28.5.07

Peões (Debate sobre os filmes da campanha de Lula em 2002)




Nome original: Peões
Produção: Brasil
Ano: 2004
Idiomas: Português
Diretor: Eduardo Coutinho
Roteiro:
Elenco: Maria Socorro Morais Alves, José Alves Bezerra, Zacarias Feitosa de Morais
Gênero: documentário
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

O filme de Eduardo Coutinho se constitui de 21 depoimentos de ex-operários que foram liderados por Lulla nas greves de 1979-80. Em plena campanha do ex-peão à Presidência, em 2002, os seus ex-companheiros refletem sobre suas vidas e sobre o significado que sua relação com o ilustre ex-líder sindical teve para elas. O grande interesse do filme são essas vidas, as trajetórias dos peões entrevistados. A trajetória de Lulla e a eleição servem apenas de ilustração para elas. De pano de fundo histórico.

Por meio desses depoimentos, podemos evidentemente ter uma amostra do que significa socialmente e historicamente a eleição de Lulla. Eleição à parte, porém, o filme tem um grande interesse humano, que transcende o processo das eleições. Ele vale muito esteticamente por si mesmo, independente da conjuntura política. Nenhum comentário como o aqui apresentado pode é claro pretender substituir a experiência de assistir o próprio filme. Pode apenas tentar sinalizar algumas das linhas temáticas consideradas mais significativas. As questões relativas à campanha eleitoral, aos seus “Entreatos” e ao próprio governo Lulla são debatidas nos demais textos desta série.

É impossível também registrar aqui nominalmente os depoimentos de cada um dos “Peões”. Cada um é como um capítulo de um livro, cada um conta uma interessantíssima história e revela uma personalidade humana única, que tem muito a nos ensinar com suas vivências. Em “Peões” conhecemos uma série de figuras humanas muito ricas. Pessoas de vocabulário paupérrimo, experiência valiosíssima e sabedoria aguda. Encontramos doses fartas de ingenuidade, sinceridade e honestidade. Um dos aspectos a se destacar a esse respeito é a extraordinária capacidade do entrevistador de fazer com que seus entrevistados falem de si. Marca de toda sua obra.

O filme de Eduardo Coutinho é um documentário que documenta a sua própria produção. “Peões” se utiliza muito significativamente de trechos de outros filmes como “ABC da greve” de Leon Hirszman, “Linha de montagem” de Renato Tapajós e “Greve” de João Batista de Andrade, todos realizados no decurso das históricas greves do ABC de 1979-80 e lançados imediatamente após os acontecimentos. Alguns trechos importantes destes filmes são reproduzidos para ilustrar as falas dos peões.

É a partir desses filmes que Eduardo Coutinho chega à sua lista de entrevistados. Para produzir a lista, o cineasta pede a alguns dos grevistas históricos de 1979-80, ainda reunidos em torno do Sindicato dos Metalúrgicos, que identifiquem, em cenas dos filmes citados e em ilustrações de revistas e jornais da época do movimento, os companheiros dos quais pudessem lembrar os nomes. Os nomes daqueles rostos anônimos na multidão. É com esses nomes que o diretor trabalha para chegar ao “elenco” do filme.

A maioria absoluta dos entrevistados é composta de nordestinos. Migrantes que mesmo depois de décadas não perderam o forte acento regional na pronúncia. É sempre interessante ver num filme como este a disposição de mostrar a verdadeira face do povo brasileiro, a grande massa daqueles que nunca são protagonistas, agora ocupando brevemente o merecido lugar de destaque. Em “Peões” não temos os pobres estilizados das novelas da Rede Globo, com seu sotaque nordestino fajuto.

Os nordestinos são o principal componente da classe operária que se forma no Brasil a partir da industrialização que toma impulso nos anos 50. Esse componente nordestino se sobrepõe e em menor medida se mistura às demais frações operárias anteriores a esse surto de industrialização, como os italianos, que predominavam desde o fim do século XIX. A história contada em “Peões” é a de toda uma geração. Os personagens ali retratados são representativos da trajetória de outros milhões de migrantes que vieram para São Paulo para “ganhar a vida” (como fez o pai deste escriba).

