nas quais se funda a identidade e qualquer reivindicação possível de autonomia. Na televisão, a América Latina não tem história. Não tem índios, não tem africanos, não tem imigrantes, não tem cultura autóctone, não tem línguas, não tem estética, não tem símbolos, não tem valores, não tem heróis. Somos diariamente reduzidos ao marco zero civilizacional do capital, que promete reiteradamente as inatingíveis benesses do “american way of life”, às quais o próprio sistema do capital globalizado neoliberal nos veda continuamente o acesso.
Contra essa amnésia histórico-cultural induzida, cumpre resgatar os valores e a força da cultura. Solanas clama contra o absurdo de não existir uma grande rede latino-americana para veicular a cultura do continente. Uma “Al Jazeera” latino-americana para fazer frente ao monopólio dos 4 ou 5 grandes grupos internacionais e aos seus epígonos e imitadores locais tipo Rede Globo. Um antídoto contra a barca furada da ALCA, um guarda-chuva para a utopia de um Mercosul do Caribe à Terra do Fogo (o que tristemente exclui o México, hoje reduzido à condição ultrajante de apêndice do império.)
Nesse cenário, nada pode ser mais importante que a luta cultural. O contagiante discurso de Solanas recarregou as baterias de todos os presentes, em direção às suas lutas e guerrilhas. Depois desse discurso, este escriba pode ver com outros olhos os negros de roupas coloridas batendo tambores. Tambores de maracatu, de congada, de afoxés, de rodas de samba. Talvez por haver presenciado apenas um dia do Fórum, o que vi foi um Fórum Cultural Brasileiro. O que já significa muita coisa, pois o Brasil tem em si um mundo de diversidade cultural
Como diz Mestre Ambrósio, na letra de “Sêmen”:
“Como posso pensar ser brasileiro
Enxergar minha própria diferença
Se olhando ao redor vejo a imensa
Semelhança ligando o mundo inteiro
Como posso saber quem vem primeiro
Se o começo eu jamais alcançarei
Tantos povos no mundo e eu não sei
Qual a forca que move o meu engenho
Como posso saber de onde eu venho
Se a semente profunda eu não toquei?”
A experiência deste F.C.M. acabou se provando mais proveitosa e enriquecedora do que poderia parecer à primeira vista. Não obstante as ambigüidades ideológicas consubstanciadas no projeto do Fórum, o que resta é a tentativa de resgatar os aspectos mais vitais, significativos e substantivos da experiência humana.
Cultura não é perfumaria, não é enfeite, não é adorno, luxo supérfluo. Cultura é identidade, é auto-afirmação, é exercício de liberdade criadora, é resistência. A cultura é força libertária e humanizadora. Cria laços e estabelece afinidades. Derruba preconceitos e constrói pontes na direção da tolerância e da paz. Cultura é música, música é dança, dança é expressão corporal, expressão corporal é desrepressão sexual.
“E agora José?” José não está morto e não morrerá jamais!
Daniel M. Delfino
03/07/2004
Parafraseando este dito do oficial nazista de “Mephisto”, este escriba reflete: “quando escuto falar em cultura, penso em africanos de roupas coloridas batendo tambor.” Este foi meu primeiro reflexo ao ser informado de um certo “Fórum Cultural Mundial”, a ser realizado em São Paulo, nos dias 26/06 a 03/07. Exprimi dessa maneira o meu desprezo para com o tratamento institucional dado à cultura.
A cultura com “c” minúsculo, “administrada” pelas secretarias de cultura municipais, estaduais e federais, é um balaio de gatos, uma gosma eclética, sem consistência, de onde emergem, caricaturais, “negros de roupas coloridas tocando tambor”. A cultura dos assim chamados espaços culturais não me atrai e não me empolga. É uma cultura caricatural, deformada, superficial, decalcada, desenraizada.
Essa avaliação é certamente paradoxal, pois muitos gestores institucionais se esforçam para oferecer ao povo o trabalho de pessoas que cultivam uma cultura autêntica, popular e radical. O público por sua vez prefere a cultura massificada da indústria cultural capitalista. O que resta então é um público intelectualizado e elitizado. O público a quem a cultura diz respeito não se interessa por cultura. O público que se interessa por cultura consome-a como um luxo suplementar ao conforto burguês de que desfruta. O dilema de como romper o restrito círculo dos consumidores habituais de cultura, os universitários, “culturetes”, e engajados, para alcançar uma audiência mais ampla e maciça, é certamente dos mais pertinentes na atual conjuntura.
