“O essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, ou de liberar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruídas, sua manufatura ainda é um modo conveniente de gastar mão-de-obra sem produzir nada que se possa consumir.”
George Orwell – 1984
George Orwell – 1984
O economista José Martins é membro do “Núcleo de Educação Popular 13 de Maio” e responsável pela redação do “Boletim Crítica Semanal da Economia” (www.criticasemanal.com), editado ininterruptamente há 20 anos. Em 2005, José Martins publicou o livro “Império do Terror – Estados Unidos, ciclos econômicos e guerras no início do século XXI”, dedicado a analisar as relações entre a dinâmica da economia capitalista e a recente escalada militar do governo estadunidense, com seu trágico corolário de conseqüências para toda a humanidade.
Neste pequeno e denso volume exercita-se uma leitura rigorosamente científica dos fatos e números da economia, em sua precisa articulação dialética, com ecos no conjunto da realidade social e política. É de uma tal leitura, pautada nas categorias da Economia de Marx, que esperamos poder resumir a seguir a argumentação.
No início dos anos 1970 os Estados Unidos anunciaram a desvinculação do valor de sua moeda do lastro das reservas de ouro. O dólar se desvalorizou violentamente. A principal moeda mundial passava a funcionar como pura medida abstrata de valor (tempo de trabalho), deixando de ter relação com uma medida concreta (metal precioso). Paradoxalmente, isso reforçou a hegemonia do dólar. O mercado financeiro internacional adquiriu uma virtual independência com relação às tentativas de regulamentação dos governos. Isso era reflexo da globalização produtiva em andamento desencadeada pela expansão das transnacionais e de sua necessidade de liberalizar os fluxos financeiros. A revolução financeira dos anos 1970 era a conseqüência dos processos que se desenvolviam no plano das relações materiais de expansão produtiva, quando refletidas no plano da circulação e da acumulação financeira.
A despeito de que o novo sistema fosse considerado inerentemente instável e inviável pelos economistas acostumados com a relativa estabilidade dos anos 1950 e 60, as autoridades econômicas estadunidenses reagiram ao processo com mais globalização. A década de 1980 representa a definitiva consolidação de um mercado mundial de bens industriais, que subordina a economia internacional aos ciclos internos de produção e consumo dos Estados Unidos.
A maioria dos analistas passou a ver nos processos em curso nas últimas três décadas do século XX os indícios de uma crise do sistema capitalista marcada pelo seu declínio, contra o pano de fundo de uma mítica expansão do pós-guerra. Entretanto, a simples financeirização da economia e liberalização dos fluxos monetários não implica necessariamente em crise e declínio. No caso dos Estados Unidos, a globalização funcionou como um veículo para a consolidação de sua hegemonia imperial, em substituição às antigas potências, num marco espacial determinado pela formação de um mercado mundial de bens industriais e principalmente, de força de trabalho. São esses desenvolvimentos concretos no plano produtivo material que estão na base dos movimentos erráticos e aparentemente caóticos das finanças e da globalização em geral.
A teoria dos longos ciclos estabelece que ao fim de cada onda secular de expansão econômica o centro do desenvolvimento capitalista passa a cumprir um papel de mero centro financeiro, preparando a transição para a afirmação imperial de um novo centro. Isso teria acontecido historicamente com os genoveses, os holandeses, os ingleses e agora com os estadunidenses, sucessivamente. O que essa teoria não explica é o fato de que, ao invés de decadência, os Estados Unidos experimentam o processo contrário, de centralização de seu poder imperial.
Em seu funcionamento concreto, a economia capitalista está determinada por ciclos periódicos de ascensão e declínio da acumulação. “Não existe crise permanente do capital, o que existe são crises periódicas em permanência” (Marx). Os ciclos são determinados por condições endógenas (dinâmica propriamente econômica da reprodução ampliada do capital) e exógenas (luta de classes em torno dos rumos da política econômica). No século XX, os ciclos econômicos do capitalismo mundial passaram a estar atrelados aos ciclos da economia estadunidense. Nesse processo de atrelamento, as demais economias mundiais, desde as mais poderosas até as mais periféricas, são sacrificadas para que se possa manter a lucratividade do capital no centro do sistema.