“Peões” não enfeita o passado. A história dos grevistas não é uma história com final feliz. Muitos deles foram demitidos ao final das greves e já não são “peões” desde então. É importante lembrar que na época das greves a economia brasileira ainda estava em crescimento. Em se saindo de um emprego, era possível conseguir outro. Situação muito diferente daquela que se vive nas últimas duas décadas perdidas. Hoje, muitos dos ex-peões vivem portanto de outras profissões. Mas lembram com orgulho a participação na luta sindical da época.

“Tecnicamente”, as greves lideradas por Lulla em 1979-1980 foram greves fracassadas. As reivindicações especificamente econômicas não foram concedidas naquele momento. Os grevistas foram nesse sentido derrotados. Entretanto, politicamente, as greves foram vitoriosas, pois produziram uma elevação da consciência de classe entre os operários. A classe operária brasileira agora tinha um exemplo de ação e um ponto de referência político. As greves do ABC de 1979-80 foram o ponto de partida para a fundação da CUT e do PT. Outras greves viriam e outras conquistas seriam obtidas nos anos seguintes. O impulso ali iniciado beneficiou outros setores da classe trabalhadora. Uma das mulheres entrevistadas, que não chegou a trabalhar nas montadoras do ABC, diz que se sente “metalúrgica de coração”, porque era a luta dos metalúrgicos que inspirava o conjunto dos trabalhadores brasileiros de então.

Quando se fala de luta, não se trata apenas de uma metáfora, mas de uma descrição literal dos fatos. Como em toda greve, a polícia está sempre a serviço da classe patronal. Os operários que querem tentar impedir os companheiros de trabalhar são recebidos na porta das fábricas pelos cacetetes dos policiais (como acaba de acontecer a este escriba, mutatis mutandis, na greve dos bancários de 2004).

A vida de operário e a militância sindical é uma luta que deixa cicatrizes físicas (menciona-se o inevitável dedo perdido de Lulla) e também morais. A história dos “Peões” é uma história de sacrifícios pessoais. Os grevistas que participavam de piquetes, manifestações e assembléias deixavam as famílias em segundo plano. Sobre esse ponto, não manifestam arrependimento, mas uma consciência dolorida de uma lacuna em suas vidas, a qual tentam de diversas maneiras reparar, com maior ou menor sucesso em cada caso. Militância e família são antíteses difíceis de serem conciliadas.

Um dos aspectos que salta à vista em “Peões” é a grande presença de mulheres. Alguns dos depoimentos mais fortes e mais emocionantes são de mulheres. A luta dos grevistas não era uma luta sustentada exclusivamente por homens-chefes-de-família, era uma luta de famílias inteiras, de mães, esposas, irmãs e filhas. E as mulheres não desempenhavam apenas um papel ancilar, mas também tomavam frente na luta, participando tão ativamente da militância sindical quanto os homens.

Também havia mulheres operárias envolvidas no movimento. E não apenas as operárias tem coisas importantes a dizer. As mulheres em posições “subalternas”, serventes, copeiras e faxineiras do sindicato, também eram companheiras na luta. A solidariedade de classe não fazia distinção de campo de trabalho. A luta era dos metalúrgicos e de todos os trabalhadores. Foi graças a uma então faxineira do sindicato dos metalúrgicos que o filme “Linha de montagem” escapou da apreensão pela Polícia Federal, em 1980, de modo que a história da greve pudesse ser contada. A hoje copeira, apesar de iletrada, mostra uma consciência muito mais aguda que a de muitos intelectuais da importância de que as pessoas conheçam a História.

Do ponto de vista dos peões entrevistados, a participação no movimento social faz parte da vida de operário. Ser operário não é apenas trabalhar em fábrica, é participar das lutas dos companheiros trabalhadores. Não se distingue neste filme o orgulho por um desses aspectos do outro. Não se fala apenas das greves, mas da vida de trabalhador em todos os seus aspectos. Os “Peões” retratados no filme demonstram um peculiar orgulho pelo trabalho realizado nas linhas de montagem.