Quando escuto falar em cultura, penso em africanos de roupa colorida tocando tambor. Esse pensamento superficial se mantém prisioneiro de uma visão estereotipada de cultura. Cheira a turista que desembarca numa terra exótica e compra um berimbau no aeroporto. A cultura tal como é oferecida, com “c” minúsculo, pelos gestores institucionais, assume a forma de uma mera esmola de cultura. Assim como os demais órgãos do Estado oferecem uma esmola de educação, uma esmola de saúde, uma esmola de segurança. O Estado não oferece serviços com a abrangência e a qualidade desejáveis, apenas esmolas de serviço. Assim como oferece esmolas de cultura.
O que me revolta aqui não é a cultura em si que é oferecida, mas a forma como ela é. Uma forma que chega estereotipada, empobrecida, embotada. A paráfrase oferecida acima não expressa uma hostilidade para com os negros batendo tambor. Antes, pelo contrário. Quanto mais negros e negras, coloridos e tambores, melhor. Mais do que hostilidade, trata-se de desconfiança. Desconfiança em relação à capacidade de um evento institucional como este F.C.M. de oferecer uma verdadeira imersão cultural.
A idéia me pareceu de saída uma tentativa de emular o apelo do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre. O FSM está muito longe de São Paulo para atrair votos para a claudicante candidatura Marta. Se Maomé não pode ir à montanha, a montanha vem a Maomé. A grande mídia trata de boicotar o evento e oferecer uma cobertura apenas burocrática. O governo paulista (tucano), por sua vez, trata de tentar tirar uma casquinha. Claro que um evento do porte de um F.C.M. não pode ser reduzido a um mero arranjo eleitoreiro. Os políticos tratam de tentar faturar em cima do que os verdadeiros artistas produzem. Observar essa contradição se desenvolvendo “in loco” foi um dos motivos que me levaram a comparecer ao Fórum.
Foi com esse tipo de preocupação em mente que este escriba se dignou a comparecer ao penúltimo dia do F.C.M., em 03/07. Um espírito bastante cético, conforme já adiantei. Meu cinismo em relação a este F.C.M. se deve ao fato de que, estando em um ano eleitoral, qualquer iniciativa de governo ganha logo as cores de uma disputa entre as gangues partidárias que se digladiam em torno do butim público. A presença simultânea de órgãos municipais, estaduais e federais só se torna viável sobre uma base organizativa comum devidamente esvaziada de conteúdo. Esvaziada o suficiente para assegurar a mais absoluta neutralidade programática e a mais deprimente vacuidade prática.
Meus temores se agravaram quando tomei contato com o material promocional do Fórum. Uma coleção de folhetos, “folders”, livretos, programações. Propostas as mais ousadas, objetivos os mais ambiciosos, questões as mais genéricas. O tema da divulgação do evento é o célebre poema de Drummond. “E agora, José?” A pergunta foi lançada e as respostas foram oferecidas pelos participantes, sob as mais variadas formas.
Mas as respostas contidas no material promocional me deixaram com a pulga atrás da orelha. Dava-se destaque a iniciativas de tipo empresarial. Do tipo voltado para buscar meios de fazer da cultura uma forma de “desenvolvimento econômico”, como se fosse um ramo da economia, como o turismo ou o esporte.
Esse tipo de enfoque me provocou bastante estranheza. Assim como me causou estranheza uma “Feira de oportunidades”. A feira transformou um dos pavilhões do Centro de Exposições do Anhembi numa espécie de “shopping center” cultural. Para um público acostumado à cidadania mercantilizada, o formato “shopping center” aparece como a única forma de referência espacial aceitável. O único espaço adequado para oferecer a cultura/mercadoria.
Um observador de boa vontade chamaria a Feira de uma grande mostra de artesanato, de amostras da cultura regional, em busca de alguma forma de viabilidade econômica. Um observador de má vontade chamaria de samba do crioulo doido. Havia de tudo no pavilhão de exposições. E não estamos falando de diversidade cultural, desejável, mas de ecletismo ideológico. Desde guerrilheiros da imprensa alternativa, como o Projeto Portas Abertas, de Caros Amigos, até gigantes da mídia de direita, como a Editora Abril. Havia barraquinhas de militantes trotskistas vendendo camisetas e clínicas de massagens oferecendo suas terapias. Para o observador de má vontade, havia de modo geral bugigangas, penduricalhos, badulaques, miçangas, plumas e paetês. Camisetas de Che e batas “hippies”. Consumismo “new age” e moda eclética.