Esse movimento de atrelamento se realiza, na época recente, por meio de instrumentos de hegemonia político-ideológica como o FMI e os demais propagadores da “globalização”, do neoliberalismo, do “consenso de Washington”, etc.; bem como por meio do uso direto da força militar. O atrelamento torna o conjunto da economia mundial dependente do que ocorre no interior da economia mais poderosa do sistema, de um tal modo que tudo passa a girar em torno dos ciclos daquela economia.
A história econômica estadunidense revela uma seqüência de 31 ciclos econômicos entre 1854 e 1991, com uma média de 35 meses de expansão e dezoito meses de declínio. Esse padrão atravessou tanto os “trinta anos gloriosos do pós-guerra” como a fase de “longo declínio” a partir dos anos 1970 (o que invalida a tese das “grandes ondas” e da “estagnação permanente”). O que é relevante na análise desses ciclos da economia estadunidense é o seu entrelaçamento com a geopolítica imperialista. Os períodos de exceção à regra, onde a duração da fase expansiva do ciclo econômico excede em muito a média histórica são justamente os períodos em que os Estados Unidos estiveram envolvidos em guerras.
A Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã foram períodos de extraordinário crescimento econômico da economia estadunidense, impulsionado pelos gastos militares do Estado imperialista. Mais do que uma coincidência, isso revela um padrão. Os gastos militares funcionam, do ponto de vista estrito da esfera econômica, como uma forma de consumo improdutivo de capital, sem o qual o sistema não poderia escapar de suas contradições internas. Se toda a mais-valia social fosse consumida produtivamente em salários e meios de produção, o aumento brutal do produto social total assim obtido resultaria numa queda também brutal dos lucros dos capitalistas. Para evitar que isso aconteça, é necessário inventar alguma variedade de consumo improdutivo, como o do mercado de bens militares ou o de bens de luxo, cuja demanda artificial impede precariamente que a taxa de acumulação esbarre no limite mortal constituído pela inevitável queda dos lucros.
Em última instância, não há como impedir que essa contradição se materialize no interior das relações capitalistas de produção. A contradição pode ser temporariamente deslocada por meio de certos expedientes, como por exemplo, a guerra, mas não pode ser abolida sem a dissolução do próprio sistema do capital. A falta de demanda não é um problema que possa ser resolvido por meio de alguma sorte de regulação adequada do mercado por parte do Estado, como chegaram a acreditar setores da esquerda reformista, na esteira do aparente êxito das políticas anti-cíclicas keynesianas em meados do século. O paraíso perdido das esperanças regulacionistas ainda é o ópio que embala o sono do que restou da esquerda reformista, que se recusa a despertar para a dura realidade da luta de classes.
No plano da realidade, os Estados Unidos reforçaram seu poder imperial sobre o sistema capitalista mundial através de um duplo movimento no mercado de meios de destruição. De 1986, ainda em plena Guerra Fria, a 1994, a década do “fim da história” e da globalização, os Estados Unidos reduziram em 21% suas despesas militares, ao passo que a redução global foi de 35,2% (essa foi a base para a famosa desaparição do astronômico déficit público estadunidense na era Clinton). Ao mesmo tempo, aumentaram sua participação nos exportações mundiais de armas de 26% para 55% entre 1986 e 1996. Ou seja, ao mesmo tempo em que o consumo mundial total de armas decaía em números absolutos, a participação estadunidense no mercado armamentista crescia em termos relativos (uma alteração proporcional equivalente a 157%).
Os Estados Unidos exportaram para o mundo sua despesa com armas e as mega-corporações estadunidenses (Lockheed, General Electric, Boeing, etc.) ficaram com o lucro. Essa foi a base para o extraordinário ciclo de crescimento que se estendeu de 1991 a 2000, em que a taxa de acumulação do capital bateu recordes. O capital estava livre para ser investido em mais produção. O investimento em máquinas (crescimento de 12% ao ano no período) aumenta violentamente a produtividade do trabalho social, ou seja, a taxa de exploração. Cada vez menos trabalho humano é requerido para produzir cada vez mais mercadorias. No entanto, na medida em que se dispensa o trabalho humano, desaparece o consumidor que poderia comprar tais mercadorias. Na medida em que diminui o valor contido em cada mercadoria, aumenta a dificuldade do capital social total de realizar sua taxa de lucro.