Um dos grevistas, posteriormente demitido, lembra com orgulho que seu filho apontava todos os caminhões da marca Mercedes, dizendo: “ali tem uma peça que o senhor colocou”. O verdadeiro peão se orgulha não só do esforço despendido no trabalho, mas da qualidade do trabalho por ele executado. O último dos “Peões” pergunta: “você já foi peão?” ao entrevistador, e através dele, a todos os espectadores. Com isso ele explica que só quem o foi entende esse orgulho por um trabalho braçal tido como degradante.

Outro se lembra com orgulho de que trabalhou um ano inteiro fazendo apenas três dias de descanso, para com o dinheiro das horas-extras construir a casa em que mora. Em outro momento, como em “Tempos modernos” de Chaplin, vemos o depoimento de uma operária que teve os movimentos do corpo condicionados pelo ritmo das máquinas. Os braços se moviam à noite repetindo os mesmos movimentos realizados durante o dia na fábrica.

As marcas físicas e emocionais daquele período persistiram por toda a vida dos entrevistados. Mas como dissemos, não se trata sempre de histórias com finais felizes. Um dos aspectos mais dolorosos mostrados em “Peões” é o da velhice abandonada. Muitos dos grevistas históricos são hoje idosos, aposentados, solitários, abandonados por suas famílias. Alguns encontram consolo e sustentáculo material na religião, geralmente evangélica.

Entretanto o que restou para a maioria foi uma fidelidade ao personagem paradigmático de Lulla. O tema de sua eleição é um dos assuntos inevitáveis no documentário. Muitos dos peões, além de continuarem fiéis às idéias políticas da época em que participaram diretamente da luta, continuam diretamente envolvidos na luta prática, participando de diversas formas de militância.

Uma das frases mais marcantes é a de que “os mandatos passam, os trabalhadores ficam”. Isso indica a percepção de que a luta de classes produz resultados coletivamente e a longo prazo. A História não pertence a Lulla e ao PT, mas ao conjunto da classe operária brasileira. Apenas em uma das falas transparece a percepção de que foi Lulla o eleito (o que então seria eleito), não o PT. Ou seja, não o projeto original do PT, que era um projeto classista, mas um projeto ancorado na projeção pessoal de Lulla.

Seria interessante confrontar a expectativa daqueles peões ali, no momento da eleição, com a avaliação que fariam hoje do governo Lulla. Isso seria porém um outro filme, uma obra de natureza completamente diferente daquela que temos em mãos. Mas mesmo assim, “Peões” deixa algumas pistas. Outro entrevistado cita a promessa de campanha de Lulla: “Eu não vou governar para meia dúzia de banqueiros”. Diante da possibilidade do descumprimento da promessa, o entrevistado avisa, com sua objetividade tipicamente nordestina: se a promessa não for cumprida, “o bicho vai pegar”.

O encerramento do filme se dá com a discussão da situação dos “Peões” de hoje, mais de vinte anos depois das greves históricas do ABC. A discussão se dá por meio do depoimento de um operário que veio da cidade onde trabalha apenas para votar em Lulla. Na definição lapidar por ele apresentada, o peão é aquele que bate cartão. Essa definição revela uma afiada percepção do funcionamento da economia capitalista. O trabalhador que bate cartão é aquele que tem o seu tempo de trabalho controlado pelo patrão. O controle do tempo de trabalho é o que propicia a mais-valia ao capital. O peão é portanto aquele indivíduo que está no centro ativo do sistema capitalista, o seu centro produtivo. No entanto, a realidade do peão hoje é a do trabalhador precário, que trabalha por empreitada, freqüentemente terceirizado, sem segurança do emprego.

A tendência do sistema capitalista é cada vez mais excluir trabalhadores das linhas de montagem. O sistema tenta excluir o ser humano da produção, na mesma medida em que precisa dele para consumir sua produção. Ao mesmo tempo que a diminuição do número de proletários é um tendência econômica conjuntural, a existência do trabalhador assalariado é uma necessidade sistêmica estrutural do capitalismo. Por mais que o sistema queira excluir a realidade de sua existência, esta se afirma reiteradamente a cada objeto fabricado. Os “Peões” insistem teimosamente em se fazer aparecer na História.

Daniel M. Delfino

23/11/2004

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