Este escriba a princípio se alistou entre os observadores de má vontade. O excessivo ecletismo e a abrangência por demais ambiciosa dos temas propostos levaram a um esvaziamento programático. “Slogans” de sentido dúbio como “cultura e negócios enfim juntos” me deixaram não com um, mas com os dois pés atrás.
Em princípio, nada contra os expositores em suas barraquinhas de produtos artesanais regionais “hippies” “new age”. Cada um sobrevive como pode. Este blog não deixa de ser uma barraquinha no mercado de idéias radicais. Tudo a favor das barraquinhas e também das idéias radicais. Mas tudo contra o mercado e suas tentativas institucionais grandiloqüentes de cooptação. Não há crime em tentar ocupar lugar no mercado; há crime do mercado em tentar usurpar uma legitimidade que a associação com a cultura supostamente lhe outorga. Afortunadamente, este blog prescinde de patrocínio corporativo e oferece idéias totalmente livres, inclusive livres para serem criticadas e rejeitadas.
Tudo contra o mercado no sentido de que este representa tão somente uma forma historicamente transitória de intercâmbio das produções sociais humanas. Uma forma prevalecente nas condições históricas do regime capitalista, destinadas a serem historicamente superadas por um modo de intercâmbio substantivamente livre e racionalmente mediado. O mercado não é o primeiro, mas apenas o mais recente dos modos de intercâmbio do trabalho humano, e de modo algum está destinado a ser o último, pois assim como foi estabelecido, está fadado a ser historicamente transcendido.
A cultura é uma das dimensões onde o domínio do mercado se faz sentir da maneira mais violenta e negativa. O mercado transformou a música afro-brasileira em É o Tchan. Transformou a música caipira em Daniel, o cantor homônimo deste escriba. Transformou o samba em Alexandre Pires. Esses exemplos podem ser multiplicados “ad infinitum” e ilustram de maneira decisiva porque este escriba considera o mercado e a cultura como fundamentalmente hostis.
Naturalmente, as formas culturais autênticas e radicais têm o direito e o dever de ocupar seu lugar no espaço no mercado. Mas essa ocupação não pode se dar senão como uma problematização das questões relativas à dominância desse mesmo mercado sobre as demais dimensões vitais da sociabilidade humana. Neste caso, falamos de cultura com “C” maiúsculo. De Cultura com o sentido mais amplo de civilização, de conjunto das realizações humanas. O F.C.M. tentou problematizar essas questões, ainda que sob a moldura de uma abordagem que busca ser compatível com as demandas do mercado.
No único dia do Fórum a que este escriba/proletário pode comparecer, o sábado 03/07, o evento não começou da maneira mais interessante. Discursos do Secretário Municipal de Cultura e da Ministra da Secretaria Extraordinária de Promoção da Igualdade Racial (pausa para recuperar o fôlego) não se mostraram muito envolventes. O que em si não diz nada contra o valor pessoal e o trabalho desenvolvido em suas áreas por esses representantes do Estado. O problema de seus discursos foi o de se ater ao plano dos princípios e razoes de Estado.
O único a falar minha língua foi o cineasta argentino Fernando Solanas, embora é claro tenha se expressado em castelhano. Sua fala apaixonada, em tom grandiloqüente, evocando o poema de Drummond, emoldurado por uma voz poderosa, mereceu calorosos aplausos de todos os presentes, que se ergueram por cinco minutos para saudá-lo.
Solanas respondeu de maneira contundente à provocação lançada pela pergunta “E agora José?” Os povos sabem o que querem. Os povos querem autonomia, respeito, condições dignas de vida, meios de expressar sua identidade e sua individualidade histórica. A questão da cultura foi enquadrada no contexto dramático da luta pela sobrevivência enfrentada pelos povos dos países pobres e especificamente latino-americanos.
O F.C.M. se transformou então num autêntico apêndice do Fórum Social Mundial. Fernando Solanas atacou fortemente as políticas neoliberais que levaram a América Latina à miséria. Colocaram 60% baixo da linha de pobreza. Produziram a macabra estatística de 40 mil mortes por ano na Argentina provocadas por fome e doenças evitáveis. Isto num país que é um dos maiores produtores mundiais de trigo e de carne.