Esse processo estava chegando ao limite no início dos anos 2000. A dificuldade para realizar a taxa de lucros atingiu em cheio dois grandes pilares da economia estadunidense, as montadoras GM e Ford, cujas dívidas somadas montaram a US$ 350 bilhões (quase o mesmo total da dívida externa da América do Sul). Estavam produzindo mais carros do que se pode comprar. Naturalmente, os economistas, na função de conjurar o fantasma da luta de classes que ameaça o sono dos capitalistas, lançam mão de suas superstições e crendices, as receitas de política econômica. Foi para permitir que esses gigantes com pés de barro rolassem suas dívidas que o FED (Banco Central estadunidense) reduziu as taxas de juros quase a zero.
O capital precisava continuar sua reprodução expandida, a despeito de que apenas na cidade de Nova York, 1 milhão de pessoas estivesse dependendo de doações para se alimentar. A clamorosa contradição que opõe de um lado o aumento da capacidade produtiva do trabalho social ao correspondente aumento da miséria de outro, contradição precipitada pelo simples funcionamento da economia capitalista, ainda é o principal argumento para a necessidade de construir uma outra ordem de reprodução sociometabólica.
Os economistas e demais porta-vozes do sistema não podem admitir a possibilidade da sua transformação radical, e assim são obrigados a se transformar em ansiosos e esquizofrênicos ouvintes de um oráculo imperscrutável, o mercado. Um dia exaltam as virtudes da “Nova Economia”, que teria livrado o capitalismo das suas crises periódicas e iniciado uma era de expansão infinita. No dia seguinte, quando as empresas pontocom viram poeira na bolsa NASDAQ, são obrigados a falar em “exuberância irracional”. Quando a luta de classes se impõe na prática, caso da bem-sucedida greve de 86 mil trabalhadores da gigante de telecomunicações Verizon, o realismo volta ao discurso e percebe-se que não existe Nova Economia nem Velha Economia, apenas economia capitalista e seus ciclos periódicos.
Os ciclos periódicos da economia capitalista se repetem com certa regularidade, mas cada ciclo deve ser relacionado às características históricas peculiares do período no qual se desenvolve. Como todo ciclo, aquele que se encerrou nos Estados Unidos em 2000/2001 esteve lastreado no setor de bens duráveis. Esse setor apresentou números impressionantes de crescimento do produto bruto e da produtividade e de redução do custo do trabalho. Entretanto, nesse mesmo ano 2000, auge do ciclo, o setor experimentou uma violenta inversão dos números, com queda da produtividade e aumento da remuneração e do custo do trabalho. Essa importante inversão, ocorrida no setor fundamental da economia capitalista, aquele no qual a mais-valia é gerada, não tardaria a causar impacto na reversão da tendência cíclica geral.
Ao contrário das teorizações sobre “nova economia” ou sociedade pós-industrial, ou ainda “sociedade da informação”, etc., o setor que impulsionou o extraordinário ciclo de crescimento dos Estados Unidos foi a produção de bens duráveis, baseado num violento incremento da produtividade do trabalho, ou seja, da taxa de exploração. A taxa de acumulação de capital (parte da mais-valia reinvestida em novos meios de produção) cresceu mais do que lhe permitia a taxa de lucro, que mede a realização do capital. Isso forçou uma brusca retração, que desvalorizou enormes porções do capital investido. A retração disseminou-se dos Estados Unidos para o mundo. A queda dos índices estava acontecendo de maneira sincronizada em todas as economias capitalistas centrais.
Incapaz de perceber a relação entre produtividade, taxa de mais-valia, taxa de acumulação e taxa de lucros, a mídia e os economistas passam a buscar a solução para o problema na sua superfície: redução ou elevação da taxa de juros pelo FED, como se uma administração virtuosa por parte do Estado pudesse sanar as contradições interiores da lógica do capital.
O capital é travado periodicamente por sua própria lógica. O crescimento da produtividade (exploração), permanentemente buscado pelos capitalistas, resulta em crescimento da mais-valia relativa; mas a redistribuição dessa mais-valia como produto social total, resultado da elevação da potência produtiva do trabalho humano (produtividade), resulta no momento seguinte em queda da taxa de lucro, que na superfície se transforma em crise do sistema ou “retração do ciclo” econômico.
As coisas se complicam quando as receitas dos Bancos Centrais deixam de funcionar, como no Japão, que por mais de dez anos abaixava as taxas de juros sem reaquecer a economia, contrariando os manuais de economia e sua lógica unilateral atada à mera superfície dos fenômenos. O mesmo processo estava acontecendo nos EUA de Greenspan em 2001. Para evitar a derrapagem geral, os EUA ingressaram numa nova era de unilateralismo, nacionalismo e isolacionismo, tipicamente exemplificada no plano político pela ascensão do círculo ligado a Bush.
O encerramento do ciclo periódico de crescimento que se fechou em 2000 depositou a pá de cal no que restava da ordem econômica e geopolítica inaugurada pelo pós-guerra, desarticulando as relações entre os Estados Unidos e os demais centros da economia capitalista. Isso significou o retorno a um tipo de ciclo econômico cujo exemplo mais dramático foi materializado por aquele que se fechou em 1929.
A queda da produção industrial estadunidense desceu a patamares antes verificados apenas no fim da Segunda Guerra Mundial ou mesmo na própria crise de 1929. Esse tipo de abalo estrutural não deixa de produzir conseqüências importantes no plano da superfície. Os setores comerciais e de serviços, que são dependentes da riqueza gerada no setor industrial, seriam duramente afetados. Da mesma forma, o setor financeiro o mais improdutivo de todos, estava caminhando um desastre iminente em meados de 2001.
A reação da parte dos gestores do sistema não tardou. Quando falham os remédios puramente econômicos, de curandeiros como Greenspan, entram em cena os tambores da guerra. As trombetas do Armagedon soaram em 11 de Setembro. A nova década seria marcada pelo signo da “guerra do terror”. O fantasma de um adversário global invisível, onipresente e virtualmente capaz de qualquer coisa, tornou-se um fator anti-cíclico indispensável para a combalida economia estadunidense. O consumo de Estado com gastos militares tornou-se a muleta que sustenta a economia mais poderosa do mundo. Uma muleta que atira para todos os lados: Afeganistão e Iraque foram as primeiras vítimas. O Irã pode ser a próxima.
A escolha do alvo não tem qualquer relação com uma ameaça concreta. Tem relação apenas com a necessidade de que exista um alvo. Sem esse alvo providencial, a grande roda não pode mais continuar girando. A conquista de territórios e de petróleo são objetivos materiais secundários; por trás deles, está a própria sobrevivência do sistema. O autoritarismo, o cerceamento dos direitos, a repressão, a censura, o terror de Estado da parte da administração Bush contra seus próprios cidadãos; são os efeitos colaterais.
Para “legitimar” os disparos da máquina de guerra estadunidense, basta afixar o cartaz de “wanted” e a foto de Bin Laden em todas as esquinas do “far west” global. A doutrina da “guerra preventiva” se viabiliza com a criminosa conivência da mídia diante dos absurdos ventilados por bonecos com Collin Powel ou Condoleza Rice. Mas nada mais poderia ser surpreendente em matéria de conivência do que a complacência para com o pior de todos os bonecos, o próprio George Bush.
Os fatos da política, como o 11 de Setembro, não se desenrolam num espaço vazio livre de determinações materiais, ou seja, econômicas. Eles estão profundamente articulados com os movimentos da economia em seus ciclos periódicos, expressando as medidas tomadas pelos capitalistas para administrar os momentos de ascensão e de crise de cada ciclo. Da mesma forma, a economia não funciona livre das influências políticas, girando mais ou menos devagar de forma totalmente desconectada das demais relações sociais. Pelo contrário, a precisa articulação entre as várias esferas da economia, da política e da ideologia constitui a via para alcançar o entendimento mais global da totalidade social-histórica. Justamente essa foi a contribuição de Marx.
A capacidade da economia estadunidense de sobreviver à crise dependeria da capacidade do Estado de suportar a degeneração das boas condições fiscais e de crédito público herdadas da era Clinton. Em meados de 2001, o crédito público e privado (tanto das empresas como dos consumidores) estava seriamente deteriorado. As falências e as demissões se multiplicaram. Megacorporações como a Enron viraram fumaça.
Mas o dólar suportou o baque. Ainda que houvesse perdas para dezenas de Enron e milhões de trabalhadores, o crédito público estadunidense tinha ainda gordura para queimar na época de vacas magras que se seguiu. Europa e Japão, ao contrário, seguiram prostrados. Quando a munição da FED perdeu seu poder de fogo, entrou em cena a munição propriamente dita do Pentágono. A diplomacia do “está conosco ou contra nós”, respaldada pela ofensiva militar no Oriente Médio, resultou em abertura comerciais, tratados bilaterais acintosamente assimétricos, liberalização comercial, beneficiando os Estados Unidos nas relações com as economias periféricas como a América Latina ou mesmo gigantescas, como a China. Não só em termos diplomáticos e comerciais, mas também em relação ao mercado de meios de destruição, os Estados Unidos reforçaram a superioridade de que gozavam na última década do século XX.