Um tal estado de coisas somente se perpetua com a cumplicidade da grande mídia. A grande mídia não é apenas conivente ou omissa, mas é partícipe ativa e militante do genocídio social. A grande mídia carrega a culpa de veicular sistematicamente a criminosa mentira de que não há alternativa ao neoliberalismo e também de servir de arauto para a chantagem do capital financeiro internacional. A Argentina, o aluno mais aplicado do receituário neoliberal, como lembrou Solanas, foi deixada às moscas quando sobreveio a crise e os bancos levaram embora a riqueza do país. Tudo isso sob o beneplácito da mídia, o “observador imparcial dos fatos”.
Dentro da grande mídia, Solanas centrou fogo no segmento da televisão. A mais criminosa das usurpações do espaço público a serviço dos interesses do capital. A transmissão de TV é uma concessão pública gratuita. O espectro de ondas eletromagnéticas não é propriedade privada de ninguém. É um patrimônio público cedido à exploração comercial privada, sob a chancela de um presumido interesse público. Esse interesse público na programação transforma-se num mero pretexto totalmente vazio de qualquer eficácia prática. A TV é um espaço de alienação, desinformação, mistificação e amnésia coletiva histórico-cultural.
A amnésia histórico-cultural é uma arma de dominação. O lixo televisivo homogeneíza a cultura da massa e dissolve as especificidades locais nas quais se funda a identidade e qualquer reivindicação possível de autonomia. Na televisão, a América Latina não tem história. Não tem índios, não tem africanos, não tem imigrantes, não tem cultura autóctone, não tem línguas, não tem estética, não tem símbolos, não tem valores, não tem heróis. Somos diariamente reduzidos ao marco zero civilizacional do capital, que promete reiteradamente as inatingíveis benesses do “american way of life”, às quais o próprio sistema do capital globalizado neoliberal nos veda continuamente o acesso.
Contra essa amnésia histórico-cultural induzida, cumpre resgatar os valores e a força da cultura. Solanas clama contra o absurdo de não existir uma grande rede latino-americana para veicular a cultura do continente. Uma “Al Jazeera” latino-americana para fazer frente ao monopólio dos 4 ou 5 grandes grupos internacionais e aos seus epígonos e imitadores locais tipo Rede Globo. Um antídoto contra a barca furada da ALCA, um guarda-chuva para a utopia de um Mercosul do Caribe à Terra do Fogo (o que tristemente exclui o México, hoje reduzido à condição ultrajante de apêndice do império.)
Nesse cenário, nada pode ser mais importante que a luta cultural. O contagiante discurso de Solanas recarregou as baterias de todos os presentes, em direção às suas lutas e guerrilhas. Depois desse discurso, este escriba pode ver com outros olhos os negros de roupas coloridas batendo tambores. Tambores de maracatu, de congada, de afoxés, de rodas de samba. Talvez por haver presenciado apenas um dia do Fórum, o que vi foi um Fórum Cultural Brasileiro. O que já significa muita coisa, pois o Brasil tem em si um mundo de diversidade cultural
Como diz Mestre Ambrósio, na letra de “Sêmen”:
“Como posso pensar ser brasileiro
Enxergar minha própria diferença
Se olhando ao redor vejo a imensa
Semelhança ligando o mundo inteiro
Como posso saber quem vem primeiro
Se o começo eu jamais alcançarei
Tantos povos no mundo e eu não sei
Qual a forca que move o meu engenho
Como posso saber de onde eu venho
Se a semente profunda eu não toquei?”
A experiência deste F.C.M. acabou se provando mais proveitosa e enriquecedora do que poderia parecer à primeira vista. Não obstante as ambigüidades ideológicas consubstanciadas no projeto do Fórum, o que resta é a tentativa de resgatar os aspectos mais vitais, significativos e substantivos da experiência humana.
Cultura não é perfumaria, não é enfeite, não é adorno, luxo supérfluo. Cultura é identidade, é auto-afirmação, é exercício de liberdade criadora, é resistência. A cultura é força libertária e humanizadora. Cria laços e estabelece afinidades. Derruba preconceitos e constrói pontes na direção da tolerância e da paz. Cultura é música, música é dança, dança é expressão corporal, expressão corporal é desrepressão sexual.
“E agora José?” José não está morto e não morrerá jamais!
Daniel M. Delfino
03/07/2004
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