A globalização neoliberal daquela década, que ainda podia ser embalada pela canção de ninar da “nova economia”, “sociedade da informação”, “aldeia global”, telecomunicações, internet, indústria cultural, on-line, etc., transformou-se em neomacartismo global. A economia foi militarizada.
A militarização da economia produziu alguns efeitos anti-cíclicos, mas de forma débil. Ela impôs a regiões inteiras do globo, como a América do Sul, uma violenta deterioração das condições de vida, que por sua vez resultou em reação das massas. As políticas neoliberais destroçaram as economias nacionais do continente e ajudaram a consolidar a retomada do ciclo expansivo no centro do sistema (a partir de 2002), mas passaram a enfrentar lutas de resistência de massas.
A destruição militar e a econômica de capital, materiais e seres humanos sempre foi o meio natural encontrado pelo capitalismo para se reciclar e se relançar à expansão. O processo é sempre desigual e combinado, impondo perdas maciças, como as que ocorreram na Argentina em 2001, para que o sistema se revitalize. Contingentes gigantescos da população mundial são violentamente arremessados no abismo da pobreza e da indigência a cada crise cíclica.
O capital financeiro organiza a distribuição da mais-valia social de forma hierárquica, subordinando as economias nacionais por meio das políticas neoliberais de desregulamentação, liberalização, privatização, corte de gastos públicos, desindustrialização, revogação de direitos trabalhistas, gestão econômica recessiva, etc. A condição para que as classes dominantes locais continuem no poder consiste em destruir seus próprios países, aniquilar o que restar da soberania de Estados formalmente autônomos e açoitar cada vez mais a população explorada para extrair dela a contribuição que seus patrões requerem para viabilizar a continuidade da lucratividade do sistema em seu centro imperial. A América Latina está a um passo da recolonização formal direta.
O resultado prático das políticas neoliberais impostas pelo imperialismo globalizado às regiões periféricas do sistema como a América Latina não pode receber outro nome que não genocídio. É preciso destruir fisicamente populações inteiras, massas famélicas de miseráveis, raquíticos, enfermos, ignorantes, pois a sua existência não cumpre mais nenhum papel no ciclo econômico capitalista que se quer preservar. Para destruir fisicamente essa população, é preciso dobrar qualquer tipo de resistência que tenha se esboçado no seio dessas sociedades nacionais em frangalhos, qualquer traço de autonomia ou soberania mesmo que formal ligado às velhas ideologias do Estado nacional.
Assim como a crise econômica, o golpe contra Chavez exemplifica o novo modelo de recolonização globalizada a ser posto em prática: o golpe empossa não um militar, mas um empresário. O aparato repressivo do Estado apenas faz o serviço sujo, mas não se propõe a dirigir o Estado, pois não há mais Estado. Chavez foi derrubado não por suas medidas econômicas, pois continuava vendendo petróleo e pagando a dívida, mas por suas medidas políticas, os círculos bolivarianos, que adicionavam a faísca organizativa ao material inflamável das massas pauperizadas e insatisfeitas.
A ditadura diretamente econômica representa uma nova forma de subordinação das economias periféricas no interesse da administração capitalista das crises. Mas as antigas formas de superação capitalista não estão descartadas. Os ciclos econômicos do século XXI trazem de volta à tona os mecanismos “clássicos” que mergulharam o capitalismo nas crises e guerras da primeira metade do século XX: protecionismo, monopólio e guerra. Não é apenas a periferia do sistema que deve pagar pela crise, mas também os países centrais. Europa e Japão deverão também ser sacrificados para que a economia estadunidense continue crescendo.
Essas economias centrais em decadência passam a disputar então com os Estados Unidos a repartição do lucro dos empreendimentos ultramarinos de suas respectivas transnacionais, única forma de se relançarem a ciclos expansivos. Nas últimas décadas do século XX essa disputa era mediada por organizações como ONU e OMC, que conferiam uma aparência de “legitimidade” ao sistema internacional. Agora que os Estados Unidos invadem unilateralmente o Iraque ao arrepio da ONU e fracassam sucessivamente as negociações na OMC, torna-se patente a realidade do “cada um por si” da economia globalizada.
As antigas superestruturas burocráticas de gestão inter-imperialista tornam-se materialmente obsoletas. Sua utilidade residual consiste em continuar subordinando a periferia, enquanto não entrar em cena a recolonização direta. As lamúrias dos negociadores comerciais da periferia, como os diplomatas do agronegócio brasileiro, expressam, além de patética impotência diante do protecionismo imperial, um total desconhecimento de que os subsídios agrícolas dos países capitalistas estão fora de qualquer discussão de mercado, pois correspondem a imperativos internos de organização das classes e do território das antigas potências.
As recentes negociações da ALCA exemplificam essa obsolescência das “antigas” estruturas de regulação desenhadas na década de 1990. Ao invés de um acordo envolvendo todos os países do continente, a ALCA se transformou numa rede de acordos bilaterais, onde os Estados Unidos, individualmente, subordinam cada uma das economias do continente por meio de TLCs (Tratados de Livre Comércio). Expressa-se de forma brutal a contradição entre a articulação necessariamente global do sistema do capital e a realidade historicamente fragmentada de uma multiplicidade de Estados nacionais.
A relação entre os Estados Unidos e cada um dos países da ALCA depende das necessidades internas da economia estadunidense e determina por sua vez a política interna desses Estados periféricos sucateados. Os Estados Unidos não precisaram esperar o anúncio formal do fim da ALCA para anunciar o estabelecimento de acordos bilaterais violentamente assimétricos com países do continente. No horizonte político dos estrategistas imperiais, figura o aplastamento das FARC e do processo bolivariano impulsionado pela Venezuela.
Todos esses movimentos geopolíticos tem como objetivo a reativação do ciclo econômico no centro do império. Entretanto, a despeito de todos os estimulantes políticos, gastos com a “guerra ao terror”, ganhos com acordos comerciais assimétricos, etc., as estatísticas econômicas estadunidenses ainda não apontavam para um incremento da taxa de acumulação, capaz de indicar a reversão do ciclo. A recuperação mediada pela guerra mostrou-se frágil. E aponta para algumas contradições cruciais: setores inteiros da economia estadunidense continuam de fora da recuperação experimentada pelo complexo industrial-militar.
Além disso, países inteiros, como Europa e Japão, que constituem junto com os Estados Unidos o centro da economia mundial, também não experimentam os benefícios desse keynesianismo de guerra, uma vez que não estão autorizados pela hierarquia imperial a exercer qualquer papel de polícia global. A guerra é um “privilégio” dos Estados Unidos, mas pode deixar de sê-lo, na medida em que a agudização dos desequilíbrios econômicos obrigarem as demais potências a reler Maquiavel: “os príncipes erguem fortalezas não contra o inimigo exterior, mas contra o inimigo interior”. Para contornar suas crises internas, os demais Estados nacionais podem ser precipitados a reinaugurar uma era de corridas armamentistas e instabilidade política global.
Enquanto isso, no centro do sistema, a deterioração econômica prossegue. Já vimos que a recuperação mediada pelos gastos militares é débil e desigual. Ela afeta também os próprios fundamentos da economia, pois o déficit público ressurge como uma ameaça bastante palpável. Historicamente, os gastos militares megalomaníacos e irresponsáveis costumam soar o toque fúnebre para os impérios, e não a pretendida alvorada dos “Reich de mil anos”. Manter a ocupação do Afeganistão e do Iraque e multiplicar as frentes de intervenção (Irã, Síria, Líbano, Palestina, Ásia central, Coréia do Norte, Cuba, Colômbia, Venezuela, etc.), pode custar muito mais caro do que sonha a vã beligerância dos obtusos falcões do Pentágono.
A continuidade da recuperação capitalista dependeria não da “guerra ao terror” externo, mas da luta de classes contra o inimigo interno. Em fins de 2002 eclodiu uma greve de duas semanas dos trabalhadores dos portos da Costa Oeste estadunidense. A greve teve de ser debelada pela intervenção direta do governo federal, o que não acontecia desde 1947. O mercado estava exigindo a deterioração das condições de vida da classe trabalhadora para continuar lucrando. Esse processo multiplica os conflitos, o que obriga o sistema a buscar saídas diversionistas. É o que acontece em 2006, com a lei de expulsão dos imigrantes. A classe trabalhadora é artificialmente dividida em raças e religiões para que não unifique sua luta. A resposta dos imigrantes foram as massivas manifestações de 1º. de Maio.
Para evitar a agudização da luta de classes, o imperialismo lança mão da luta militar pela conquista direta de territórios. A invasão do Iraque em 2003 foi um exemplo desse procedimento. Entretanto, ao invés de fazer a economia decolar, essa aventura fez explodir o endividamento público. O imperialismo armou para si mesmo uma perigosa armadilha no Oriente Médio. Trata-se de uma guerra que os capitalistas devem vencer ou vencer, do contrário a economia não decola, as ações se desvalorizam, o preço do petróleo sobe, o endividamento fica fora de controle, o dólar perde o valor, etc. Precisamente isso é o que está acontecendo neste momento, na medida em que a guerra se prolonga. A história está congelada em câmera lenta com suas contradições aparecendo na tela da CNN como um “replay” interminável das mesmas cenas e notícias.
Se na superfície a história pode parecer congelada, nos seus fundamentos a deterioração econômica prossegue. O ciclo expansivo iniciado em 2002 foi muito mais tímido do que necessitavam os EUA e seus sócios europeus e japoneses. Globalmente, a economia continuou patinando em gelo fino, experimentando uma recuperação muito frágil e permanentemente ameaçada. Sem o aprofundamento da globalização, ou seja, da formatação da força de trabalho global, o capitalismo não pode continuar progredindo. Isso explica a continuidade da vigência da pauta neoliberal em cenários como a América Latina, de quem se espera que continue pagando a conta da recuperação às custas da miséria da sua população trabalhadora.
A reformatação da força de trabalho global significa uma redefinição da divisão internacional do trabalho, ou seja, uma reestruturação das hierarquias entre os países capitalistas, em favor das potências dominantes. Os Estados Unidos celebram acordos de cooperação militar com o antigo cinturão de países satélites da URSS, isolando simultaneamente Europa e Rússia. De outro lado, estabelecem protetorados militares na Ásia Central, de modo a dispor de uma cabeça-de-ponte permanente para intervir no Oriente Médio e arbitrar os interesses estratégicos da Rússia e da China na região.
Todas essas ações de política externa, gastos de guerra, acordos comerciais, combinada com a política interna de corte de juros, frouxidão fiscal, endividamento das famílias, desvalorização do dólar, e principalmente, aumento da exploração da força de trabalho; ajudaram a produzir a recuperação econômica a partir de 2003, que perdura até hoje. O fator preponderante continua sendo o complexo industrial-militar. A intervenção do Estado prevalece sobre a iniciativa privada. A intensidade da recuperação é tímida em relação aos ciclos anteriores (estado semi-estacionário). E o que é mais importante, a recuperação do centro depende de políticas protecionistas que desarticulam as relações entre as potências imperialistas.
O protecionismo é a face econômica da política unilateral agressiva dos Estados Unidos. De 2004 em diante, com a reeleição de Bush, essa política passou a estar cada vez mais respaldada em ideologia religiosa cristã conservadora fundamentalista. Com Bush a religião passou a estar no centro do debate público, sob a forma de uma disputa entre o Bem e o Mal. A teologia se torna instrumento de justificação da guerra por mercados, cobrando o sacrifício de vidas humanas no Iraque, no Líbano, etc.
A próxima crise econômica no centro do sistema deverá eclodir em algum momento no futuro próximo. Nesse momento, as forças do imperialismo estarão travando a guerra pela própria sobrevivência da lógica do capital. De outro lado, as forças da classe trabalhadora mundial precisam se organizar para enfrentar e resistir às agressões que virão. A luta dos trabalhadores constitui o único e necessário antídoto para a destrutividade do capital que ameaça a humanidade.
A economia é capitalista, o terror é imperialista. A economia mundial nunca dependeu tanto de guerras como as que marcaram o início do século XXI. Não eram apenas imagens de guerra. Era a própria economia capitalista mais uma vez sofrendo antecipadamente as dores de uma depressão global. Economia e conflitos militares se reencontrando em uma indissolúvel unidade. Em processo. Era o verdadeiro rosto do Armagedon: o futuro da maior economia do planeta dependendo tragicamente do desempenho dos mísseis de Bush, que cruzavam aos milhares os céus de Bagdá procurando o esconderijo de Saddam e dos seus trêmulos soldados com seus tanques se arrastando penosamente pela areia, em meio à infernal poeira e o calor escaldante dos desertos da velha e sagrada Mesopotâmia.”
José Martins – Império do Terror
José Martins – Império do Terror
Daniel M. Delfino
19/05/2005
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